JÚNIA

Caía muita chuva naquela noite, a noite mais antiga que recordo. Ainda não entendia este mundo e eu estava sozinha.

Tudo o que eu queria era fugir daquele frio glacial, do vento que me fazia tiritar. Meus instintos de sobrevivência focaram-me a não desistir, então caminhei sinuosa e lentamente. Pensei por várias vezes que aquelas gotas celestes me derrubariam em meio à lama e eu morreria ali, vendo a água escoar pelo meu nariz.

Gritava muito por alguém, acredito hoje, que por minha mãe, não tenho sua imagem em minhas memórias, mas naquela noite eu sei que por ela eu chamava, miando o mais alto que podia.

O caminho que se seguia era difícil e úmido, lembro de ser um chão preto, maciço. A água que caía abundantemente daquele céu escuro, dificultava a vista de meus olhos recém abertos, ainda assim pude ver um lugar iluminado, difusamente, não me parecia estar longe e algo dentro de mim disse para seguir até lá. Não parei, mesmo com as dificuldades da situação – minhas patas jovens não equilibravam meu corpo com destreza, a chuva forte, as valas, a dificuldade de ver.

Faltava pouco, uma cratera me separava do lugar, tive de contornar, entrei por um pequeno espaço logo no final da abertura, então lá estava eu no lugar iluminado, com minhas últimas forças, ali já não molhava, porém continuava frio. Ao observar melhor o local, pude ver os gigantes, talvez fosse meu primeiro contato. Uma gigante ríspida veio em minha direção com um instrumento cilíndrico de madeira, talvez fosse meu primeiro contato também.

Fugi, pelo menos tentei, eu sentia-me fraca e apavorada. Porque meu instinto levara-me até ali, se ao chegar estava sendo expulsa? Fazia-me essa pergunta.

Foi então que outro gigante aproximou-se curioso e, ao ver-me comunicou-se com a gigante, que de súbito mudara sua expressão, caminhara até mim n’um gesto menos agressivo, fiquei inerte, senti aquelas mãos antes ameaçadores, me carregarem.

Fui colocada n’um ambiente escuro e silencioso, a não ser pela chuva que desabava lá fora. Explorei o lugar, não parecia grande – o desespero era infinito – queria apenas encontrar um canto e esconder-me, nessa busca imprudente, na alucinação da minha angústia, batia-me freqüentemente, não me importava de imediato, a salvação era o que contava. Salvação de quê ou de quem, afinal? Em alguns instantes, ouço barulho, algum gigante acabara de chegar, não me parecia suspeito, deixei me levantar novamente, percebi que não fora o mesmo de mais cedo.

Fomos os dois na chuva, só que o gigante era célere, isso me assustou, todavia, não tive tempo de sentir tanto medo, logo entendi que aquela força que me guiara até o lugar iluminado estava certa, pois, pude encontrar um ser que me daria alimento, carinho e pano quente para dormir.

Dois anos depois

Nós brincávamos muito, meu gigante costumava fazer bolinhas de papel para eu correr atrás, adorava ele me olhando brincar, seus olhos eram tão paternos, nunca consegui dizer-lhe isso. Cresci muito feliz naquele ambiente. A medida que eu crescia, conhecia outros iguais a mim, até que um dia meu instinto se manifestou novamente.

Fui envolvendo-me, fiquei dias com o desejo de tê-los, tudo fluía tão natural, obtive deleites naquelas relações, experiências nunca vivenciadas. Vez ou outra aparecia um gigante para afugentar meus parceiros, mesmo assim os felinos pareciam não temer o perigo de estar comigo, iam e vinham, brigavam e exibiam-se. Logo o desejo abandonava-me, conseqüentemente os gatos também.

No passar das semanas, minha barriga dilatava-se, sentia muita fome, isso parecia incomodar meu gigante, por mais que eu comesse muito, a minha fome era insaciável. Os dias passavam, já não me deitava como antes, difícil encontrar uma posição confortável, a barriga estava cada vez maior. Eu estava gerando.

Em uma noite turbada, a dor açoitara-me vorazmente, tive um vislumbre da vida, brevemente no meu quase desfalecimento, porém o ato em si precisava ser consumado, independente do meu estado, concentrei-me em meu destino...

...um tempo depois, estava eu amamentando seres iguais a mim, só que bem menores, como eu fora um dia. Eram meus filhos e sabia que ali eles cresceriam bem, como a mamãe deles crescera.

Meu gigante andava inquieto nos dias que sucederam-se, ele vinha junto a outros gigantes que ali viviam, dia após dia olhavam a mim e a meus filhos, estranhamente. Não conseguia entendê-los por mais que falassem comigo por todos esses anos, eu ainda não os entendia, apenas decifrava seus olhares, porém, agora tudo mudara, nunca vira aquelas expressões.

Após alguns dias, meus filhotes abriram os olhos, miavam para mim, era mágico, lindo vê-los acomodarem-se em minha barriga buscando o conforto da mãe, minha família reunida, uma beleza indescritível, meus filhotes propínquos, eu os alimentando, eles com seus corpos frágeis amontoavam-se querendo meu leite, meu amor.

Foi então que abruptamente tudo ficou escuro, meus filhos chamavam-me, choravam, eu estava presa dentro de um saco de pano, não pude ajudá-los, debatia-me desesperadamente, queria salvar meus filhotes. Meu esforço de nada adiantou, lutei inutilmente contra minha prisão, a liberdade mostrava-se distante e inalcançável, em algum lugar perto daqui, estavam a pedir por meu socorro. Precisava sair.

O pano abriu-se enfim, eu caí em um terreno desconhecido, ainda ouvia os miados, corri em meio aquele mato de forma sôfrega, resfolegante avistei, estavam todos ali desamparados, os lambi e os coloquei um a um deitados juntos, deitei-me ao redor para dar-lhes conforto e espantar seus medos.

- A mamãe está aqui!

...

Bom, é o que lembro!

Já está escuro, eu ainda encontro-me aqui em meio a esse mato, chove forte, tem clarões vindo do céu e poderosos estrondos, meus filhos estão desesperados e eu também. Queria muito meu gigante aqui, para nos dar um pano quente. Estou com frio e com medo. Onde ele está agora? Por que não vem pegar-me como fizera a anos atrás?

Chove!

Daniel Erbon
Enviado por Daniel Erbon em 23/10/2010
Código do texto: T2574222
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