A SAGA DO ZÉ DO MATO PARTE FINAL

FINAL

por José Mattos




Desde o dia em que Pai Jacó colocou os dois desordeiros na linha, o Zé do Mato andava meio abatido, pouco falava, e vivia alongado como bicho do mato. Passava os dias sentado na grande pedra na beira do vale - onde, à sua frente, sumia aquela imensidão verde salpicado pelo cinza dos morros que brotavam aqui e acolá no meio da mata - agarrado a uma tristeza que machucava.

As coisas haviam tomando rumos difíceis, as visitas foram se escasseando, cessando. Ninguém mais se aventurava pelos lados da choça do pai de santo. Nessa época havia chegado hospitais modernos
e médicos de gabarito para a pequena cidade. Além de vários postos de saúde em pontos estratégicos, frutos da influência política do ex-prefeito, que fora deputado reeleito e agora se candidatava a uma vaga no Senado.

O caminho que trazia o povo para a tenda do pai-de-santo, onde outrora passava até carro de passeio, agora era um sofrimento só. Jumento transitava reclamando da solidão.

Por várias ocasiões, às escondidas, Zé do Mato se precipitara para a cidade para se confessar com o padre, contar toda a verdade; sentia o coração pesado. Ao final das confissões, o padre pedia uma carga de pai-nosso e outro tanto de ave-marias e, virando-lhe as costas, rezava pela razão do pecador: "Pobre homem, perdeu a razão de vez", dizia o padre, consternado.

Diante do insucesso, e sabendo que o padre não dava crédito às suas manifestações, decidiu ir ter um dedo de prosa com o delegado. Expor o caso tintim-por-tintim. Recorreria a todos os artifícios para ter credibilidade.

As primeiras duas vezes o delegado o ouviu em silêncio, sentado em sua poltrona giratória, inclinada um pouco para trás, com uma caneca de café fumegante na mão. Com a outra, como um regente de orquestra, fazia sinal para que o escrivão tomasse nota sempre que achava um
relato interessante.

Zé do Mato se concentrava, raspava a garganta e se metia na estória de cabeça e coração ao perceber que alguma parte do relato fisgava a atenção do delegado, ou seja, quando a sobrancelha arcava levemente e o dedo indicador direito vibrava para o escrivão, e o sapatear das teclas da maquina de escrever ecoavam pelo gabinete.

O sangue do Zé do Mato se esquipava nas veias como um quarto de milha três segundos depois da cancela aberta. Ele se remexia na cadeira como se tivesse pó-de-mico na bunda e enfatizava a narrativa, sua voz se alterava e surgia uma tremura no corpo qual friagem de gato; era possível ouvir do outro lado da sala o seu ronronar. O suor brotava pelo rosto e os olhos se tornavam esgazeados. Até que a falta de ar vencia a narrativa. O delegado lhe pedia calma, levantava-se, enfiava as mãos nos bolsos e fitava o depoente de forma intrigante.

O torpor invadia o seu corpo e sopitava-o completamente, e ele se acomodava nos cotovelos sobre a mesa enquanto a cabeça era só delírio.

Chegou na sua choça lívido e foi direto para quarto, depois de ter apinchado as roupas em um canto. Nem quis saber de comer. Das Dores olhou-o ressabiada; nunca o tinha visto daquele jeito. Ela quis saber o acontecido. Zé do Mato não quis prosa. Ela comeu sozinha, na cozinha, e lavou os pés na gamela; depois, tirou as roupas e se deitou.

No dia seguinte ela se levantou mal o sol nascera, procurou pelo pai-de-santo e não o encontrou. Ele já estava estacado diante da delegacia, aguardando a decisão do Delegado. Não cabia em si. Seria condenado e reconhecido, mas teria sua vida de volta. Por mais desgraçada que fosse, a queria de volta.

Pisava em um pé e no outro como se tivesse olho-de-peixe na sola do pé, esfregando as mãos e correndo os olhos em volta em uma expectativa medonha. Poria fim ao seu suplício de não ter um
passado, de não ter ninguém para lembrar os acontecimentos. Deixaria de ser um fantasma vivo.

- Café? - perguntou o delegado. Ele ia dizer sim, mas consultou a tremura e disse não.

- Bem, então vamos recomeçar - disse o delegado se acomodando à mesa.

- Os documentos, por favor - pediu o delegado.

Zé do Mato meteu as mãos nos bolsos e estendeu-os sobre a mesa. O delegado observou os documentos e depois o encarou por uns instantes, depois soltou uma sonora gargalhada que ressoou pela
delegacia e chegou até a rua, trazendo alguns curiosos para a porta da chefatura. Em seguida pediu os papéis do depoimento ao escrivão e, diante dos olhos esbugalhados do pai-de-santo, ele rasgou o relatório em pedacinhos, atirando-os para o alto. Zé do Mato ficou pasmo, olhando hipnotizado o redemoinho dos papéis que se espalhava pela sala açoitados pelo ventilador de teto.

Em seguida, pondo-se de pé num rompante, o delegado berrou com o rosto vermelho:

- Nacionalidade: Vulvus?! Onde fica isso, em outra galáxia? Tá me achando com cara de idiota?! Saia já daqui, antes que eu mande te prender, seu merda!

Passado alguns dias, aquelas palavras ainda ressoava na cabeça do nosso herói. Seus pensamentos divagaram confusos, e sua vida foi passada e repassada em câmara-lenta, tão viva e tão recente diante de seus olhos.

Sentiu-se só, imensamente só, e, abraçando as pernas contra o peito, apertou-se a si mesmo com intensidade derreando a cabeça sobre os joelhos, como se ela tivesse se desprendido do corpo. As
lágrimas banharam em abundância a grande pedra à beira do vale.

O sol declinava atrás dos morros cinzentos como que um prenúncio de final de espetáculo. Os pássaros, em revoadas, farfalhavam as asas nos galhos das árvores, ajeitavam-se nos poleiros aguardando a noite. Zé do Mato levantou a cabeça e olhou para os cocurutos dos morros, onde, no lugar do sol, se destacava um borrão vermelho anunciando a noite fria.

Voltou os olhos para o grande precipício que se iniciava sob seus pés. Nunca o havia observado antes. Sua visão foi consumida pelo abismo misterioso.

Levantou a cabeça e contemplou o céu. Comparou o céu e o abismo, o alto e o baixo, e considerou que estava incrustado num ponto intermediário entre os dois extremos: Nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno. Sentiu uma imensa vontade de voar. Voar na noite sem bússola até o dia amanhecer, e fincar sua bandeira ao primeiro raio de sol. Jogar com o destino se ele topasse. Se fosse ele menos petulante.

Recolheu os pensamentos e atirou-se de volta para choça. Botou o pé na soleira e ia entrar quando um galo cantou. Virou para trás de supetão e campeou com as vistas o dono da cantoria, uma vez que não possuía galo no terreiro.

Deu com Pai Jacó estacado no meio do terreiro. Escorado em sua bengala de pau retorcido.

- Ué, mô fiu, que se sucedeu com vassuncê?

Zé do Mato ainda ficou por um bom tempo a observar o Pai Jacó caminhar em sua direção batucando sua bengala no chão, como se não acreditasse no que via. Por fim, movendo-se a custo, abaixou e
adentrou à choça fazendo sinal para que Pai Jacó o seguisse. Acomodaram-se nos tamboretes e prepararam cigarros em silêncio. A fumaça revoou pelo ambiente e Pai Jacó voltou à carga:

- Intão, mô fiu? - Zé do Mato pareceu se incomodar com a questão. Levantou-se, perambulou pelo recinto e voltou a sentar-se novamente com os olhos pregados em Pai Jacó. Principiou a falar quando assomou-se à porta, Das Dores, com o semblante carregado de tristeza.

Interrompendo a prosa, Pai Jacó correu os olhos de um para outro, e tornou a repetir o gesto fazendo sinal para que ela se aproximasse. Transcorreu um longo tempo sem que alguém ousasse quebrar o silêncio. Metidos naquela penumbra de fumaça.

Zé ia retomar a conversa quando foi atacado por uma dorzinha aguda na altura da nuca. Houve em seguida um pequeno tremor de terra e uma luz forte invadiu as frestas da choça. Um ronronar possante como se fosse um trovão distante, muito distante, persistiu por uns instantes e depois cessou juntamente com a luz.

Zandri adentrou pela porta com um sorriso largo no rosto para a direção de Zé do Mato. Estava linda como da primeira vez em que a vira, quando desmaiou com aquela mesma dor na nuca.

Sem que alguém pronunciasse uma única palavra, Zandri acercou-se de Zé e agarrando-o pela nuca, beijou-o demoradamente. Quando seus lábios de separaram, ela passeou pelo pequeno cômodo em silêncio, observando cada detalhe da choça.

Em seguida, apontou um controle para uma parede e imagens foram projetas. Ela foi narrando com voz emocionada o resultado de sua estada no planeta Vulvus. Emocionado, ele assistiu milhares de
manifestações de agradecimento, e o seu nome cravado nos mais colossais monumentos do planeta.

Após o final das homenagens, Zandri voltou-se para ele e o fitou demoradamente. Começou a dizer alguma coisa, mas Pai Jacó, que se levantara do tamborete, a interrompeu e se dirigiu para ele, e os braços abertos de Pai Jacó recolheu o corpo do Zé do Mato em um demorado abraço. Zé do Mato não entendeu o por quê do Pai Jacó chorar. Zandra interrompeu-os:

- Esse é seu avô, Zé. O avô que você sonhava conhecer um dia. Sei de tudo sobre você. Desde que eu o capturei e fiz análises minuciosas de você, e isso incluiu também os seus sonhos e pensamentos. Mesmo quando resolveu vir embora, eu continuei a monitorá-lo em todos os seus passos e suas angústias. Instantes atrás você sentiu vontade de voar e se eu não tivesse interferido, você teria se atirado no precipício, por isso achei que não seria justo que você acabasse assim, somente por causa de um pequeno deslize que cometeu na vida.

Quando Zé do Mato saiu do gabinete do prefeito, com o cheque da folha de pagamento na mão, teve um pressentimento ao cruzar com a chefe-de-gabinete, que se insinuou descaradamente para ele. O
diretor financeiro da Secretaria da Burocratização parou de súbito e deu meia-volta sobre os calcanhares, adentrando novamente o gabinete do prefeito:

- Olha, eu me lembrei que marquei consulta médica pra minha mulher depois do expediente e não vou poder viajar pra pegar o dinheiro. Pede ao tesoureiro pra ir juntamente com o chefe de Segurança, assim você fica tranqüilo. Hoje estou com uma vontade louca de chegar em casa. É como se eu tivesse ficado fora uns vinte anos. Até amanhã!