Valente é o Diabo na Terra do Sol

- É o Cão !!!

- Será ?

- Craro qui é, óia pa isso ! Minha Mãe Vilge Maria Nossa Sinhora, valei-me ! Eu disse pa vosmicê qui vosmicê matô gente dismais naquele úrtimo assarto. Eli veio buscá nóis.

- Era us poliça o nóis, minha prenda.

- I ingora tamo endemoninhado. Ai meu Jeisus...

- Tamo nada. Isso aí num é u Cão. Eu sei como u capeta é. É vremeio, chifrudo i tem rabo. Esse aí num é vremeio. Num tem chifre, tem pena na cachola. I rabo... peraí, deixeu vê.

- NÃO !!!! Num bula cum isso !!!

- Isso já abutuô u palitó, muié.

Ouvindo por alto aquele estranhíssimo diálogo, do qual não entendia metade das palavras, Valente inspirou profundamente. No mesmo instante a conversação ao seu redor cessou, e instalou-se um silêncio de morte. Valente estava confuso. Jamais ouvira tal idioma, tinha certeza, mas entendia algumas palavras. E o assunto o aterrorizara: o Diabo.

Aquelas pessoas estavam falando do Inominável, com a tranqüilidade de quem O conhecia intimamente. Até O descreviam com precisão. Onde ele fora parar ???

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Valente abriu os olhos lentamente, e a princípio não viu nada além de escuridão. Pouco a pouco, em meio ao seu ainda incipiente atordoamento, ele viu uma linha de luz cegante à sua frente. Um segundo depois, percebeu que a viseira de seu elmo estava abaixada. Por isso não via nada. Mas não iria mexer nela agora, não com aquelas vozes estranhas falando sobre Belzebu.

"Estou morto. É isso. E vim para o Inferno. Devem ser capetinhas, falando de seu Mestre. Mas como vim parar aqui ? Não lembro de minha morte." - pensou o assustado cavaleiro, esforçando-se para clarear a mente.

Sua última visão coerente fora um clarão de luzes multicoloridas, antes do esquecimento. Ele estava em Joyex-en-Feau, uma pequena aldeia na Aquitânia, a caminho da Terra Santa. Iria juntar-se às Cruzadas, e atravessava distraído o povoado, estranhamente desabitado. De repente, ele ouvira um grande alarido atrás de si, e vira uma multidão vociferante atrás de uma linda jovem loira. A moça estava com os longos cabelos cor de trigo soltos, esvoaçantes e desgrenhados, e suas roupas estavam rasgadas em vários lugares. Apesar da expressão enlouquecida do rosto era possível ver a beleza ímpar de sua pele clara, onde os olhos cor de ametista eram o maior destaque.

Valente ficou tão encantado com a formosura ao mesmo tempo etérea e selvagem da jovem, que sequer prestou atenção ao que estava sendo gritado. Simplesmente viu uma donzela em apuros, e aquela era sua especialidade. Ele fustigou Branco em direção à beldade, e inclinando-se para o lado arrebatou-a com um braço, colocando-a sentada à sua frente, dividindo a sela do cavalo de batalha com ele.

A bela senhorita, no entanto, longe de derramar-se em lágrimas agradecidas por ter sido salva, tornou-se ainda mais enfurecida em seus braços. Com a ira de uma tormenta, ela começou a socá-lo no elmo e no peitoral da armadura. Valente a subjugou entre os braços, mantendo o equilíbrio com dificuldade. Branco não gostou daquela confusão em seu dorso, e virou a cabeça com os dentes à mostra, tentando abocanhar a coxa esquerda da moça.

- Blanc, NON !!!

Valente estendeu o antebraço protegido pelas placas de aço da armadura, e o cavalo trincou os dentes no metal, sem atingir a donzela. Ela, ao ver seus braços livres, começou a movimentá-los para cima e para baixo em frente ao rosto do cavaleiro, entoando estranhas palavras.

- Naah piw - arr'hol - ban ! Haeeergt'deil !

- Qu'est-que c'est cette langue, gentile mademoiselle ? N'est ce pas Français.

- Grunh arr'hol. Tyr arr'hol. Naah plazcy ARR'HOL !!!!

- Excusez moi ?

"Nunca ouvi essa língua... será galês ?" - pensou ele, observando a inusitada coloração da pele, cabelos e olhos da moça - "Não... celta."

Ela continuou gritando e gesticulando para ele, numa algaravia cada vez mais alta e ululante, a ponto de dar-lhe dor de cabeça e vertigens. Branco os levara em segurança para longe de Joyex-en-Feau, e a multidão irada ficara muito para trás, bem longe de qualquer possibilidade de fazer mais mal àquela pobre jovem. Valente sentiu seu coração apertar-se ao ver o estado lastimável dos trajes da desconhecida, e ao mesmo tempo viu-se estimulado pelos vislumbres de pernas, braços e costas, que tinha através dos rasgões no tecido. Era possível entrever também os seios arredondados e belos, mas ele era um cavalheiro, com o respeito às damas profundamente inculcado em seu caráter, e não se atreveu a fixar seu olhar naquela encantadora parte da anatomia da jovem... por mais que se sentisse tentado.

Branco voltou a resfolegar, e Valente sentiu-se mais sonolento. Seus olhos embaçaram, e o mundo tornou-se nebuloso. Com um último e imperioso "Jak'lua arr'hol !!!", a bela celta acertou-lhe uma joelhada na virilha, e jogou-se para fora da sela. Valente ficou zonzo de dor, e caiu do cavalo. Sua cabeça encontrou-se violentamente com o solo, e ele viu luzes multicoloridas brilhantes... e depois mais nada.

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- Bruxa... é uma bruxa. - entendeu o cavaleiro.

Ouviu-se um som de ultraje da voz feminina que ele escutara há pouco. Não era parecida com a entonação da celta, mas se a donzela era na verdade uma feiticeira, por que não teria também a capacidade de modificar sua voz ?

A sensação seguinte, à medida em que se tornava mais lúcido, foi um calor infernal. Estava literalmente cozinhando dentro da armadura ! Com esforço, Valente sentou-se.

- Ele tá vivo ! Sai di perto, Virgulino ! Cabô di mi chamá di rezadera !

- Num tenho medo di nada, minha fulô, vosmicê sabe disso. Vamo vê si é memo o Cão.

- Num rela a mão nele, hômi ! Pelo meno manda os jagunço cercá ele premero !

Valente ouviu um resmungo, e pela estreita faixa aberta na viseira do elmo observou três pares de pés aproximarem-se dele. Com alívio, ele viu que não havia sinal de cascos. Os pés pareciam bem humanos, mesmo. Animado com a certeza de que não fora para o Inferno nem estava morto, ele ergueu o braço direito e, com a manopla, desajeitadamente ergueu a viseira.

E estremeceu violentamente.

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O mundo que o cercava era amarelo. E quente. E seco. O solo sob seu corpo estava rachado, em grandes falhas ressequidas. Não haviam árvores. Não havia verde, exceto por grandes plantas, se é que eram mesmo plantas, espinhudas. Só aquela aridez tenebrosa, e aquelas pessoas estranhas. Muito estranhas, aliás, elas mesmas amarelas e ocres, como tudo ao redor. Roupas de couro ressequido a cobrir-lhe os corpos, chapéus arredondados nas cabeças, como capacetes exóticos, estranhos objetos compridos e metálicos nas mãos, voltados para ele. Não eram chuços ou lanças, ou espadas, ou maças. Jamais vira tais objetos antes.

Havia uma mulher também, e mais um homem. Valente corou ao observar as pernas desnudas do joelho para baixo da desconhecida, algo inadmissível em sua terra, onde as damas se cobriam com longos vestidos e mantos. Certamente, a ousada moça e o homem a seu lado, de ares nada benfazejos, eram os dois que estiveram conversando perto dele. Suas peles eram trigueiras, como as dos três homens que lhe apontavam aquelas varetas metálicas. Valente arregalou os olhos.

- Muçulmanos !!! Fui capturado !

Os três homens perto dele deram um pulo para trás, com o susto, e logo depois aproximaram-se outra vez, com as fisionomias ainda mais carregadas.

- Du qui qui ele chamô nóis ? Mula manos ? Eli chamô nóis di burro ? - perguntou o mais feroz dos guerreiros, olhando intrigado para os outros dois.

- Num sei, tranquera ! - respondeu um dos outros dois.

- Quem é vosmicê, moço ? Qui porquera é essa qui vosmicê veste ? - intrometeu-se a moça, calando os homens.

- Queta, Maria Bonita. Eu falo aqui. - disse o homem magro ao lado dela. - Cumé qui vosmicê intrô nu meu iscondirijo ?

- Mil perdões, meu senhor, senhorita. - respondeu Valente, erguendo-se e fazendo uma mesura para Maria. Falando daquele jeito, certamente não eram infiéis. - Não adentrei vossa propriedade privada com propósitos espúrios, posso afirmar. Fui eu mesmo vítima de um maléfico feitiço.

Valente percebeu, espantado, que a maldição da bruxa, ao mesmo tempo que o transportara para aquele bizarro local, permitia-lhe falar a língua do lugar e compreender os nativos... mais ou menos. Sentiu-se ainda mais aliviado.

- Peste ! Qui raio di istranjero é esse qui vosmicê tá falano, seu cabra ?

- Meu caríssimo senhor, não pertenço ao gênero caprino, sou um homem, como vossa excelência mesmo. E não tenho a Peste Negra, mantenho-me limpo, sou um cavaleiro que muito aprecia as abluções sanitárias matinais. - declarou o orgulhoso cavaleiro.

- Ele num fala feito nóis não, Lampião. Pa eu, é o Coisa Ruim. - opinou Raimundo, um dos três jagunços de Virgulino, com o dedo indicador direito enfiado no nariz. Depois de catucar por ali alguns segundos, seu dedo saiu com uma grande quantidade de secreção, que ele passou a estudar com grande interesse.

- Mais num tem rabo nu fiofó. - revelou Feliciano, o segundo jagunço, que dera a volta por trás de Valente, inspecionando a armadura de cima a baixo. - Nem chifre. Eu acho ele é adamado, cum essas pena di galinha nu cucuruto.

- São di galinha não, seu abestado ! Donde já si viu pena di galinha azur ? Eu achei uma belezura, memo ele seno u Cão. - disse Maria Bonita.

- Oxe, já mandei ficá queta ! Isso num é cunversa di muié. - reclamou Virgulino.

Depois de olhar zangado para Maria Bonita, Lampião pegou a garrucha de Raimundo e aproximou-se ele mesmo de Valente, mirando os cândidos olhos azuis que eram visíveis pela viseira.

Valente ignorou-o. Olhou para Raimundo, que agora fazia uma bola entre o polegar e o indicador com a secreção esverdeada que retirara do nariz, e interpelou-o zangado.

- Meu caro senhor, isso não é um comportamento adequado em frente a uma dama ! Posso ver que não é versado nas artes galantes e, não sendo, poderia aprender neste momento, e eclipsar tal repelente transudato de nossas, minhas e da jovem lady, quero dizer, vistas.

Os cinco nordestinos olharam um para o outro, confusos. Lampião mirou Justino, o terceiro jagunço, e ordenou em voz seca:

- Manda esse fio duma qui ronca e fuça po Pai dele.

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Valente olhava estarrecido para Justino. O homem apontou aquela estranha vareta metálica para seu peito, e enganchou o dedo em uma roda pequena que ficava próxima do rosto. Ele não entendeu nada do que estava acontecendo. Achava ser sua obrigação levar educação e respeito às damas em todas as paragens onde fosse, como rezavam as regras da Cavalaria. E nunca imaginaria que aquelas pessoas, apesar de seu péssimo comportamento e estranha língua e maneiras, fossem hostis. Será que eram MESMO muçulmanos, então, e ele se enganara em seu julgamento inicial de achá-los boas pessoas ?

Justino fechou um olho, aproximando o outro de um orifício vazio na parte de cima da vareta.

- NÃO !!!

Era Maria Bonita.

- Pére, Virgulino. Mande matá o tar inda não. Eu quasi num saio daqui, vivo numa gastura danada, quereno saber das coisa da capitar. Quem sabe esse estrupício num é di lá ?

- Tome tento, xodó ! E desdi quando os cabra da cidade veste essas coisa arrevesada ? Isso aí é o Cão memo !!! - irritou-se Virgulino.

- Esta, monsieur e mademoiselle, é uma legítima armadura completa confeccionada por Hunald Straynarn, o melhor ferreiro e armeiro de toda a Europa, um escocês das Terras Altas. É feita de aço temperado espanhol, com filigranas de prata pura marchetada. Custou-me o preço dos atavios completos de três cavaleiros britânicos, que venci em combate justo e leal em torneios reais. - declarou em alto e bom som o ofendidíssimo Valente, que não agüentara ver tal mostra de ignorância ao vestir por parte daqueles rústicos. Ora, como era possível desconhecer uma obra de arte como a que estava portando ?

- Vixe, qui esse istranjero isquisito ingora mi deu foi nó nas tripa. Vô obrá ali atráis do mandacaru. - declarou Feliciano.

- Quem mandô vosmicê si intupi di calango cum jirimum, sarapatel e farinha ? Eu disse pa ocê, mais vosmicê é aluado memo. - resmungou Raimundo.

- Chega desse furdunço !!! - berrou Lampião. - Oxente, eu queru essi cabra da mulestia no país dos pé junto !!! I é agora !!!!

- Mais Virgulino, painho, óia essas lata do Cão, serve pa gente véve mió !!! Dá pa fazê panela, prato, cafetera, pente... - opinou Maria Bonita.

- Qui marcriação é essa, muié ? Tá dano pa mi aperreá agora ? Maluqueceu ? A gente matamo ele, i adispois tiramo os ferro.

- Eu quero vê cumé o Coisa Ruim debaxo das tralha... e vivo. Ah, meu dengo, cê si esqueceu queu tô prenhe ?

Virgulino olhou-a com orgulho.

- Isquici não, mais vosmicê é uma paridera porreta, num carece de vê u Cramuião pa nosso minino nascê mió.

- Carece sim ! Craro qui carece !!! Magina nosso minino, o cabra macho qui vai sê, adispois de vê o Capetado, logo dantes di nacido !!! Vai tê o corpo fechado pa carqué pobrema di briga, di bala, di faca, micróbo o duença dos nelvo !!!

- Vosmicê é isperta memo, muié. Coisa Ruim o não, ele vai ficá sem a casca. Justino, Raimundo !!! Vamu disintalá esse jegue.

Valente mais uma vez não conseguiu controlar a língua. Cão, cabra, jegue ??? Aquele povo não tinha olhos para ver ? Ouvidos para escutar sua voz de homem, de gentil-homem normando ?

- Senhores e senhorita, sou um ser humano como vós !!! Já declarei e vos repito, não pertenço ao gênero irracional ! Posso atestar meus predicados intelectuais sem sombra de dúvida, possuo vários pergaminh....

- CALUDA !!!! Si assunte, Capeta, morra fazeno orguio a seu Pai ! - rosnou Lampião.

Depois daquela "frase", da qual não entendeu patavina, Valente resolveu aquietar-se. Não era possível tergiversar com semelhante súcia.

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- Vamu usá as pexera, essa lata aí tem fuça de braba.

- Tá bão, Lampião. - responderam Raimundo e Justino em coro, retirando duas enormes facas das perneiras de seus trajes.

Feliciano retornou, e ficou animado com a perspectiva de tirar Valente de sua armadura.

- Eita qui vai sê um arvoroço danado di bão ! Só farta um porco baé e um xote pa nóis fazê fuzuê.

- Tu é memo aluado, hem, Feliciano ? Cabô de dexá as tripa ali no mandacaru, i já tá pensano in cumida ? Arre !!! - retorquiu Raimundo.

- Num arresisto a pensá in cumida. Mió qui cumida, só um banho de chero das muié dama di Sinhá Arlinda.

- Ai, as muié da vida di Sinhá Arlinda... tô percisando dum chamego delas, dum cafuné, duma fungada nu pé du ovido... Daqui a poco eu fico é di calundú, di tanta vontadi !

- São umas quenga arretada memo !!!

Enquanto Feliciano e Raimundo conversavam, preparando-se para trabalhar no cavaleiro, sua vítima observava a tudo aterrorizado.

Valente estava agora, além de amordaçado com uma meia imunda cheirando a podre, por conta de seu linguajar incessante, que eles classificaram de “doidice istranjera”, imobilizado no chão pelo taciturno Justino, que não era de falar muito, ao contrário dos outros dois jagunços. Virgulino terminou de afiar sua imensa faca, e também aproximou-se de Valente. Os dois, ele e Justino, começaram a trabalhar na cabeça do cavaleiro. Catucaram seu elmo por todos os lados, tentando abrir a lateral. O desafortunado cavaleiro percebeu que, sem sombra de dúvida, aqueles árabes iriam matá-lo.

Falando muito baixinho, por sob a meia repulsiva que lhe tolhia as palavras, o nobre e virtuoso normando iniciou suas orações, entregando sua alma imortal e pura a Deus.

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Duas horas depois, Valente estava pendurado em um pau de arara... nu em pêlo. Todos os componentes de sua armadura - elmo, peitoral, costas, ombreiras, braçadeiras, manoplas, proteção da virilha, perneiras, botas - estavam espalhados pelo chão. Também suas ceroulas, túnica, capa e cota de malha leve. Maria Bonita, depois de lançar um olhar interessado à anatomia do nobre, se esquecera de sua presença, desapontada de ver o Coisa Ruim no formato de um homem comum, e acariciava encantada as plumas tingidas de azul de seu elmo.

Verdade que ela arregalara os olhos para o vermelho flamejante de sua guedelha ruiva, dizendo para os outros que aquela era mesmo a cor que os cabelos do filho dos Infernos deveriam ter. Os outros concordaram, aterrados e ao mesmo tempo eufóricos de verem suas suspeitas confirmadas: Belzebu estava entre eles. Se aquilo era a morte para todos ou fortuna certa, ainda era coisa para se averiguar.

De qualquer jeito, como eram todos tementes a Deus, resolveram não submeter-se à ira divina de Jesus, e ajudar no trabalho do Senhor, pondo fim no Diabo... o azarado Valente, cujo único pecado fora o de ter salvo uma bruxa da fogueira. O normando refletiu que tal atitude era, em verdade, motivo cabal para ver-se submetido a tal castigo. Decidiu, em um rasgo de gloriosa dignidade, enfrentar a ignonímia com garbo e coragem. Se ofendera a Deus em vida, apaziguá-lo-ia na morte. A idéia de ser um mártir sempre o agradara sobremaneira.

Sua disposição santificada estava sendo posta à prova naquele momento, porém. Despido e pendurado de cabeça para baixo, com os pés e mãos atados, os quatro juntos, ele estava semi embolado, extremamente desconfortável, já ficando com os membros dormentes, e sua coluna vertebral fora curvada além do suportável. O Sol começou a se pôr, e trouxe-lhe o alívio da ligeira diminuição do calor. A pele do pobre Valente estava ardendo, pela exposição excessiva aos raios solares. E os infiéis pareciam não estar ainda satisfeitos.

- Há, óia só us badulaque dele ! Parece ispiga di mio qui num vingô ! - declarou Feliciano, cutucando com a ponta da carabina as intimidades do cavaleiro.

- Num manga dele não, hômi, qui sua bagacera tumém é das pequena. - retrucou Raimundo, com um brilho sarcástico no olhar.

Maria Bonita deu uma risada debochada, e depois de olhar mais uma vez para a virilha de Valente, voltou a acariciar as plumas azuis do elmo com ar sonhador.

- Vamu pará cum essa zoera !!! Num quero esses assunto perto da minha prenda. Cês tem uma tarefa a fazê, vamu cum isso. - interrompeu-os Virgulino, irritado. - Mulé, vai catá seu urinor. E um candiero tamém, qui tá ficano iscuro dismais.

- Pra mode di que vosmicê qué meu urinor ?

- Busca logo, muié ! Num me apoquente, i mi obedeça sem recramação.

- Tá bão. Eu busco. Mais num quero forró cum meu urinor de loça. Sinão eu viro muié macho, si viro !

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Valente acordou sob uma luz radiosa, muito branca, num corredor de paz. Não sentia mais peso algum. Ou revolta, ou angústia, ou tristeza. Naquele túnel de alva maciez, sua alma estava enfim liberta. A sensação predominante era de retorno à casa. Como que sob uma bruma, ele reviu seus últimos momentos na Terra...

Maria Bonita voltara com o tal apetrecho chamado urinol, que era uma grande tigela bojuda e alta, com uma alça robusta na parede externa. Lampião pegou o tal objeto e o entregou a Raimundo, ordenando que o segurasse sob a cabeça de Valente.

- Justino, queru vê u Cão istrebuchano.

- Ele vai si iscafedê di vorta pa casa dele é agora.

- Nu bucho premero !!! Nu bucho !!! - gritou Feliciano. Valente, que fechara os olhos à espera do momento final, reconhecia-os pelas vozes.

- Qui qui tem o bucho ? - era Virgulino.

- Eu iscutei qui os capeta guarda oro no bucho, nas tripa.

- Qui carraspana é essa ? Dondi vosmicê tirô essa tramoia ?

- Foi o Totonho di Arauá qui mi falô.

- Totonho di Arauá !!! Aquele tar ali é ruim das idéia, i todo mundo sabe ! Só ocê memo, burro qui é, pa criditá naquele labregu. - era Raimundo, entrando na conversa entre Feliciano e Virgulino.

- Oxe, nada di bucho. I esse aqui é u Demo, não um capetinha. Justino, rasga us grugumio. Raimundo, cata o sangue qui ispirrá nu urinor. Nóis vai bebê u sangue du Coisa Ruim, pa ficá tudo di corpo fechado. - decidiu Lampião.

- Tá certo, chefe. - respondeu baixinho a voz grossa de Justino.

Um segundo depois, Valente sentiu a fria lâmina da afiada peixeira cortando sua garganta de lado a lado. O frio tornou-se calor, quando ele afogou-se em seu próprio sangue. E veio a trilha de luz...

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Naquele lugar de paz abençoada e brancura ofuscante, Valente percorreu um caminho, sentia agora, algo familiar. Sua felicidade não teve limites, ao perceber que estava no Paraíso. Valera a pena ser um servo do Senhor, um paladino da justiça, o guerreiro das donzelas.

O cavaleiro normando, outra vez com armadura completa, esta de prata pura, chegou a altíssimos portões de ouro. Um velhote alto e de longas barbas brancas estava ao lado da entrada, com uma grande chave nas mãos. Seu rosto era extremamente bondoso, seu sorriso beatífico.

Valente enfim chegou ao lado de São Pedro, o Porteiro do Éden.

O santo espírito, ao vê-lo, fez uma inusitada expressão de desalento, e disparou:

- Essa não, Valente. Vós outra vez ???

Rio de Janeiro, 28 de novembro de 2001.

PS: O personagem Valente é criação do escritor de terror Adriano Siqueira (criador do grupo de discussão do Yahoogrupos, Adorável Noite), dentro do grupo Tinta Rubra. Martha Argel, a autora do livro "Relações de Sangue" (Editora Novo Século) e também 'tinteira', escreveu um conto no qual sua vampira Lucila encontra-se com Valente, um legítimo cavaleiro medieval, gerando a conseqüência inevitável. Virou tradição no Tinta Rubra, então, matar Valente de todas as formas: esquartejado, afogado, envenenado, assado, baleado, enforcado, esfaqueado, eletrocutado... cada um dos escritores do grupo fez sua parte. O conto que você acabou de ler foi a minha. E ele volta, sempre, para mais e mais vezes ser morto de formas criativas e interessantes. :-)))

Mônica Virgo
Enviado por Mônica Virgo em 06/04/2005
Reeditado em 06/04/2005
Código do texto: T10095