Perdido

Ele era mais um na multidão. Um ser humano, sexo masculino, parecia completamente normal em sua simples existência. Ela o olhou de longe, analisando-o, vasculhando sua personalidade. Não percebeu nada demais à primeira vista. Seguiu-o pelas ruas escuras e desertas. Àquela hora da noite, poucos se aventuravam a andar por aquele bairro. Ele entrou em um prédio feio e de aparência degradante. Ela continuou sua silenciosa pesquisa. Seguiu-o até o quarto andar, onde ele entrou em um dos apartamentos. Lá dentro, ele tirou seu casaco surrado, colocando-o cuidadosamente sobre uma cadeira velha. O lugar estava rigorosamente limpo. Era pobre, havia pouca mobília, mas o aroma ali era de desinfetante e cera para piso. Ele foi até a cozinha, acendeu o fogo e colocou água para ferver. Iria fazer um café. Não tinha muito que comer, mas conseguira ainda comprar dois pães, os quais olhava cobiçoso. Não tinha cafeteira, era no coador mesmo que faria seu café. Olhou na geladeira antiga. Margarina, água, leite e dois ovos. É, pelo menos podia usar a margarina e o leite. Não sentiria muita fome. Os ovos guardaria para um jantar ocasional. Ele fez o café e comeu sua simples refeição sentado à frente de uma usada televisão. Gostava de assistir ao jornal. Depois, levantou-se e seguiu para o banheiro,onde tomou um breve banho (tinha que economizar na energia e na água, mas não deixaria nunca de tomar seu banho e lavar suas roupas). Enxugou-se, vestiu roupas cheirando a limpeza e sentou-se para assistir à novela. Ouviu uma leve batida na porta. Curioso, levantou-se e olhou pelo olho mágico. Viu um rosto belo e desconhecido. Abriu a porta e deparou-se com a mais bela mulher que havia visto em sua curta vida. Altura mediana, belo corpo, cabelos ruivos e lisos e lábios rubros. Os olhos eram negros. Nunca antes vira alguém de olhos negros. Ficou sem fala, apenas olhando-a como se fosse um sonho.

- Po..pois não? – indagou gaguejante.

Ela simplesmente entrou em seu apartamento como se o conhecesse há séculos. Ele, totalmente embevecido, apenas fechou a porta. De repente sentiu-se acanhado por estar usando apenas bermudas e camiseta. Mas ela não pareceu ligar. Olhava cada canto de sua residência com pura curiosidade. Depois o encarou. Novamente ele se sentiu acanhado e até envergonhado. Perguntou novamente:

- Posso te ajudar?

Ela chegou mais perto dele.

- Gustavo Fontinelli?

- Sim?

Ela levantou a alva mão e tocou-lhe suavemente o rosto. Nesse instante soube quem ele era e seu ser tomou-se de pura e benevolente compaixão. Por quê? Seus olhos demonstraram a angústia que ela sentia, pois ele começou a sentir um certo temor. Ele se afastou um pouco e ela ficou ali, sem saber o que fazer pela primeira vez em séculos. Mas não havia dúvidas: era ele. Com uma voz suave, cheia de carinho ela começou a falar.

- Eu vim esta noite por você, minha criança perdida.

Aproximou-se lentamente, o que o fez se afastar.

- Não tenha medo, Gustavo. Apenas olhe em meus olhos e segure minha mão.

Ela lhe estendeu a mão graciosamente.

- Por que devo fazer isso? Quem é você? – ele perguntou, já achando que ela era uma aparição.

Ela se aproximou mais. Via o terror crescendo dentro dele. Por quê deveria estar ali? Não seria mais correto estar conversando com um ser menos inocente?

- Por favor, não sinta medo. Apenas venha comigo. Vamos voar para bem longe. Não vou lhe fazer mal, eu prometo.

Novamente estendeu a mão. Como hipnotizado, Gustavo segurou-a e logo se viu em um lugar lindamente iluminado junto àquela mulher linda. Não vestia mais suas velhas roupas, mas algo elegante. Ela usava um vestido vermelho esvoaçante. Havia uma porta em madeira escura. Ela sorriu-lhe, deixando-o fascinado.

- Aqui é sua nova morada. – disse ela, apontando as portas – Pode entrar. Não precisa bater.

Ele segurou-lhe as mãos.

- Você não vem comigo? – perguntou exasperado – Gostaria tanto de conhecê-la melhor. – os olhos dele mostravam uma chama que ela conhecera há muito tempo.

Ela olhou-o tristemente, puxou o capuz de seu vestido sobre a cabeça e falou, sua voz parecia embargada por lágrimas, o que ele não pôde ver, já que ela baixara a cabeça olhando suas mãos unidas:

- Não posso entrar com você, mas quem sabe um dia eu o encontre novamente?

Ela afastou-se rapidamente e ele, confuso, o coração opresso, passou pelas portas escuras.

Amanheceu e os passantes viram uma movimentação fora do normal em frente ao prédio escuro naquela mal afamada rua. Uma senhora chorava, amparada por um paramédico. Vizinhos chegaram correndo e ficaram sabendo que aquela senhora era a mãe de um dos moradores do prédio, um jovem de 20 anos, que morrera na noite anterior, acometido de um aneurisma cerebral. Souberam também que ele, em seu silêncio de morte, parecia sorrir.

Rita Flôres
Enviado por Rita Flôres em 05/07/2010
Reeditado em 11/08/2015
Código do texto: T2359646
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.