ENTRE VIDAS E SOMBRAS

ENTRE VIDAS E SOMBRAS

"Aponta Vésper, brilhante... /

e o largo silêncio corta / uma

toada distante". (trecho final)

BERNARDINO LOPES (1881)

Na pracinha semideserta, já passando das 5 da tarde, sentado em velho banco o ancião rememora quase toda sua existência. Passara os últimos 20, quem sabe 30 anos ali, vendo "a Vida passar" mães com os filhinhos, depois jovens, depois pais... ah, lá vem a Ritinha com as 2 meninas ! Êle a conheceras exatamente do tamanho de uma delas, uns 5 ou 6 anos de idde.

-- "Vêm para o meu banco... aposto"!, pensou.

Confabulava consigo mesmo, a Vida que "não vivera" desfilando diante dele, "imagens em procissão", todas iguais, das quase 3 décadas atrás de um balcão, funcionário público do antigo DCT, depois, EBCT, ECT e, por fim, modernamente CORREIOS. Quase 30 anos entres selos e carimbos ou manipulando a máquina que os substituiu.

Nem tirava férias... não tinha o que fazer com elas ! Vivera sozinho as vida inteira, tendo seus livros, discos e o Rádio 3 faixas por companhia. O que fôra sua existência ?! Um mar de nada, oceano de marasmo e monotonia ! E agora ? Agora ali estava, registrando qual fiscal a vida alheia, a contar como "carneirinhos" as pessoas que circulavam pela praça centenária. O que podia dizer sobre si ?! Nada, "nadica de nada", sem momentos de heroísmo, em vitórias retumbantes, sem construção de peso, sem referências.

Ali estava, mera "sombra vivente", nem diria sobrevivente, porque coisa alguma lhe sucedera. Vira naquela praça um velho amigo tombar, vítima de um coração combalido. Assistira outro partir, por conta de uma discussão em razão de jogo de cartas. O meio-fio servindo como "arma assassina". Presenciara assaltos, namoros indecentes, risos e lágrimas, a Vida a passar diante de si, indiferente à sua presença.

-- "Ah, nõ disse ?! Aí está dona Rita... nossa, como cresceu essa menininha ! Ontem mesmo, tinha só uns 3 anos... será que foi semana passada" ?

-- "Olha, Cristina, não vamos ficar muito tempo na praça... você tem que dormir cedo, porque amanhã tem prova" !, diz a mãe à menor dela.

-- "Mas, mamãe, faz tempo que a gente não vem à praça" !

-- "Que seja, depois dos exames finais você poderá ficar o tempo que quiser... Bárbara, tome conta de sua irmã" !

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A pequena inclina-se para trás e pega sob o banco um monte de fitas amarelas. O velho levanta-se apavorado, um carro desgovernado vem em direção ao banco. Bate no meio-fio alto, tomba e fazendo voltas no ar passa rente ao banco:

-- "Meninas, corram, corram...", grita desesperado, enquanto o veículo rola uns metros a mais. Na praça calma a menina passa à mãe, horrorizada, o maço de fitas, do tipo que isola locais onde houve acidente com vítimas.

-- "Largue isso já, Cris... alguém morreu aqui ! Vamos embora" !

Entre vidas e sombras, o Tempo segue seu inexorável curso, alheio aos sonhos, anseios, vitórias, memórias, histórias e vida de cada mortal, vivo ou mera sombra a vagar entre 2 Mundos. Infinito... enquanto dure ! As badaladas de distante sino -- na "hora da Ave Maria" -- trazem à lembrança do velho seus tempos de criança... amanhã voltará ao mesmo banco da mesma praça, até o fim os séculos !

"NATO" AZEVEDO (em 28/maio 2019, 20hs)