Encurralado

O tempo da luta acabara. Sem munição, sem seus companheiros e cansado de tanta luta, sabia que em todos esses anos, mesmo com o cerco ostensivo, nunca abaixara a guarda. Todavia, os anos, e as rugas na pele, indicavam que a disposição de luta arrefecera e seus movimentos lentara.

Por um breve instante, coisa de segundo, um Déjà vu, se poderia dizer, lhe invade a alma. Recorda dos tempos que seu nome era lembrado com horror e estupefação. Caçadas foram empreendidas. Governos e exércitos mobilizados para porem fim a seu império de terror. Ali estava ele: só e encurralado. Lá fora, homens armados e prontos para o combate, porém, ninguém dá o primeiro tiro. Todos esperaram a reação do outro, como se jogassem xadrez. Então, decide não resistir.

Sabe que todo seu passado de glória e obediência cega de seus comandados, ali acabará, tão logo decide não resistir. Há um forte desejo, ele sabe, do governo, mídia e grupos rivais, de ganharem com sua morte. Será o trunfo que todos esperam anos à fio. Para o governo sua morte significará o retorno de investimentos de empresas estrangeiras, mais aportes em saúde, educação, etc. Para a mídia, picos de audiência com a cobertura de sua morte em consequentemente, mais anunciantes. E para os grupos rivais, o caminho aberto para a conquista de "novos" mercados.

Escondido num prédio abandonado, porém, cercado por todos os lados por homens, como ele, acostumados a ditarem suas próprias leis, aquele homem, agora encurralado como um animal, tem somente uma única certeza: todos o querem liquidado.

Temido por todos, desde governantes até por outros jagunços, ele sabe que sair dali morto significará o fim do seu império.

Desde criança sonhava com o dia em que todos o temessem. Sonhava com o dia em que a miséria da infância se encobriria por tempos de fartura.

Tudo foi conquistado. Porém, naquele prédio, e cercado por homens dispostos a usarem de todos os meios e recursos disponíveis, aquele homem sabe que todos querem seu cadáver.

O que fazer? Por onde escapar? Para essas perguntas, não haviam respostas imediatas e, pior, nenhuma outra menos arriscada. Então, ele decide: um tiro na cabeça e tudo se acaba. Mas e seus filhos, irmãos e mãe, como vão ficar sem sua proteção. Irão atrás deles também e, certamente, lhes imputarão os mesmos mecanismos de aniquilamento. Abandona a idéia do tiro. Entregar-se? Cogitou porque isso pode ser negociado, assim sua família estará salva. Desiste. Aqueles homens não cumprirão nenhum acordo que resulte em ele ficar vivo, conclui.

Não resta mais nada, vou ficar e resistir, que venham, não me vão me tocaiar com um animal, pensa de si para si.

A noite chega e trás consigo uma forte chuva. Tudo alaga. O campo defronte ao prédio, que servia de observatório para seus perseguidores, fica encharcado. Alguns dos seus algozes abandonam seus postos, outros tentam lutar contra as águas e morrem afogados. E nesse embate, entre vida e morte, sentimentos se misturam. Quem quer matar, agora luta contra as águas para se manter vivo. Aquele que um dia foi o mais temido dos homens, como um animal amedrontado, se vê sem saída, e, como um animal nessas condições, decide que resistirá, mais por falta de opção do que por convicção que, naquelas condições, sabia as forças empenhadas estavam fartamente desproporcional. Morrer para viver, ele pensou.

Quando o dia nasce, a chuva já cessara e as águas abaixaram.

Sobre corpos insepultos ele olha. Sem acreditar, estava livre para seguir. Sai pela estrada. Um caminhão pára. Ele sobe e segue sem destino.