A CONDENAÇÃO DO PISTOLEIRO
 
            Em Pedreiras do Sul poucos sobreviveram. Tudo começou quando o mundo pareceu-me chegar ao fim. Primeiro foram cinco anos sem chuva, os campos pararam de produzir, não havia como engordar os animais, e a fome se instalou de vez. Tremores ocasionais derrubavam as casas, fazendo a pequena cidade virar um ponto de ruínas no mapa. A minha, bem construída, foi uma das poucas que se mantiveram de pé.  Mas o medo dela ser invadida era constante. Fazíamos revezamento durante a noite. Eu, Cristine, e Laurinha, nossa filha de treze anos.

            Naquela noite cochilei, não vi os três monstros  que entraram. Quando dei por mim, estava dentro do estômago de um deles. Uma fúria cresceu em meu peito, comecei a morder na tripa gosmenta, e não sentia nenhuma repulsa. Minhas presas enormes rasgavam todo tecido vivo que fui encontrando. Ouvia de dentro do corpo os gritos de dor do homem que havia se alimentado de mim. Ao romper a pele do abdômen, depois de se alimentar do seu fígado, vi que no outro canto do quarto Cristine estava sendo devorada e parte dos seus membros ainda estava do lado de fora. O outro monstro olhava incrédulo o meu ressurgimento de dentro da barriga do seu parceiro. Ele era enorme, por suas roupas de couro e pelas tatuagens pertencia certamente à gang de motoqueiros da cidade.

            Rapidamente cheguei perto dele. Com meu corpo revigorado desnoquei suas mandíbulas, enfiei meu braço direito dentro da garganta dele e comecei a puxar as partes de Cristine, o homem ofegava enquanto via assustado sair dentro de si o que ele tinha engolido. Sentiu ânsia de vômito e pós tudo para fora. Peguei a machadinha que ele tinha usado para esquartejar aquela que foi o primeiro amor da minha vida, e cravei com força em seu peito. Lembrei-me de Laurinha, fruto do meu amor com Cristine.

            Uma mulher, de porte idêntico aos homens que invadiram meu quarto, estava descarnando Laurinha e se alimentado do corpo níveo da minha princesa. Quando sentiu meus braços envoltos da sua garganta, arregalou os olhos, queria gritar algo, mas a voz já não saía. Peguei a faca que ela tinha cravado no peito da minha filha e rasquei sua barriga em busca dos pedaços da garota.

            Voltei até o quarto de casal e na cômoda havia uma agulha cirúrgica, Cristine fora enfermeira na era da normalidade. Passei o resto da noite costurando as partes tanto da minha esposa quanto da minha fila. Algo me dizia que elas voltariam a ter vida. Não aconteceu até às dez da manhã. Talvez elas precisassem de ar puro. O sítio em que ela foi criada ficava a sete quilômetros de estrada poeirenta. Nos fundos da casa passava um pequeno ribeirão e seguindo pela trilha no meio do pasto chegava-se a uma gruta onde beijei Cristine pela primeira vez. Eu levarei as duas pessoas que me restaram nessa vida para esse refúgio. Há um ano o nosso carro estava sem gasolina. Fui até a construção ao lado e peguei um carrinho de mão. Coloquei os dois corpos e comecei a caminhar.

     Durante meu trajeto pela avenida, vi duas pessoas que saíram correndo quando me viram empurrando o carrinho. O sol castigava os corpos. Peguei um velho lençol em uma casa abandonada e cobri as duas que sorriam para mim em agradecimento. Tive o capricho de maquiá-las, passando nos lábios de Cristine o seu batom favorito. O creon que contornava os olhos de Laurinha começava a escorrer. Com um lenço limpei o risco preto que descia em direção aos seus cabelos.

     Segui pela estradinha tomada pelo capim ralo e amarelo. Cheguei aos entulhos da infância de Cristine após duas horas, não havia sequer um filete de água no ribeirão e eu não tinha sede. Atravessei a ponte de madeira apodrecida que rangia. No céu uma dezena de abutres acompanhava o cortejo. O sol a pino não perdoava. Quantas vezes eu me regozijei só de ver o rosto inocente de Cristine em sono profundo quando eu chegava tarde. Tantas vezes Laurinha dormiu sem ouvir as minhas histórias e quando eu entrava no quarto dela, após a meia-noite, beijava-lhe a testa serena. Agradecia a Deus, quando eu ainda tinha fé, por ter uma filha tão linda. Eu não me sentia digno de tal dádiva.

          Vi um calango sumir na secura da paisagem. Não senti fome. Ainda assim procurei pelo réptil até encontrá-lo assustado, pressentindo a sua hora. Capturei-o e guardei para assá-lo quando elas retornassem para a vida.  Certamente ressuscitariam famintas. Estavam mortas apesar da minha discordância. Perguntariam pelo que aconteceu. Adormeceram por causa da fome e do calor. Diria a elas. Os abutres que nos perseguiam foram se juntar a outros que atacavam um corpo enforcado na árvore no alto da colina. Não dava para distinguir quem era daqui de baixo, mas certamente era de alguém que morava por aqui e desistiu da vida antes de ser capturado por canibais.

     Sem demora, segui meu trajeto. A gruta parecia ter lábios de moça tímida. Penetrei em silêncio e cauteloso temendo os morcegos. Eram inofensivos, mas se até nós, os humanos passamos a nos alimentar de carne da nossa espécie, sendo predador e presa ao mesmo tempo, nada me assegura que animais herbívoros poderiam passar a buscar sua dose de proteína necessária em animais.

     Sem sinal da presença de vida, o refúgio parecia nos esperar para acolher nossa resistência. A imagem do corpo enforcado no alto da colina não saía da minha mente. Ninguém aqui terminaria assim. Iríamos resistir. Eu já havia passado por perigos maiores quando o mundo era mundo, o homem era humano e não bichos famintos agindo por instintos primitivos de sobrevivência, a natureza ficava contida em seus ciclos regulares e parecíamos tão longe do inferno em que tudo se transformou tão de repente.

     Comecei a assoviar a mesma canção de ninar que cantei nas raras vezes em que acompanhei Laurinha em seu adormecer enquanto passava minhas mãos calejadas, não pelo cabo quente do carrinho de mão que curiosamente não senti, mas pelas pelejas do passado, sobre o rosto terno de Cristine. As horas demoravam. Por três vezes cheguei à entrada da gruta para ver se havia algo de novo no horizonte. Nada além do quadro desolador. Saí um pouco e vi que do corpo pendurado na árvore havia apenas ossos e os abutres estavam agora próximo à gruta. Não vamos ser alimentos para eles. Sei disso. Quando perceberam minha presença, alguns grasnaram alto. Não sei se queriam me saudar ou me assustar.

     Pareceu-me que dei um cochilo instantâneo. Então abri os olhos e vi uma grande aranha peluda na entrada. Daí a pouco surgiram outras, dezenas, centenas, e mais aranhas iam surgindo por toda parte e caminhando rapidamente em nossa direção. Procurei pela minha arma, não havia arma nenhuma. Como fui me esquecer de trazer uma arma? Um isqueiro e nada. Esqueci também do cigarro. Eu não tinha nada em mãos para proteger minha família. As aranhas passaram por mim como quem passa por uma brisa e foram, em minutos, cobrindo os dois corpos mutilados. Algumas ainda entraram pelas costuras que eu havia feito da melhor forma que pude. Foram injetando seus venenos nas carnes em início de decomposição e foram se saciando vorazmente dos amores da minha vida. E eu assistia a tudo. Foi aí que me dei conta que eu não era mais matéria desde o meu esquartejamento pelos brutamontes dos motoqueiros que haviam invadido minha casa à noite. O que havia ressurgido de dentro daquele pançudo era apenas minha alma.

     Eu que fui pistoleiro, um matador de aluguel, quando o homem matava os de sua espécie por dinheiro ou poder, e não por fome. Eu que fiz um pacto com o demônio para não ser pego pela polícia, pratiquei dezenas de assassinatos, cinquenta e três, ou próximo disso, sem ter sido capturado, estava condenado a vagar pelo mundo sem direito a perdão. Eu não irei para o céu como meus anjos, nem para o inferno. Ficarei aqui, degredado. Olhei para o que restava de Laurinha e Cristine e despedi-me delas com um adeus lacrimejante. Saí do refúgio para enfrentar o sol da tarde. Os abutres grasnaram em saudação e segui pela estrada poeirenta, sem destino.

 
            
Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 24/04/2019
Reeditado em 24/04/2019
Código do texto: T6631705
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