Súbito, o Frio

Junho em São Paulo. Era para ser outono, um quase inverno de pôr-do-sol bonito e folhas secas. Mas assim é a cidade, um dia tem mil estações. Calor num momento e, súbito, o frio. É um tempo instável, difícil de prever.

Como ela. Por isso é que gosta desta época do ano. É quando se sente mais normal.

O dia hoje está ameno, mas logo há de mudar. Os vidros fechados isolam mal e mal os sons da rua. “E agora?”, ela se pergunta. “E agora?”

Não era o que perguntava meses antes. Tinha uma série de perguntas infalíveis, que se repetiam não necessariamente em ordem.

“Normal?”

“Hein?”

“Você acha que eu sou normal?”

O rapaz a espiava de lado, na varanda do apartamento, achando graça na sua conduta. Um cigarro brincava entre seus dedos. Seus olhos passeavam lá embaixo, nas casinhas tradicionais do Alto da Mooca, panorâmica familiar.

“Não”, respondia, “mas se fosse, não teria graça.”

“E então? Você me ama?” Um clássico.

“Você sabe o quanto.”

“Sei.”

“Se já sabe a resposta, por que pergunta?”

“Quero ouvir de novo e de novo.”

E ouvira. Repetidas vezes. Certeza diariamente procurada: necessidade. Como o remédio de tarja preta na gaveta de meias. Um lugar seguro para um segredo.

Por que um homem abriria a gaveta de meias da namorada? Não havia razão. Mas ele abriu. E encontrou.

De repente as estranhezas leves da menina pareceram explicadas, rotuladas. “Mas se fosse normal, não teria graça”, ele repetiu para si. Não tem nada demais uma pessoa se medicar. E não pensou mais nisso.

Só naquilo. Aquilo que os homens querem. Mulheres igualmente. Ela era incomum nessas horas também. Hábil. De uma habilidade… profissional. Calculada.

Desapaixonada.

Não era desamor. Queria agradar. A vontade existia – faltavam o desejo, a quentura entre as pernas, as pupilas dilatadas, os úberes intumescidos. Ele teria notado antes se prestasse mais atenção.

“É o remédio”, ela explicou. “Corta o tesão.”

No começo ele não pensou que fosse ruim. Ela se empenhava. Era até lisonjeiro. Mas que graça tinha? Depois de um tempo, nenhuma. Chegar lá, esfregar, espirrar e dormir, sabendo que de sua parte ele não lhe causava satisfação alguma. Via de mão única.

Foi assim que ela largou o medicamento pela primeira vez. Para tentar diferente. Esqueceu-o no fundo da gaveta, no criado-mudo, sob o abajur, no limbo do apartamento burguês. Saiu o comprimido, entrou a putaria. E desde então as noites lá dentro foram quentes. Os dias, também. Mas de um jeito diferente.

Se na hora de ralar fluíam como água, na hora de viver chocavam-se feito pedras. O humor vinha e voltava do inferno, uma náusea emocional constante, bate, volta, eu quero, não quero, deixe-me, fique, lágrimas e riso, riso e lágrimas. Eu te amo três vezes ao dia já não funcionava. O organismo da moça adquirira tolerância ao cafuné, exigia mais e mais. E tome cara feia em público, chilique ao telefone, tapa na cara. Ardido. Quente, sim.

Para quem estava de fora, era difícil entender. Desnecessário. Admite-se apenas a mulher histérica, seus ataques, seus berreiros. Não sua dor. Nunca se nota a tarja preta sobre os olhos.

Ele ameaçou sumir. Ela pediu, implorou e prometeu. E correu de volta para as cápsulas de paz, exatamente como o doutor prescrevera.

Assim, devagar, os dias voltaram a ser tranqüilos. O problema é que as noites, também. Demais para ele. Não tinha que passar vontade, ela colaborava, bastava pedir. Mas comer comida fria? Não dava.

Lá para o final de maio, começo de junho, o tempinho indeciso de que ela tanto gostava, a moça passava camisas na sala. O papel de dona-de-casa a contentava vez por outra: fazer bem-feito, ser útil a ele, talvez necessária. E para coroar esse contentamento ela voltou a perguntar o de sempre:

“Você me ama?”

Mas a resposta demorou a vir, e quando veio não foi bem a de sempre.

“Você pergunta demais. O que acha?”

No despreparo, saiu-se com esta:

“Não sei. Me diga você.”

“Estou cansado de dizer.”

“Então é não!”

“Ainda pode ser sim. Mas, sabe, menina? Você torna a tarefa de te amar muito difícil.”

O choro era esperado, e veio.

“Eu estou me esforçando”, ela gemeu, infantil.

“Até demais. Amor não tem que ser assim, suado e sofrido. Não pra mim, entende?”

“Mas eu te amo. E não sei te amar de outro jeito.”

“Sei que não.”

Ele se aproximou, se inclinou, beijou-lhe a testa. Beijo complacente, sem ternura. Andou na direção do quarto, parou diante da porta, olhou para dentro sem pressa. Em silêncio. Pensava se continuaria até o guarda-roupa. O chorinho de fundo virou heavy metal.

“Você vai embora? É isso? Vai dar pra trás agora?”

“Queria ter tido colhão pra ir antes, mas não deu. Eu tentei, você tentou, nós tentamos, não rola mais. Toca pra frente. Sem culpa, OK?”

“Você não pode sair assim. Não tem esse direito.”

“A genteconversa quando você estiver mais calma.”

“Você tem outra!”

O abajur – o mesmo que ficava sobre a gaveta com o remédio – voou e não acertou. O alvo olhou para trás, espantado, mas nem tanto.

Há horas em que um homem precisa peitar a situação. Ele peitou.

“Eu tive várias. O suficiente pra criar coragem. Sou assim. Quero trepar com vontade. É assim que você quer continuar? Eu não. Acorda. Isso não é vida nem pra mim nem pra você.”

Esse foi o erro: julgar a batalha ganha. Nunca se pode contar com o bom-senso do inimigo. Mulheres sabem disso, por isso apunhalam à traição. Na inconformidade, no ódio, na inarticulável indignação e principalmente na falta do obrigatório punhal, investem com o que têm à mão.

No caso, o ferro de passar.

Algo deu muito errado nessa hora – ou muito certo, questão de gosto. O que ela fez, fez sem pensar, e fez direito. O ferro estava ali, quente e pesado, e ela golpeou com força, uma vez só.

O som da queda foi estranho, sufocado, e o movimento, antinatural. No cinema a queda é sempre bela, há o corte da cena, a troca de câmeras, tudo parece correto. Aqui, o corpo dançou um pouco, involuntário e ridículo, de encontro ao chão. Caiu de costas e o rosto ficou virado de lado. Olhos fechados. Não demorou o sangue previsível.

Ela se pega estática, pensando.

“E agora? O que vem agora?”

Súbito, o frio: um arrepio de cruel lucidez percorre seu corpo, e ela percebe que o rapaz provavelmente não se levantará. E se acaso o fizer, ferido e coberto de sangue, isso não será de forma alguma bom para ela.

Há que pensar rápido. Panos de chão, rodo, produtos de limpeza. Sim, é um bom dia para fazer faxina. E a varanda, ele gosta tanto da varanda. Décimo andar. Uma longa queda até a rua. Foi acidente ou de propósito?

Há sempre um benefício na dúvida.

Camila Fernandes MilaF
Enviado por Camila Fernandes MilaF em 07/08/2007
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