Sonhos

Tudo começou enquanto dormia, quando teve as primeiras visões sobre o futuro promissor de sua vida. Primeiro, quando sonhou com os anjos vestidos de negro, acusou-os de demônios. As ofertas deles eram tentadoras. Os desejos deles eram sublimes, mas eram pálidos e com roupas escuras como a sombra do demônio. Mas eles vinham todas as noites para realizarem uma visita blasfema em sua mente, tocando a alma de um homem guia do rebanho do Homem com aquele toque indecente de promessas que faziam sua boca salivar.

Acordava sobressaltado, vendo a esposa preocupada com o suor e já trazendo-lhe a Bíblia para rezar e tirar de dentro de si aquele desespero todo. Ele orava, orava como nunca orou, pois nunca sonhara com demônios. Nunca sonhara com o Homem. Mas dia após dia, percebia que estava em contato com tudo o que lia. Era uma vida nova se abrindo para ele. E, de repente, suas palavras não eram mais sobre o livro e o dinheiro do dízimo. Quando entrava na Mercedes rumo ao culto, queria falar sobre pecado e devassidão.

Os demônios de negro vinham em seus sonhos para falar sobre como o mundo era cada vez mais devasso. Ele precisava avisar. Precisava dizer a todos que aquilo que procuravam não era querido por Deus. Era banido pelo livro.

- É o diabo! É o diabo que quer que pequemos e sejamos lascivos! – gritou nas primeiras semanas, enquanto segurava o microfone empolgado e suava como que diante do sol de Israel.

Depois do primeiro mês, já se preocupava somente com o pecado e a lascívia,. Precisava bani-la. Ignorava os apelos pecaminosos da esposa e somente dormia para ter mais sonhos que o orientassem.

- Eu vi anjos em meus sonhos e eles diziam: Devorem os pecados daqueles que têm seu sangue! – gritava no segundo mês, com olhos estufados, cheios de veias grossas.

Vestido de terno, limpando o suor da testa com um lenço, ele se sentou na cadeira ao lado de um fiel e discursou sobre o peso que carregava, ver o Homem e seus anjos, incitando-lhe a devorar os pecados de quem amava para purificar suas almas era o pior. Ele precisava carregar o sofrimento em nome dos outros, como o Homem havia feito.

Ninguém o incomodava. O dízimo continuava a correr livre e cada vez mais farto. Quanto mais falava sobre a devora dos pecados, mais as notas choviam sobre ele, demonstrando mais do que nunca que os anjos de negro estavam certos. Se antes mentia sobre ter visto o Homem, se antes mentia sobre o pecado, se antes mentia sobre o Diabo, agora falava somente a verdade dos anjos visitantes.

Teve a maior certeza de sua vida quando lhe disseram que precisava finalmente decidir sobre o futuro e a fé. Foi com afinco que fez a escolha, mais afinco do que a que fizera antes, aquela em que escolhera sua vocação para guiar o rebanho, naquele momento em que as notas escorreram em suas mãos e ele percebeu que estava no caminho. Agora as notas não importavam, mas a certeza que pulsava em seu sangue.

Naquela noite, ele teria o milagre, desde que fizesse sua escolha. Quando olhou para a esposa, incitando-o à lascívia, ele olhou francamente em seus olhos e disse:

- Você peca!

Ela riu, debochando dele de um modo que só foi menos agressivo do que as palavras que seguiram:

- Acho que você não é mais homem para isso.

Mas ele era... Ele sabia que era homem para escolher e não escolheria aquele corpo viu. Foi com facilidade que os ossos do pescoço dela se quebraram entre seus dedos e com intensidade que saltou sobre aquele corpo e mordeu, arrancando-lhe pedaços suculentos e cobrindo-se sangue. Ela seria pura e ele carregaria o pecado! Era o corpo e o sangue dela!

Refestelou-se até a consciência avisar do absurdo da cena, mas as lembranças vívidas das visitas dos anjos de negro o fizeram quase se esquecer daquilo. Quando a companhia tocou, ele sabia que aquela seria sua decisão final. Sujo de sangue, levantou-se e andou tremendo até a porta. A verdade estaria atrás dela. Que viesse o mundo lá fora destruí-lo ou a verdade sobre sua fé. Andou, andou... abriu a porta e viu um homem de terno e pasta na mão. Sorria, diferente da face melancólica que tinha na televisão pouco tempo antes, quando dava entrevista sobre a esposa estuprada e morta por uma gangue.

- Eu te conheço – disse.

- Claro que conhece... Eu sou seu milagre – disse, com um sorriso tão largo e com dentes tão brancos que chegavam a ser indecentes.