DO FUNDO DO POÇO ÀS ESTRELAS

A estrada parecia não ter fim...

Em cada cume alcançado, desvendavam-se novos e infindáveis caminhos, cada vez mais estreitos, pedregosos e desérticos...

Nas costas uma bagagem brutal, cada vez mais pesada, exigindo-me todas as forças, todo os recursos!

Mas, eu tinha que seguir em frente... Essa era a minha sina.

Seguia de cabeça “erguida”, olhos no “horizonte”, sisudo, compenetrado diante do descomunal desafio que me impusera...

E como um soldado obediente caminhava, passo a passo no cumprimento do “dever”, sem fraqueza, sem contestação nem blasfêmias, cuidando-me excessivamente para não vacilar por um instante que fosse...

E quando a revolta ou o desalento desafiavam minhas emoções, abafava-os, transformando-os num monte de cinzas...

Não obstante o meu descomunal empenho, a travessia não prometia fim... O horizonte não apresentava ao menos um espectro de um destino final, de uma chegada, de uma estação, de um oásis, ou uma minúscula luz no fim do túnel, que fosse!

Heroicamente eu seguia, orgulhoso de minha garra, convicto do preço que pagava pela aposta que fazia! Convicto da recompensa a ser recebida ao final do sofrimento suportado.

No lombo, o grande e “precioso” fardo, bem amarrado, protegido... Era preciso leva-lo! Missão inadiável, intransferível.

Mas minhas forças aos poucos foram se esvaindo... As energias tornando-se insuficientes... No entanto, eu teimava em prosseguir. Afinal essa era a minha sina!

Que escolha eu tinha? Pensava sempre! Esse é o meu karma! Concatenava com convicção. Era a minha aposta de vida, meu maior empreendimento... e por ele daria quantas vidas fossem necessárias!

Um dia, entretanto apresentou-se diferente dos demais...

Minhas pernas e braços não mais queriam se mover na continuidade da jornada...

Minha visão se tornou turva e embaçada... Minha vontade se expirava aos poucos... Meus sentidos se confundiam...

E como um burro velho de carga, desabei.

Desabei espetacularmente sob o peso que não pude mais sustentar...

Arriei as quatro “patas” e me espatifei no chão, onde permaneci como uma estrela, sem brilho, morta, acomodando-me no fundo de um buraco negro, habitação da morte, vale do silêncio das desolações...

Era o fim... O fracasso... A derrota...

Senti o amargo do fel da não conquista, da não vitória...

Antevi a vergonha de ter de encarar o momento daqueles que iriam formar uma roda em torno de mim e dizer: Coitado! Somente sofreu na vida... Que Deus o tenha! Que o conserve em bom lugar! Agora vai descansar!...

Estava diante da falência total, sem possibilidades de apelos ou recursos. Isolado de tudo e de todos, física e espiritualmente...

As cargas se espalharam por todos os lados, rompidas em seus fortes, antigos e bem feitos amarrios.

Tudo havia se acabado, concluí, sem emoções que me fizessem chorar... Afinal, um verdadeiro homem não chora! Nem mesmo na derradeira hora...

Ao menos estivesse numa praia para morrer em efêmero conforto... Nem isso!

Estava sob seixos pontiagudos e ferinos, rodeados de sarças e espinheiros...

Entreguei-me. O que achava que nunca faria, fiz: entregar-me.

Entreguei minhas últimas esperanças, minha fé, minha luta, minha coragem, minha vida, meus propósitos, meus sonhos... Entreguei tudo.

Esperei... Esperei, sem esperanças, mas a morte não veio!...

Percebi que para baixo não tinha mais onde descer e subir eu não podia... Era o famigerado "fundo do poço" onde eu me encontrava.

Manifestou-me num instante um certo conforto que roçou sutilmente os meus sentidos, causando-me estranheza e perplexidade...

A carga estava espalhada ao derredor, e como escombros permaneciam inertes, disformes, tumultuadas.

E agora? Perguntei-me: O que fazer?

Não há mais ideal de vida para seguir e nem a morte veio pra me buscar! Estou entre a vida e a morte, ou seja, em lugar nenhum, orbitando através do nada, consegui meditar...

No entanto, ainda respiro! Concatenei... Meus pulmões pedem ar, meu sangue busca energias, meu coração bombeia e renova toda a seiva que corre em minhas veias... Meus olhos persistem em ver... Meus ouvidos se aguçam para ouvir... Minha boca permanece sedenta e ensaia falar...

De repente, algo me levou a olhar em derredor... Lá estavam elas, as tão velhas e pesadas cargas pelas quais empregara todas as minhas energias em toda minha romagem...

Voltei a mim mesmo. Aos poucos fui contraindo minhas pernas e braços e senti que meus equipamentos respondiam normalmente a minha vontade.

Eu que achei que tinha dado tudo que me restava, percebi que minhas entranhas ainda pulsavam com certo vigor!

Aos poucos fui me pondo em pé e senti que estava leve, livre... Afinal, a canga e a carga já não estavam sobre mim...

Ao contrário do que devesse ser o normal, não me desalentei e nem fui inquirido intimamente pela idéia de que tivesse que tomar novamente aqueles fardos e seguir a estrada que ainda se descortinava diante de mim, mesmo que um tanto obnubilada...

Aqueles trastes pareciam não mais me pertencer!...

Estranho! Eu que os carregara e os protegera por tanto tempo agora pareciam corpos distantes, desconhecidos... Causavam-me nojo, repulsa!

Renovando-me aos poucos, coloquei-me firme sobre os meus artelhos e comecei a examinar minuciosamente aqueles farnéis espatifados.

Foquei a vista ao primeiro vulto que me acercara, e vi que eram grandes fardos que derramavam preocupações...

Lancei a vista ao lado e vi tonéis enormes de mágoas, rancores e ressentimentos, vazando aos borbotões...

Estupefato e surpreso, fui percorrendo os olhos e observei feixes de ilusões e fantasias entrelaçadas, emaranhadas e confusas...

Indignado, notei também diversas caixas de apegos que se descolavam e se deterioravam com facilidade... vi ferros retorcidos de tensões, agora estáticos... tijolos de indiferença espedaçados... flores artificiais de personalismos, toscas, frias... peças enormes de ansiedades agora mórbidas, exaustas e suplicantes...

Fui caindo em mim e me perguntei: Esse é o conteúdo da carga que eu transportava? Esse o patrimônio que constituí a justo e suado esforço, e para o qual fiz todos os sacrifícios, enfrentei todas as batalhas, encarei todas as tempestades e transladava valente a caminho da conquista do pódio final de minha luta?...

E porque arrastava tanta inutilidade? Tanto entulho, tendo-os por preciosos!?...

Qual a justificativa de empregar tanta vida puxando estes vagões de inutilidades?

Afinal, Deus, perguntei, quem me impôs tamanha e improfícua tarefa... Tão cruel escravidão e tanto tempo de tristesa e solidão?

Um reflexo de luz bateu em meus olhos, e ao focaliza-lo, identifiquei que um pedaço de espelho, desprendido de um pacote de narcisismo esparramado no chão, mostrou o meu rosto desapontado e tristonho!

Entendi o recado e mais uma vez desabei...

Só que desta vez, desabei em prantos...

Prantos convulsivos, sentidos, inquisidores, punitivos... Mas também consoladores!...

Depois de não ter mais o que chorar, cientifiquei-me de que só me restava recomeçar.

Mas, como seguir sem levar nada, sem rédea nem bridão, nem canga, nem a espora do "viver"? Eu, que estava acostumado aos desafios, às lutas, às tempestades e ostensivos contra-tempos?

Como um combatente em busca de suas honrarias poderia seguir sem suas armas, seus aparatos, sem inimigos? Como seguir de mãos vazias? Indaguei!

De repente vi que algo se contorcia entre os escombros:

Eram esperanças semi-enforcadas, desejos contidos pedindo socorro, coragens amordaçadas debatendo-se, amores engarrafados querendo se expandir, fé abalada atacada por mentiras e condicionamentos doentios pedindo o alimento da razão, alegrias seqüestradas contorcendo-se nos cativeiros do orgulho, aguardando socorro...

Tomei correndo esses que ainda sobreviviam, ja que eram as únicas "mercadorias" que suportaram e resistiram ao fatal desmoronamento...

Aos poucos fui desenrolando-os, limpando-os, cuidando-os, desprendendo-os, libertando-os...

Ao recuperá-los, ainda que frágeis e desfalecidos me intuiram como a me dizer: Sigamos em frente... Sempre estivemos e estaremos ao seu lado!

De súbito, percebi que a estrada também já não era a mesma: Sarças e espinheiros davam lugar a flores que brotavam...

As árvores tenebrosas e ressequidas, agora estavam eclodindo folhas tenras e verdes...

Aranhas e escorpiões transformavam-se em lindas borboletas...

Morcegos batiam em retirada, enquanto beija-flores e abelhas iam povoando o novo ambiente que se plasmava...

Olhei pela última vez os escombros e constatei que nada mais havia que pudesse ter serventia...

Tomei as mãos da esperança, da fé, do otimismo, da coragem e de todos os que eram os meus verdadeiros aliados... Elevei o olhar e vi uma estrela que, sorrindo, que me convidava a seguir e subir.

Agradeci ao Pai da Eternidade e retomei a estrada do infinito aprendizado e busca das reais conquistas...

Agora estava mais livre, sem as inúteis e pesadas cargas que descartara, deixando-as jazerem à beira da velha estrada pela qual nunca mais terei que atravessar.

PAZ!

Tião Luz
Enviado por Tião Luz em 24/03/2006
Reeditado em 12/11/2012
Código do texto: T127793
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