O Olhar Filosófico da Incompreensão

Frido arribou o banguê sobre as costas emoldurada pelos ossos fundos da costela. De um lado, duas latas de 18 litros eram equilibradas por uns sacos rotos do outro. A vara envergava sobre o ombro abalroado do andarilho. Tudo que se via não passava de uma arcada de ossos bem acabada pelo tempo e uma cruz em sinal de glória. A glória do fracasso.

A jornada diária estava apenas inciando. Cambaleante, deu alguns passos em direção ao entendimento do universo. Porém, imediatamente refugou: ainda não estava preparado para seguir a viagem do um dia aqui, outro acolá e no seguinte, sabe-se onde! Fundindo desânimo com fraqueza, arriou as tralhas no chão. Peso, fraqueza e sol a pino não combinam com beira de estradas e caminhada sem destino.

Sentou no meio fio e aparou o queixo com as duas mãos espalmadas. Se o corpo dorido não encontrava onde deitar e passar as noites e dias escornados ao relento era o presságio, a queixada imperfeita encontrou uma cama perfeita. Nada macia, com travesseiro pena de ganso, colchão de mola mesclado com espuma de alta densidade, é verdade; mas naquelas condições, uma boa e confortável cama tecida pelas suas mãos.

O vozerio irritava-lhe a paciência. Perturbava seus pensamentos. O tropel de passos seguia avassalador. Acostumado a deixar as suas pegadas nos acostamentos das rodovias, as cidades grandes não lhe atraía os sentidos. E ainda que fugisse delas, como o diabo foge da cruz, sempre aparecia uma para importunar os seus neurônios.

No lado oposto da rua, com os saltos dos sapatos piando o toc, toc, toc acelerado, vinha uma moça descendo a ladeira. E enquanto os cabelos soltos ao vento respiravam a brisa perfumada da tarde, os seus olhos vidravam sobre a tela do celular. Repentinamente, um urro estúpido lhe encheu os ouvidos, cerceando suas gargalhadas: "Eiiii, olhe para o horizonte e veja as nuvens, ouça o lamento do amanhã, converse com Deus e estipule metas. Tenha poder de decisão e vislumbre horizontes; pois, vislumbrar horizontes é desenhar o futuro."

Uma sombra ocasionada pelo imenso prédio à sua frente iluminava-lhe os pensamentos. Frido matutava o mundo, indagando consigo, que assim como tem edificações que negam os materiais, existem filhos que negam a hereditariedade genética. Ainda nesse contexto, não menos, teóricos que negam o exercício da prática; todavia, os práticos não negam a teoria, pois, ainda que lhes falte didática, lecionam o praticado.

Repentinamente, as sombras chegavam-lhe em ondas vampirescas. Com os dentes caninos afiados. Lambendo sombras; arrastando sonhos; deflorando viúvas; revirando vísceras;

cuspindo vermes; regurgitando embriões.

A fumaça é a linha tênue entre o horizonte e o azulado do céu; e fundindo com os riscos de fogo mercuriais que desciam aos borbotões do céu de brigadeiro, incrédulos viventes incendiaram seus sonhos e banharam suas almas. Por sorte, não queimaram e tampouco encharcaram a esperança de dias melhores. Sorrir ou chorar, ficar ou fugir, nascer ou morrer: em um átimo de tempo, tudo é julgado pela insolente arbitrariedade.

Não distante de onde estava, um pastor abria a bíblia ao acaso e lia a palavra para um público surdo e infiel: "A semeadura que é excelente para nós, é excelente para nós. Portanto, deve-se expandi-la, disseminá-la. Mas os grãos que só e somente, são excelentes para mim e excelentes para quem se aliar a mim, podem não ser nem razoável para nós. Portanto, não devem ser semeados.

Do outro lado, os sinos da igreja retrucavam: "todos, desde garis, pastores, padres, professores, escribas profetas, muçulmanos, aos senhores do julgamento, ouviam a pregação sobre as boas e soberanas obras de Deus, mas ao ver a chuva de prata, o salpicado de ouro ao longe, todos, nenhum dos crentes negaram a possibilidade de ouvir de perto o canto gregoriano. E saíram em desabalada carreira, atropelando-se mutuamente. Quem teve mais pernas chegou primeiro e apossou-se do dote. No condado e cercanias, quem sabia cantar o canto gregoriano era tido como um ser evoluído, além de seu tempo."

O reboliço generalizado levava-o a concluir que o tempo cria os monstros. As balanças, espelhos e banheiros os revelam. E os cemitérios os sepultam. Sua descrença mundana dizia-o que quando a inocência de criança se vai, a maledicência adulta vem. Não há nada mais desesperançoso do que a desilusão e descrença em si.

- Enquanto o ponte da vida é limitada e falível, o rio da incompreensão que corre abaixo dela mantém-se desperto, ativo e voraz... laçando, arrastando, abocanhando a manada constantemente para banhar-se em suas águas correntes. E sem outra saída, a manada morre afogada.

Esse foi o último suspiro dado pela sua mente. Naquele fatídico e incompreensível dia, o dia não iniciou sua jornada; em compensação, a vida terminara, definitivamente, numa bocarra enorme, chamada negrume noturno. A incompreensão até não, e pelo visto terá longos olhares por tempo indeterminado, mas quem está sob a mira dos olhos aguçados do negrume de uma noite mortífera, cega-se imperdoavelmente para a claridade do dia.

Desde pequeno ouço os mais velhos dizer que "estou cá pensando com os botões de minha camisa". Agora entendo porque lancei-me na estrada, andarilho solitário, sem teto e descamisado de alpercatas; porque os botões das camisas que possuía foram arrancados e comidos pelos cupins da corrupção, deixando à mostra meu peito de Tony Ramos. Essa espécie de político salafrário, traça, rói, come tudo.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 04/09/2017
Reeditado em 17/09/2017
Código do texto: T6103795
Classificação de conteúdo: seguro