EXTREMAS NECESSIDADES

Quando iniciamos com os roubos Sandra ainda achava-se meio relutante, afirmava ser errado; mudou de ideia com meu argumento, éramos crianças, logo não tínhamos nenhum direito e participação no dinheiro da casa, vivíamos à mercê dos caprichos dos adultos, se por acaso pedíssemos as quantias seríamos questionados, humilhados e, o pior de tudo, não conseguiríamos o dinheiro. Roubar não era errado, errado era ter e não compartilhar... e assim roubávamos pequenas quantias da bolsa da tia Inaia para as despesas da casa. Naturalmente, ficava eu com todo o arrecadado e julgava isso muito justo e razoável, afinal, a prima tinha mesada e eu não. Outra providência, e essa de comum acordo, foi a abolição do termo " roubo ", que substituímos, no início, por "pegar escondido"... depois substituímos por "pegar em segredo o que nos cabe". No entanto, um dia a prima queixou-se de nada receber, tal ato de insubmissão gerou a necessidade de "lavagem do dinheiro", isto é, era preciso a justificativa da posse dele e esse detalhe era o mais complexo,pois ao ficar comigo havia a explicação convincente de que o ganhara de meus pais ausentes, ao passo que a socialização do arrecadado restava apenas a alegação de que o acháramos na rua. Quando nossa "sorte" passou a sofrer sérios questionamentos de uma prima adolescente, criei o seguinte estratagema, era preciso que tia Rosa nos VISSE achando o dinheiro.

Como fazíamos excursões periódicas a uma serra da região do Alto da Ponte, que alternávamos com banhos no rio Buquirinha na mesma região, na caminhada distrairia a tia enquanto Sandra, um pouco mais adiante, jogaria no chão o dinheiro dela, para logo mais achá-lo, ao passo que eu jogaria o meu às fuças de minha tia e o acharia antes; contudo, minha prima achou simultaneamente ao meu achado ( Veio gritando histericamente, vermelha como pimentão - que ódio, pensei, "Péssima atriz!"). Senti raiva, tinha ela posto tudo a perder, incompetente! Foi com extrema perplexidade que vi minha tia também à procura de seu quinhão! Desde tenra idade desprezo gente burra, relaxei ao ponto de, em voz baixa, comentar com a prima:

-Velha trouxa!

-É... ela acreditou...

-Veja só que ridículo, rabo enorme virado pro céu à procura de dinheiro no mato!

-Pára!, disse-me Sandra no esforço por conter uma gargalhada, Ela quer o dela...

-Esta velha só pensa em dinheiro! Disse eu.

Era um ano mais velho do que a prima, ela contava 8 anos de idade.O curioso é que me questionava quanto àquilo e ao tecer considerações morais, concluí, em tão tenra idade,que toda solução boa e que demanda menos esforços era considerada crime, quando não pecado. Por exemplo: "Honrarás pai e mãe" punha fim à desobediência ( certamente norma criada por pais e mães), único modo dos filhos convencê-los e fazê-los notar que temos vontade própria; "Não matarás" é outra lei que decepa a solução definitiva e conveniente, que poria fim em quem nos aborrece. "Não roubarás" liquida com a boa perspectiva de se obter recursos de uma forma inteligente e estudada - é indubitável que a norma foi criada por proprietários que. além da posse, procuraram meios de garanti-las e legitimá-las. Roubar é uma arte que pressupõe detalhes e planejamento inteligentes e criativos, tanto objetiva quanto subjetivamente. Para mim, ladrões geniais ( não os violentos) deveriam ser reverenciados e não perseguidos: Não é desonroso pertencer à categoria que aninhou em seu bojo entes como Hermes,Robin Hood,

São Dimas...(esse foi o primeiro a conhecer o Céu, guiado por Jesus).

Quando elogio o roubo naturalmente não penso nas vítimas, é claro que é errado lesar o próximo, mas a condenação do ato nunca o extinguiu, Cortar-lhes as mãos, execrá-los, enforcá-los ou prendê-los não os reduziram em número ou em ousadia. Não penso nas vítimas, mas no capitalismo, adoro os que o ludibriam, mesmo porque interpreto-os como ladrões que roubam ladrões, mormente quando analiso assaltantes de bancos ou de grandes joalherias: É uma delícia estudar um roubo bem urdido contra os que exploram o povo! O capitalismo não passa de um sistema ladrão, acumula lucros, uma forma legitimada de roubo porque lesa o comprador: Se compramos algo por R$1 e vendemos por R$10, isso é roubo.

A armação da Serra do Alto da Ponte foi inspirada pelo ceticismo da prima Vera, irmã de Sandra, uma odiosa adolescente que levantou sérias suspeitas por estranhar que achássemos dinheiro toda hora. A tia voltou garantindo nossa sorte, graças ao bom Deus não era leitora contumaz de Kant e não sabia da máxima "Nem tudo que se vê é o que se é".

Bem mais tarde fomos desmascarados e sofremos sanções, verdadeiros vergões nos traseiros. A tia mais velha teve comigo conversa carinhosa e combinou uma mesada em troca de uma prestação de serviço ( Foi minha primeira e única vitória sindical!), iria diariamente comprar pães e leite na padaria e por essa honestidade quase fui morto no primeiro dia, um mendigo começou a me estrangular; quando quase me esganava, levou uma vassourada da proprietária, dona Adelina,não fosse isso seria um menino morto na primeira tentativa de ser honesto... o fato também me fez rever a legitimidade do assassinato.

O ato de roubar desperta descargas de adrenalina que esportes radicais não conseguem desencadear. É uma forma refinada de traição e traições são excitantes. É um instinto primitivo, o medo de ser flagrado, a possibilidade do empenho ser vão ante o nada do cofre,caixa ou bolsa; a necessidade de guardar e autenticar o fruto do roubo... são sensações deliciosas, se tudo dá certo a sensação é a de um Rembrandt após concluir uma obra prima. Era bom também zombar dos que foram enganados.

Foi uma fase, morta com a infância, fase decorrente de uma extrema necessidade de inserção no mercado, digamos assim...

Camilo Jose de Lima Cabral
Enviado por Camilo Jose de Lima Cabral em 30/10/2018
Reeditado em 30/10/2018
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