Apego
Certa noite sonhei que estava em meu quarto, na penumbra, a vagar.
E uma força, um magnetismo, um apego, um não-sei-o-quê me guiou até a minha parte do armário. Sim, o meu armário barato, mas que me representa em tudo, na completude da minha loucura, da minha qualidade de menina-mulher confusa, pensativa e fugitiva da realidade.
Com um gesto leve e até mesmo gracioso abri as portas... De súbito, luz!!! Luz, tanta luz, de cegar...
Mas ao tentar tatear em meio a luz absurda e quase mística, percebi que não havia mais nada no meu espacinho... Meus objetos tão adorados, partes de mim, não lá mais se encontravam!
Uma decepção tornou-me trêmula, a chorar, a resmungar num murmúrio tolo... Ao pedir a volta dos meus objetos tão queridos, tornava-me eu cada vez mais desesperada...
E de tanto ouvir ecoar em minha mente o meu próprio lamúrio fui tornando-me tonta, até que as vozes do meu desespero silenciaram-se e adormeci apoiada no vazio do armário.
Até que bem baixinho comecei a ouvir música! Sim, e parecia vir da flauta-doce nunca tocada por alguém de minha casa, e que ficava abandonada em meu armário.
Junto à música surgiam cochichos, e tais cochichos aumentavam mais e mais, com o tempo, se é que se podia conceber o tempo em meio a tanto delírio...
Os cochichos mais baixos, na base desse côro onírico, falavam trechos dos livros que estavam guardados em meu armário, até os trechos que eu não havia chegado a ler!
A voz principal, como a de um anjo, algo indefinível entre os dois sexos, dizia: - O que te desespera é a ausência dos objetos? Quanto apego inútil... Todo o conhecimento está aqui! Toda a poesia está aqui! Tudo está em meio à canção inaudível aos ouvidos comprometidos com a matéria... E é tudo seu!
E ao fim da sentença, fui abruptamente jogada em minha cama, como se um vento muito forte tivesse me carregado, assim como prontamente as portas do armário foram fechadas, e a penumbra voltou.
Ao que adormeci na minha cama, adormeci em meu sonho.