A Maldição das Flores

Eu vejo Flores em mim

O trabalho bateu em sua porta e logicamente, foi bem recebido. Jardinagem: a única coisa que aprendera fazer. A priori, seus avós e pais eram jardineiros. Respiravam flores; adornavam as mesas e nichos de suas casas com flores; presenteavam os amigos e vizinhos com flores. Flores para eles, era e permanece sendo, vida em cores!

Preparou os apetrechos durante o período da tarde. Animado, despertou para a labuta, logo cedo. Talha parte aqui, apara as arestas lá, volta ao ponto de origem. Afasta-se para verificar a geometria verdejante. Repara onde necessita de um repique bem suave. Retoma a poda dos excessos nos cantos. Toma fôlego acariciando uma pétala ao acaso. A jardinagem é uma arte, que poucos matemáticos e artesãos entendem.

A tesoura segue bailando ao ritmo do tec, tec, tec. E ele, sempre atento, com olhos vivos nos mínimos detalhes. Elas, as flores, recompensam-no, exalando o perfume da vida. Beneficiados, os pássaros esgaravatam, ciscam, batem asas, trinam, enaltecendo o pequeno e lauto banquete. Pássaros, Deus e o jardineiro comunicam através das flores. Cada toque na tesoura para embelezar o canteiro, uma oração sobe às alturas. Em forma de suor, a queima dos alimentos é o galardão que desce do céu.

À noite, com a missão do dia cumprida e a consciência feliz e risonha por saber que a beleza passa pelos olhos e mãos dele, sentou no divã para confabular com suas aspirações; e após longo diálogo, fez a contabilidade das décadas, anos, meses, dias, horas, minutos e segundos que faltavam para a aposentadoria.

No dia seguinte, a rotina se repetiu. Saúde de ferro. Até que chegou aos 35 anos completos de trabalho em Carteira. Trabalho pesado, escravo do cartão de ponto, governo administrar sua micharia, comida fria em marmita, não fazia mais parte de seus planos.

Procuração assinada em nome da filha mais nova para receber o pagamento da aposentadoria. Dinheiro destinado, previamente para pagar os seu medicamentos; e o restante, a facul da filha. A felicidade é tamanho, que financiou um urinol de ferro, pintado de branco, com flores na superfície. Urinóis de plástico são frágeis e não suportavam o redemoinho oscular de todas as noites, não resistiam o ácido amoníaco contido na urina; e além de amarelar a lateral e fundo, rachavam com facilidade. O objeto, ainda que bem cuidado, acabava exalando um cheiro nada agradável no ambiente familiar do jardineiro.

Recebimento do pagamento em mãos. Merecidamente, contemplou os lábios com duas bolas de sorvete. O que é esquisito, além de angustiar, é visto de longe. Sem o menor rumor, a filha/procuradora se surpreende com a casa cheia. O senhor terceira idade havia se despedido trabalho, amigos, vizinhos e familiares e naquele momento, estava recebendo a visita das flores. Muitas flores coloridas. Sim! Como era esperado, as coroas de flores também estão apostas para desejar-lhe um bom e duradouro descanso; ou o adeus final, como cada uma prefere homenageá-lo.

O finado jardineiro nunca escondeu de ninguém que flores são, e sempre serão, presentes sensíveis e recomendáveis em qualquer ocasião. Motivo dele sempre se ver coberto com flores, obviamente, que pensava isso em vida; pois como aprendera com os pais e avós, o belo buquê de flores dado como presente hoje, será um murcho passado amanhã.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 17/02/2018
Reeditado em 17/02/2018
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