O MALEDICENTE

Carlos acreditava que o mundo era a sua única realidade, não entendia e negava tudo o que não podia ver com seus próprios olhos, sua visão uniretilínea era tudo o que bastava. Em contraposição, Luís, seu vizinho, tinha sensibilidade o bastante para crer que o caos do mundo, possivelmente, não era o que o Criador tinha planejado no início e as coisas eram aparentemente reais. Pensava: " se o daltônico não vê as mesmas cores que eu ou se algumas crianças ganham um robô nipônico de última geração de presente de aniversário e eu luto tanto e não consigo comprar o biscoito preferido de meu filho, as coisas aqui não podem ser tão reais, pois a realidade para mim é perfeita como o amor incondicional".

Luís passou a beber por fraqueza e depois de algum tempo se tornou um alcoólatra inveterado, estes que caem pela rua à noite. Carlos conseguiu promoção no emprego e virou um chefe

rigoroso, na verdade todos fingiam que gostavam dele fazendo com que o patrão se regozijasse de tanta bajulação. Parecia estar feliz, e quando chegava no bairro com seu novo carro passava pela rua de Luís cumprimentando-o falsamente e após ía distribuir palavras infames sobre seu vizinho para todos que apareciam e conhecia, foi sugado para o ódio sem uma razão concreta de sua vida também "concreta". E o pior, o seu certo também parecia ser certo para os demais, pois, por algum motivo dependiam de seu sucesso para se sentir, como ele, importantes. Luís cada vez mais se desmotivava com esta vida, teve câncer de estômago e faleceu em pouco tempo. Carlos, homem desalmado que sempre foi, concluiu sua estória para seus companheiros de copo dizendo:" É meus amigos a justiça é para quem sabe viver". Infelizmente, sua declamação filosófica de botequim ecoou somente por mais três dias, foi quando sofreu um acidente de carro na avenida principal da cidade e não agüentando o impacto com um caminhão que vinha a sua direita, morreu esmigalhado pela carroçeria irreconhecível. Sua ignorância fazia o desconhecer que não existe apenas uma justiça e sim duas, depois de sua morte traumática levaram-no diretamente para este segundo tribunal presidido pelo Arcanjo Miguel e seus assessores. Lá, chegou de outra forma, mais humilde, mais uma de suas máscaras que, para ele era tudo o que lhe sobrou.

Se dirigiu para um assento ao seu lado esquerdo, olhou para o ser de Luz a sua frente que logo o ordenou que se aproximasse. Em sua ida até o Arcanjo notou que já havia outro homem sendo julgado, mesmo assim, tendo sido chamado, logo se colocou à esquerda deste mesmo homem e exclamou: "Eu fui um bom marido e nunca roubei ou matei!".

O Arcanjo disse que já tinha a sua sentença, mas antes pediu que escrevesse nas nuvens do Céu tudo o que tinha feito e falado na Terra. Urgentemente fez o que o Anjo quis, demorou um pouco, mas cumpriu a tarefa. Notou que logo que acabara todos os seus escritos se acumularam formando uma grandiosa nuvem, uma tempestade se formou e seus cadernos foram desmanchados, as suas palavras viraram água se espalhando por toda parte. Voltou para frente do Anjo e um mal estar tomou conta de seu ser, chegou a chorar, se é que saíram lágrimas, só assim notou que o homem que estava sendo julgado continuava lá, desviou sua face do chão e viu Luís ao seu lado, ficou aterrorizado ao encontrá-lo de novo, pensou que já tinha ido para o "inferno". O Arcanjo fixou seus olhos aos dele e lhe disse:" Contaram-me o que você escreveu, foram palavras na sua grande maioria difamadoras e foram espalhadas para todos as casas onde choveu, como foi à noite e as pessoas estavam dormindo, em sonho leram todo o seu ódio e desprezo pelos desiguais e quando voltar ao mundo sofrerá tanto ou mais que Luís sofreu, pois os decendentes dessas pessoas sentiram quem você é, e não lhe darão oportunidades como as que teve, se já sofrias antes agora depois dessa chuva sofrerás mais. Já disse sua sentença agora vás. Revoltado, Carlos já no meio do caminho gritou para todos ouvirem:" E este bêbado, ele não vai receber nenhuma punição?"

Então Miguel que já se levantava para voltar a seu Reino o falou:" Ele nascerá antes de você e será seu pai, aprenderá a amá-lo e a perdoá-lo, pois também tinha ódio no seu coração, era também um difamador em outras encarnações". Vá e não peques mais." Bateu seu pesado martelo e foi-se sem se despedir.

Milton Roza Junior
Enviado por Milton Roza Junior em 12/08/2005
Reeditado em 03/06/2011
Código do texto: T42186
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