Barril de Pólvora - Parte III

Era meu último ano na faculdade. Após o festival em Corumbá, o único emprego que arrumei foi num site de garagem. Além disso, também fiz algumas pesquisas que vendia para colegas de sala. Havia perdido todo o tesão inicial pelo jornalismo impresso de Campo Grande. Um sistema viciado em editores canalhas, patrões dinheiristas e jornalistas de boutique. Uma verdadeira composição mancomunada (e manipulada) por “ventríloquos de luxo e papagaios enfeitados”. Com o fim do curso, estava na rua, com o diploma, mas sem nada. Foram quatro anos de muitos empréstimos (alguns até hoje sem pagamento), passagens por casa de parentes, favores de amigos, roubos em livrarias, transações de maconha e muitos outros sacrifícios para terminar a faculdade, até que, em dezembro de 2005, pude finalmente levar o tal canudo.

Sem nenhuma perspectiva de emprego em Campo Grande, peguei dinheiro emprestado com um primo que morava em Bali, na Indonésia. Ele havia fugido do Japão - onde trabalhava como operário - porque a polícia estava atrás dele por causa de dez pés de maconha que ele tinha negociado com um boliviano, que acabou sendo preso e o entregou à polícia japonesa. Beto Pantaneiro, 31, meu primo, mais conhecido como o “surfista de Xaráes”, cultivou as plantas de maconha durante sete meses, dentro de um apartamento em Kosai (Shizuoka), sob um aparato de luzes artificiais. No dia da negociação, cada uma delas tinha aproximadamente um metro e meio, avaliadas em três mil dólares a unidade.

Com a grana emprestada (US$ 600), atravessei a Bolívia, até Vallegrande. E antes de comprar a passagem na rodoviária, levei a bolsa da máquina fotográfica para uma pequena reforma no sapateiro mais antigo da Rua Sete, o paraguaio Vargas. Um ex-jogador de futebol que também precisou passar pela mais ingrata das missões confiadas a um zagueiro: marcar ninguém menos que Pelé, numa partida válida pelo Campeonato Nacional da época, em 1965, entre Comercial (atualmente na série B do campeonato Estadual de MS) e Santos. O palco do confronto, com vitória do time santista por 4 a 1, havia sido o Estádio Belmar Fidalgo, hoje transformado em praça de exercícios da high sociedade campo-grandense. Vargas, que abriu a sapataria assim que pendurou as chuteiras é amigo de outro paraguaio: Justo Cuellar, ex-guerrilheiro e atual dono de um boteco quase em frente ao Mercado Municipal. E essa foi a personagem da minha última matéria em Campo Grande, um perfil elaborado para a revista Contexto, escrito em parceria com uma ex-namorada da faculdade.

Epopéia de um guerreiro

A história de um “ terrorista” paraguaio foragido no Brasil

Danilo Nuha

Tatiana Sodré

Ventilador barulhento. Cama desmontável. Cotidiano sufocante. A partir das seis da manhã, a roda de cachaça começa cedo. Feirantes do Mercado Municipal são os primeiros a chegar. Na sequência, é a vez de dois ou três vigias do centro e dos taxistas que amanheceram na Praça Oshiro Takemori. Por último, uma turma de mendigos que há anos circula pela redondeza. Alguns bebem café preto sem açucar (para aliviar a ressaca), mas a maioria continua firme na aguardente (para alongar a brisa).

Pendurado na parede, quase escondido entre resultados do jogo do bicho, o relógio caminha lento, arrastado, a conta gotas, como se fosse um sacrifício. A agonia se prolonga. Horas perdidas num oceano vazio. A boca da noite, quieta e sorrateira, anuncia que é hora de fechar. Um gari, ainda de uniforme, se toca da situação e pede a saidera. Mas, ao invés de voltar para casa, Seu Justo prefere dormir no próprio botequim.

__Moro muito longe. Às vezes não compensa. Sem falar na preocupação que eu tenho com os trombadinhas, que vira e mexe têm entrado pelo telhado atrás de alguma coisa que sirva na troca por pasta-base -, comenta Seu Justo, num papo manso, pauseado.

Perto das oito da noite, com a rua vazia, a porta finalmente se fecha. É outra roda viva que se acaba. Seu Justo está cansado, prefere não falar.

Volto no dia seguinte, ansioso pelas histórias del viejo Justo. Meio-dia. Senegal na Rua 26 de agosto. Vestida apenas com uma camiseta, a mendiga pede carqueja. Está sem calcinha. Feridas por toda a pele. Cicatriz de faca no pescoço. O cabelo, cheio de grama, ensebado. Seu Justo serve a dose e aponta para a mulher, nua:

__Ela chega a passar várias semanas vestida só com uma camiseta. E quando lhe dão uma calça, ela joga fora. Nos dias de frio, ela some.

Despejei um resto de Caracu no copo enquanto observava a mulher matar a carqueja numa só paulada. Acendi um cigarro e, aos poucos, fui conhecendo um pouco mais sobre os motivos que levaram um hoje pacífico dono de botequim a ter entrado na luta armada contra a ditadura militar no Paraguay.

A Missão

Criado sob uma rígida disciplina familiar, onde foi acostumado desde cedo ao trabalho braçal, Seu Justo nasceu em 1937 na pequena cidade de Encarnación, Paraguay. E pouco tempo depois de completar 18 anos (em 1955), quando ainda era apenas um jovem e esforçado estudante de contabilidade, um acontecimento mudou para sempre a trajetória de sua vida.

Justo, que já havia tido contato com alguns militantes políticos, foi selecionado pelo Partido Liberal para executar uma difícil missão: se alistar no exército paraguaio com o objetivo de aliciar soldados do Regimento de Cavalaria (RC-2), em Assunción, para se rebelarem contra a ditadura de Alfredo Stroessner, comandante-chefe das forças armadas e autor do golpe de Estado que derrubou o presidente Frederico Chavez em 1954. Stroessner, com apoio do exército, reprimiu violentamente a oposição e transformou o Paraguay num refúgio para criminosos de guerra nazistas. Foi reeleito oito vezes consecutivas (1958, 1963, 1968, 1973, 1978, 1983, 1988) sendo deposto em 1989 pelo general Andrés Rodrígues, membro do partido Colorado.

Geladeira de carne: Viva

A primeira missão de Justo pelo partido foi descoberta dois anos depois, em 1957. Alertado por alguns rebeldes de que sua verdadeira identidade havia sido descoberta pelo exército, Justo, que já estava com um plano de fuga elaborado, decidiu passar na casa de uma namorada antes de sair da cidade.

__Esse foi o vacilo. Pois quando fiquei sabendo que a casa tinha caído, já deveria ter fugido na mesma hora. Só que, mesmo correndo perigo, ainda decidi ver minha namorada pela última vez, e foi nisso que eles aproveitaram pra me prender.

Preso pela polícia civil em Assunción, Justo foi torturado durante 8 dias consecutivos.

__Éramos espancados freqüentemente. Fiquei a maior parte do tempo trancado em uma geladeira, passando um frio inacreditável e levando choques entre pequenos intervalos. Foi uma experiência terrível para um jovem de 19 anos.

Após três meses de prisão, Justo foi mandado para um porão da Marinha paraguaia. Nesse local, o deixaram quinze dias “num buraco completamente escuro”. E perto de completar cinqüenta anos, o ex-guerrilheiro não esquece de um só detalhe.

__Ficar todo esse tempo numa solitária fria, fedorenta, comendo lavagem em plena escuridão, foi um dos piores momentos da minha vida. Isso sem contar a tortura psicológica, pois além dos espancamentos, a gente pensava que poderia ser fuzilado a qualquer momento.

Bastante debilitado, Justo foi transferido para a parte ocidental do Paraguay, o Chaco, extensa região que ocupa 61% do território paraguaio. Depois da Amazônia, essa é a segunda maior massa florestal da América. No Chaco, ele passou 8 meses fazendo trabalhos forçados, com racionamento de água e comida.

__Recebíamos o necessário para ficar de pé. Posso atribuir minha sobrevivência à força da juventude. Muitos companheiros não suportaram as péssimas condições (além das torturas) e acabaram morrendo. A prisão do Chaco era um lugar realmente assustador.

Segundo Justo, a morte estava próxima. Ele e mais 30 prisioneiros tiveram que abrir picadas em quilômetros de mata fechada para chegar até a fronteira mais próxima.

__Como estávamos prestes a morrer, decidimos tentar nossa liberdade. Montamos um plano de fuga e, no dia 25 de agosto de 1957, dominamos os guardas e fugimos. Alguns companheiros voltaram, pois a mata era muito selvagem. Estávamos sem nada pra comer, então tivemos que comer um cavalo velho que matamos no caminho.

A fuga terminou em uma fazenda chamada Barranco Branco, perto do município de Porto Murtinho (MS).

Munido de informações transmitidas pela inteligência paraguaia, o exército brasileiro já aguardava pelos fugitivos. Na chegada, os guerrilheiros (quase todos bastante doentes) foram escoltados pelos militares até Campo Grande, onde foram apresentados à imprensa como terroristas. Ainda detido, Justo concedeu uma entrevista para o jornal Correio do Estado, onde conheceu o dono do jornal, Barbosa Rodrigues, que o convidou para trabalhar na gráfica.

Mas a vida tranqüila como tipógrafo de jornal durou até 1965, quando Justo foi procurado por um homem que se identificou como coronel Arruas, que o chamou para formar um grupo guerrilheiro em Campo Grande. O objetivo do grupo era tentar um novo golpe contra Strossner, que continuava à frente do poder paraguaio. Mas, antes de entrar em ação (quando ainda montavam um arsenal de armas), o plano dos guerrilheiros foi descoberto pelo exército brasileiro. E os rebeldes foram encaminhados para uma cela do 10° GECAM, onde passaram cinco meses, incomunicáveis.

__Minha preocupação era ser extraditado para o Paraguay. Porque se isso acontecesse seríamos todos fuzilados.

Julgado pela justiça brasileira (que optou pela não extradição), o grupo seguiu para uma prisão em Cuiabá-MT. Justo ficou detido na capital mato-grossensse cerca de duas semanas. Depois disso, o paraguaio recebeu um indulto de liberdade que o permitiu se exilar em solo brasileiro.

De volta a Campo Grande, Justo reassumiu o cargo de tipógrafo no Correio do Estado, onde trabalhou até 1968. E com a chegada dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, ele recebeu uma nova proposta para trabalhar no Diário da Serra, permanecendo na gráfica até 1975. Nessa época, Justo presenciou, novamente, a ação de militares, dessa vez, brasileiros.

__ Muitos amigos que eu tinha na imprensa sofreram bastante nesse período. Pois a polícia federal era uma presença constante em nosso cotidiano. E como eu já estava sob vigilância (por causa do meu passado), não pude ter um papel muito relevante nessa luta. Mas, apesar de tudo, vou morrer com a certeza de ter feito tudo o que estava ao meu alcance.

Hoje em dia, Justo Cuellar é um senhor de 66 anos que dificilmente lembra um guerrilheiro dos tempos da ditadura. Mas num simples movimento como o de abrir uma garrafa, ainda é possível observar um homem inquieto, inconformado, que guarda consigo a mesma postura de perseverança e determinação antes aplicadas na luta pela sobrevivência contra torturadores covardes, pântanos sem saída e calabouços medievais construídos em pleno século XX.

E longe de ter o reconhecimento merecido, Seu Justo parece não se incomodar nem um pouco com o anonimato silencioso e, a sua maneira, continua sendo um feroz e combativo militante na luta pela justiça, pela igualdade social e por aquele que deveria ser um direito básico na vida de qualquer ser humano: liberdade.

A revista Contexto não passou da primeira edição, assim como o namoro, que não chegou ao primeiro mês. E ainda com o dinheiro do último empréstimo, comprei uma passagem até Corumbá. Na chegada, conheci Patrícia, uma guia turística paranaense que que trabalhava num hotel da cidade. Graças a ela (e após várias cervejas no cais do porto), me esqueci - durante alguns dias - da namorada que recém havia me demitido. No dia seguinte, aproveitei que estava em Corumbá e fui comprar a maconha que levaria na viagem. Meu contato na “cidade branca” era um boliviano chamado Céspedes, que me vendeu 500 gramas, direto da prensa. Me despedi de Patrícia em frente ao Esporte Clube Corumbaense e comprei um bilhete no Trem da Morte (que desse nome já não tem mais nada, a não ser o rum falsificado vendido pelos piratas de vagão).