O despertar de uma nova vida

Acordei assustado. Uma intensa claridade fazia uma pressão insuportável em meus olhos, provocando a formação de inúmeras gotículas de lágrima. Minha respiração estava desregulada, eu estava ofegante. Meus batimentos estavam acelerados. Eu estava com medo. Uma aflição inexplicável, uma tensão indescritível. Nenhum movimento era possível. Todos os meus membros permaneciam estáticos, ficando disponível apenas o cérebro a fim de que eu ainda pudesse pensar. Sendo bastante honesto, passado o susto, comecei a deliciar a situação, pois iniciei uma viagem por uma estrada muito extensa, conturbada e sem sinalização, começara eu a trafegar pela rodovia da minha própria vida.

Inicialmente, lembrei – com muita dificuldade – os meus tempos pós-natais. Nasci com muita saúde. Eu era um bebê esplendoroso de semblante puro e inocente. Nas minhas primeiras visitas, fui muito elogiado, levando meus pais a uma constante exaltação de orgulho em ter concebido uma criança tão linda e tão perfeita. As orações em agradecimento a Deus eram obrigatórias em minha casa. Rapidamente fui crescendo. Logo vieram as palavras iniciais: papai e mamãe. Naquele momento, eu não precisava mais chorar para fazer com que eles percebessem que eu estava precisando de alguma coisa, bastava chamar ou gritar por seus nomes. Lembro-me, também, dos meus primeiros passos e das minhas primeiras quedas, e delas ainda sinto as dores como se fossem hoje.

Minha infância foi, por demais, animada. Eu sempre procurei fazer boas amizades e tentei transparecer uma postura bondosa e solidária. Minha casa sempre se encontrava repleta de crianças. Como dizia minha saudosa mãe, eram meus “comparsas”. Vêm agora, em minha mente, as travessuras que fazíamos nos cômodos daquele velho, porém charmoso, solar no Centro da cidade. Na escola, fui um bom aluno, embora um pouco brincalhão e bagunceiro. As professoras viviam a mandar advertências para meus pais, porém acredito que, no fundo, elas me amavam.

Os ares da puerilidade aos poucos foram dando lugar aos ímpetos da adolescência. Vieram, pois, as primeiras namoradas. Comecei ali, no pícaro da minha juventude, a perceber porque é tão bom viver. Descobri o sabor adocicado da sexualidade da melhor maneira que existe, descobri com a menina que, na época, eu amava. As recordações são maravilhosas. Vejo neste instante minha imagem refletida pelo espelho e percebo um ar extremamente piegas. Meu sentimentalismo, verdadeiramente, beira o ridículo. Nos estudos, continuei minha jornada de maneira exemplar. Fiz o vestibular e entrei na Faculdade de Medicina do estado.

Chegando a idade adulta, minha vida continuou na mesma estabilidade de antes, pois eu nunca procurei me estressar muito com as iniqüidades do cotidiano. Curar os meus pacientes, antes de ser a minha fonte de receita, era uma terapia. Lembro-me perfeitamente da minha primeira consulta. Era um caso de câncer detectado nas primeiras fases de proliferação. Acompanhei todo o processo e fui morrendo com aquela mulher tão nova e guerreira. Aprendi no meu consultório algo que vai muito além dos conhecimentos acerca dos diversos tipos de carcinoma, uma vez que foi com o contato face-a-face que percebi que a Medicina é, acima de tudo, uma ciência humana, uma ciência solidária, uma ciência companheira.

Envelheci tranqüilo. Aos quarenta, porém, uma série de insatisfações perturbava minha saúde. Constantes dores atormentavam minha vida. Como médico, tentei analisar os sintomas apresentados, verificar as causas e encontrar uma solução para aquela doença aparentemente desconhecida. Aos poucos, percebi que aquilo fugia do meu rol de conhecimento e acabei por procurar um especialista. O diagnóstico foi impactante: disfunção cardíaca.

Nesse momento, minha memória pára. Uma enorme lacuna toma o lugar de todas as minhas tão agradáveis recordações. Vagamente, lembro-me de uma tarde no meu consultório. De repente senti uma forte pressão no peito, refletindo nos ombros e nos dois braços. Eu suava frio. Desde então, nada mais sei. Agora, acordo nesse lugar tão lindo e iluminado sem saber de nada. Sempre gostei da tonalidade branca, mas essa que meus olhos vêem é diferente, acalma.

Sérgio Reiss
Enviado por Sérgio Reiss em 27/01/2009
Reeditado em 27/01/2009
Código do texto: T1407387
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