O Encontro -  Série Insólitos II
 
      

        Eu apreciava as enciclopédias, mais do que tudo; não mais do que as meninas com suas mini-saias na escola. Na sala de aula eu parecia entorpecido. Em casa idem, ainda que houvesse visitas, nos colóquios vazios com os extintos amigos de infância, em meio à multidão, era sempre a mesma impressão: um vazio. Agora, quando o inverno persiste em não mais ir embora posso ter a exata noção de tudo aquilo. Jamais poderia esquecer aquele primeiro encontro e a marca que ele me deixou. 
       Entendi que coincidências realmente não existem. Mas, não poderiam ser entendidas sob a luz do escrutínio de qualquer dogma exotérico. Posso estar parecendo radical, afirmando isso, mas tive a prova, o sabor exato. Isso ocorreu em duas condições, mas sou cuidadoso em não revelar, pelo menos não agora.
        Estava com pouco mais de 20 anos e a chave da canastra foi me concedida. Era equinócio de outono aqui no hemisfério sul. Havia uma rara lua crescente naquele período. Fui deixado só, no antigo quartinho de meu avô, e, despaginando os calhamaços amarelados, o cheiro das décadas, ao invés de entorpecerem-me, abriram minha mente. Um enorme espanto tomou conta de minha alma quando cheguei aos rabiscos e documentos genealógicos. Havia uma carta amarelada, frágil, tomei o cuidado ao desdobrá-la, como se tivesse segurando um litro de nitroglicerina, e ao fim da leitura dei-me conta de que o mundo não era muito diferente de certas suspeitas que eu nutria; era muito mais estranho que os relatos nos livros de histórias. Havia um bilhete, datado de 16 de julho de 1915, e eu entendi perfeitamente, ainda que tomado de espanto, para quem endereçava.
        Sai no fim da tarde, passei em silêncio pela minha família, na verdade o silêncio foi o manto constante até o falecimento de cada um deles. Eram tempos paranoicos e hoje ainda mais. Naquela tarde fui rumo às coordenadas do bilhete e pensava, impressionado, com a escolha daquele monumento contruído quase dois séculos atrás, como se quem escrevesse aquelas linhas soubesse ou contasse com muita certeza sobre os subterrâneos que tecem o que denominamos futuro. Mas, outras teias se cruzavam, e outras aranhas guardavam de modo zeloso certas ações no mosaico do enredo.
        Subi as escadarias do majestoso prédio secular, identifiquei-me na recepção, peguei o crachá e fui à sala de leitura. Que silêncio sagrado, intocável ao longo dos séculos. Eu já sabia qual obra devia buscar e fiz o pedido. Sentei e aguardei. Fiquei impaciente, pois percebi que o tempo estendia-se, enfim, contei exata uma hora. Incomum, pensei. Decerto era uma obra muito antiga, perdida, ou quem sabe em restauração. Distraído não percebi uma funcionária aproximar-se e tocar meu ombro, fazendo um discreto sinal para que eu a seguisse. Saímos do salão de leitura e subimos outra escadaria. Ela ficou em silêncio, apenas me olhou simpaticamente, sem esboçar qualquer sorriso. Enfim, entrou numa sala onde não havia nada que indicasse que seção era aquela. Entrei atrás ansioso, estava suando. Era um gabinete, todo mobiliado com antiquários, muitos livros, até o teto, onde para se atingir os mesmos era necessária uma engenhosa escada móvel de trilhos. Ela fez um gesto para eu sentar-me. E nada mais falou. Saiu por uma outra porta e ali fiquei mais uns minutos em um suspense que estava acelerando meu coração. Percebi um barulho na tranca da porta por onde entrei; alguém usara uma chave. “Trancara-na” pensei. A outra porta, por onde havia saído minha misteriosa guia abriu-se e por ela entraram três pessoas, dois homens e uma mulher. Trajados bem simples, sentaram-se à minha frente, não antes de me cumprimentarem sem pronunciarem uma palavra sequer, apenas um forte aperto de mão. Deixei escapar ”olá”, “boa tarde”, “prazer” e fiquei suspenso no ar porque nada disseram, embora me olhassem respeitosamente. Minha guia misteriosa entrou pela mesma porta e juntou-se a nós e quebrou o silêncio.
        - Ângelo.
        Eu ia abrir os lábios e ela gesticulou com o indicador em riste vertical diante dos lábios. E calei-me.
        - Ângelo, é o seu nome hoje, o primeiro de muitos. Lembre-se: igualmente em seu mundo de sonhos, falo daquele seus sonhos acordados, sempre um de nós estará presente nalgum momento do encontro das teias de sua vida. Peço que mantenha a atenção, a constante vigília, mas que busque o relaxamento na intuição... Ou terminará sua vida num hospício. Mas sugiro que conheça um hospital desses e que faça um estágio em um sob nossa indicação.
        Eu ouvia tudo aquilo querendo sair dali correndo. Acho que ela leu minha mente, pois prosseguiu.
        - Respire fundo e não deseje sair correndo daqui. Quero apenas lhe fazer um simples pergunta, Ângelo. Você sabe quem somos e o que representamos?
        - Sim. – Falei em tom firme.
        - Pois, bem... - prosseguiu ela – então dispensaremos certas formalidades. Nunca mais nos verá juntos assim novamente, mas ocasionalmente sempre estaremos acompanhando-o, pelo menos até seus 43 anos. Depois não mais. Trate de não morrer até lá... – Ela sorriu, todos sorriram. Eu relaxei. Seus olhares eram profundos com um brilho terno em suas faces. Todos eles.
        - Como devo chamá-los? – indaguei.
        - Tradicionalmente, porém, sem os exageros que o termo induz aos incautos. É um modo de nossos nomes estarem protegidos. Tão logo seja chamado depois dos seus 43 anos, estará tomando nosso lugar, como aqui hoje. O elo não deve se quebrar. Enfim, não se quebra há séculos. Tempos difíceis já se passaram, ainda haverá muitos, mas os atuais não são dos piores...
        Ela silenciou-se. Parou como se tivesse ouvindo algo inaudível para mim. Foi quase um minuto. E retomou:
        - Cuidado com celulares, telefones, e-mails. Apenas o essencial e o trivial serão tratados por esses meios. Os códigos lhe serão passados e trocados sob nossa égide. Os encontros e o modo como serão feitos estarão acima de qualquer sistema que possa nos detectar. Mas aprenderá a se comunicar entre eles, diante deles, quando eles estiverem ouvindo, mas eles jamais saberão do que você estará falando. Ângelo seja comum, eles não dão a mínima para os comuns.
        - Usarei uma máscara? – indaguei pensativo
        - Que seu entendimento seja esse no momento, faz algum sentido... mas eles também as usam. A sua será para sua proteção e para a nossa sobrevivência. Quando no meio de uma multidão, sob a chuva, diante de um evento, sob centenas de guarda-chuvas poderemos nos comunicar, diante deles, diante dos mais sofisticados meios eletrônicos, diante dos satélites que espionam a crosta terrestre, nós estaremos ali, sob os guarda-chuvas, silenciosamente nos comunicando. É fabuloso, Ângelo, o modo como hoje podemos dar continuidade ao que antes praticamente foi muito necessário na idade das sombras.
        - E minha família?
        - Cumpriram seu papel. Agora você segue teu caminho. Cuidado com cada ser que se aproxima. Há anjos, e outros anjos... Você compreendeu?
         Assenti. Eu entendia, meu avô me falara de tudo aquilo desde os meus 9 anos, algo que jamais esqueceria. O medo foi erradicado cedo, precocemente, e substituído por outro alerta de sobrevivência, de algo maior. Eu me dava conta do véu descortinando-se ali na minha frente. Suspirei fundo de novo. Simplesmente a ouvia.
        - Ângelo, a data de seu nascimento, os números de seus documentos, os fatos que aconteceram em sua vida e os demais que acontecerão, serão marcas.
        Eu assenti, eu sabia.
        - Então, meu rapaz, não se distraia, será sempre o encontro dos fios das teias. São as escolhas que terão de ser corretas ou viáveis.
        - Constituirei família? Como vai ser?
        Todos eles baixaram o olhar. Foi neste momento que uma única vez um dos homens se pronunciou.
        - Temíamos que já tivesse feito essa escolha, pois sabíamos que dificilmente você iria conciliar seus estudos e possivelmente não teríamos esse encontro hoje. Mas, tudo é possível, sob a realidade em que vivemos. Na Europa seria diferente. Num seio republicano lá entre os Mórmons, no coração puritano da América, igualmente. Mas, há muita incerteza no ar...
        - Temos algumas propostas – a mulher retomou o diálogo – mas preferimos jamais inferir e existem as variáveis. É por sua conta. Muitas rupturas e decepções farão parte do processo. Mas, não confie que ao formar um dia uma família que poderá contar com eles; apenas faça o que tem de ser feito, sensatamente. O despertar e o chamado é um dos maiores mistérios, até para nós, em nossa jornada aqui nesse rio, Ângelo. Não atravessamos os séculos apenas por laços de sangue.
        Por um momento ficamos em silêncio. Os dois homens e a outra mulher levantaram, cumprimentaram-me e saíram. Fizeram um gesto, indicando que nos veríamos. Ela ficou a me olhar, um sorriso oculto no rosto plácido. Os cabelos acinzentados, o rosto belo ocultava uma idade avançada. Ela levantou-se, elegante, magra, vestida sobriamente e sentou-se ao meu lado. Senti uma fragrância doce no ar. Meu ventre revolucionou-se e eu fiquei confuso com certos pensamentos. E mais uma vez, pego, como que roubando sem poder carregar, ela olhou-me profundamente. Eu tremi.
        - Ângelo... relaxe... – E tomou minhas mãos – Existem coisas em nossos íntimos que nos perturbam... relaxe.
            Ela olhava-me profundamente nos olhos. Entendi perfeitamente tudo, e confesso, foi um momento muito confuso para mim. Ela manteve suas mãos firmes nas minhas até uma certa leveza soprar em meu íntimo.
            - Está na hora de você ir. – Ela disse - Entraremos em contato. Cuidaremos para que não tenha dificuldades financeiras jamais para fazer o que deve ser feito. As atividades mundanas são os ritos do inferno aqui nesse plano... Vamos oferecer-lhe algo bem aprazível, até o fim de seus dias. Fico feliz em saber que teus ascendentes foram muito cuidadosos com a Tradição. Agora é chegada tua hora. Ainda há muito umbral para cruzar. Entraremos em contato.
            Nos levantamos, saímos pela porta por onde entramos, depois dela usar uma chave grande, moderna, mas incomum no tom do metal esverdeado ou azulado, algo assim. Fui acompanhado até embaixo na escadaria e lá ela segurou minhas duas mãos e fez um gesto suave com a face, virou-se e se foi. Entreguei meu crachá, sai e me coloquei diante da escadaria do prédio. Era uma tarde quente, mas eu via nuvens pesadas formarem-se no céu. Comecei a descer as escadas e o celular vibrou no meu bolso. Olhei o visor, sorri. Atendi:
            - Oi Aidê. Sim, sim... Estou no centro, vim resolver uns assuntos. Estou indo, vamos nos ver hoje sim. Sim. Beijos.
            Assim que desliguei o celular as primeiras gotas geladas caíram do céu. Águas de março. Foi tudo muito rápido, a chuva desabou. Voltei, subi as escadas e me abriguei na entrada do prédio. Esperei ali um pouco. Lá embaixo, sob o temporal, um mar de guarda-chuvas pretos. Eu pensava: “Essa vida é mesmo muito estranha, muito estranha... Saber quem é, e qual sua finalidade na vida e o seu propósito, era algo profundamente maravilhoso e ao mesmo tempo assustador”. E olhando aquele mar de guarda-chuvas eu sabia que ali entre eles, eu sabia, ao menos, qual era o meu propósito.





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Ronaldo Honorio
Enviado por Ronaldo Honorio em 08/02/2009
Reeditado em 22/11/2018
Código do texto: T1427914
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