Sempre o mesmo

Era um quarto grande e arejado, cujo leito exorbitante dispunha de uma variedade inquietante de objetos na superfície; o motivo de ali jazerem era desconhecido e certamente ilógico; tal qual a cama, o cômodo como um todo era ocupado por tantas quinquilharias que mal havia espaço para se adentrar. Lá estava o jovem, inerte, mal conseguia respirar: "Que porra estou fazendo aqui?!". Já a algumas horas deitado, sua cabeça multiplicava os pensamentos na velocidade do som... Uma marcha lenta e compassada que, aos poucos, atingia o auge de sua presteza. No que ele pensava? O próprio já não fazia ideia. Era quase como um rio que, por ora transbordando em calmaria, sofresse repentinamente os efeitos de uma violenta tempestade. As águas corriam de todas as direções, trazendo consigo tudo o mais que pudessem arrastar, desde o lixo acumulado em suas proximidades às árvores derrubadas pela força avassaladora da tormenta. O rapaz virava-se para um lado e outro, levantava, andava pela casa, voltava, deitava novamente, sentava-se na cama enquanto seguia nesse fluxo de pensamentos desconexos: "Será que não conseguirei dormir?" Levanta e fica perambulando pela casa.

***

O tempo como nos é dado segue uma lógica linear direcionada a um momento que é, na mesma medida, instantâneo e eterno por toda a sua extensão. Mesmo sob o pressuposto naturalizado de perseguir um estado final inalcançável, ele quiçá também tem um fim; o que leva à constatação imediata induzida pela lógica rasa das elucubrações cotidianas: se o tempo tem um fim decerto teve um começo. Mas o que interessa-nos saber sobre esses começos ou fins? Nós, seres finitos, limitados à uma porção cronológica insignificante perante a aterrorizante vastidão dos universos e dimensões...Cuja existência depende somente de tênues linhas que se esforçam constante e veementemente por separar a improbabilidade do viver da asfixia absoluta e dominante onde se ausenta a vida. “Até quando?! Por quê insiste em roubar-me os dias?!”. Exclamava a si mesmo o jovem rapaz, vendo-se desesperado perante a entidade suprema que controla o seu devir. Por que ela lhe tem tomado cada vez mais o fôlego? Por quê teria acelerado tão bruscamente o ritmo de sua vida? “No hoje do meu ontem cabem anos do meu hoje; meus dias tem cada vez menos horas, minhas noites cada vez mais dores”.

“Desbravar as imensidões desconhecidas tornou-se ofício em larga escala. Das nossas vis vidas a um complexo de outras que interagem entre si, correlacionando-se em gradações cada vez maiores; partindo então para noções que buscam dar sentido a todo esse emaranhado de multidões distantes. O curso segue a um estado pretensamente absoluto de interação que ao invés de aproximar as multidões, afasta-as; enxergam a si mesmos com distinção tamanha que se criam abismos colossais sobre a mesma”. Os seres humanos são dotados de habilidades peculiares que os tornam únicos entre as espécies e distintos entre si; ensinados a pensar não direcionalmente, mas sob grades sociais que intentam padronizá-los com medidas incompatíveis, tornam-se culpados pelo próprio colapso.

“A mesma sociedade que se esforça ao máximo para vender imagens e criar padrões de felicidade e prosperidade erige-os como objetivos universais de consumo no decorrer da história, nos levando a achar que existem receitas infalíveis para se atingir tais objetivos, desencadeando uma busca compulsória pelos mesmos; nós só percebemos o quão perdidos estamos quando enxergamos que isso é o que mais tem causado a morte de almas, destruindo as vidas incapazes de se estruturar sobre essas grades”. Logo após esses pífios momentos de reflexão, tomado de imensa e profunda melancolia, o rapaz se vê envolto por uma distinta nobreza de alma, uma potência espiritual inabalável. Mas, grosso modo, nada muda com isso tudo. De nada se distancia de velhos hábitos, nocivos e hipócritas; nada faz em prol de transformações que ressignifiquem todos esses empecilhos; todavia, acha que é diferente porque está ciente daquilo tudo, crítico diante dessa absurda realidade, olhando a si mesmo como o arauto máximo da hipocrisia global.

Para desmerecer esse processo enobrecedor e a busca do prazer através da própria melancolia, não demora a descobrir a obviedade de sua hipocrisia, que pouco se diferencia da dos demais.

***

Desta vez, o sujeito encontrava-se sentado numa cadeira dura e desconfortável, sob postura rígida e inadequada, enquanto pensava naquilo que ocorrera alguns dias atrás... Talvez semanas atrás... Enfim; incomodado com a forma com que isso havia lhe afetado e impelindo sua mente a um estado de trânsito incessante de ânimos e pensamentos: "o que ocorreu naquele dia parece estar se repetindo... Não que já não o tenha sido, mas segue num ciclo de repetições cada vez mais frequente..."

"A minha consciência está tendo dificuldades de discernir os momentos reais dos imaginados... As ações e inércias alheias tem provocado efeitos diversos e cada vez mais invasivos no que concerne ao meu pensar. Peno em admitir que não sinto mais a energia que fazia da minha existência um movimento contínuo; e que agora, estagnado até um futuro imprevisível, permaneço improdutivo e impotente". Ele se levanta da cadeira e dá mais alguns passos pela casa; vai ao banheiro e, enquanto lava o rosto, pensa: "como sair de um estado de enclausuramento cuja mais grave consequência é enclausurar-se ao âmago?". Ao encarar minuciosamente seu reflexo no espelho, fixa-se nos traços do rosto que revelam o prolongado cansaço e desgaste emocional proporcionados por um extenso período de crise existencial. "Ao menos conseguirei um dia encontrar algo que redirecione meu existir...? Ou simplesmente penarei em seguir o ciclo de repetições que me persegue e me consome desde momentos remotos?" Seus olhos resplandeciam através dos questionamentos, que faziam suas entranhas revirarem, embaraçarem-se e perseguirem o que restava de ordem em seu organismo já sobrepujado pelo caos. Saiu do banheiro e se jogou sobre a primeira superfície confortável que encontrou, na tentativa de dormir... Após mais alguns momentos de dolorosas reflexões, apaziguou-se em sono.

***

Algumas horas depois desperta, já um pouco mais tarde que o de costume... Ainda não raciocinara direito, e seus primeiros pensamentos envolviam confusões sobre onde estava ou porque teria ido parar ali, o que retardara consideravelmente sua vontade de levantar. Aos poucos foi recobrando o nível costumeiro de consciência, mas ainda parecia conturbar-se com lembranças das indagações anteriores. Passou alguns minutos inerte até finalmente levantar-se. Procurou algo para consumir em meio à bagunça da cozinha e logo voltou a se deitar. Acessou seu smart phone buscando entreter-se com algo, mas acabara se entregando mais uma vez à desrazão. Algumas lágrimas escorreram pelo seu rosto... Logo secou-as e se recompôs. Olhou as horas e levantou em busca de algo objetivo para fazer; sabia que já estava atrasado para a aula daquele dia; mesmo assim, saiu de casa, perseguido pelos pensamentos inquietantes que pesavam em sua cabeça. Seguindo em direção ao ponto de ônibus, refletira sobre os objetivos que ainda perseguia, mas acabou convencendo-se de que não existia mais nenhum. Sob o sol da manhã, já assaz incômodo – não só pelo calor árido e sufocante, mas pela luz que cirurgicamente atravessava a obscuridade do seu ser - passou por ruas cheias de lixo e caminhou por entre fluxos de esgoto a céu aberto; questionava-se o quanto isso se diferia do próprio quarto, onde não conseguira atribuir finalidade aos objetos úteis nem destino ao excesso de objetos descartáveis; tampouco conseguiria discernir uns dos outros. Impelido cada vez mais profundamente a um estado de desconforto excessivo e decadente, devaneava entre as fronteiras tênues da lucidez. De repente, as palavras esvaíram-se dos seus pensamentos e, impacientemente, esperou pela chegada do seu transporte.

Ao entrar no ônibus, acomodara-se no primeiro acento vazio que viu. Percorreu quase todo o trajeto fitando o nada através da janela. O barulho e os movimentos irregulares eram desconfortantes, os olhos ardiam por conta das poucas horas dormidas e os pensamentos pesavam numa insistente melancolia. Pôs algo para ouvir com seus velhos fones de ouvido, mas os gritos da sua consciência não permitiam concentração alguma. Chegando ao seu destino, dirigiu-se à sala de aula. Ao adentrar-se e acomodar-se, encarou cada existência presente com pesar, percebendo em cada rosto o desprazer de permanecer no local. Suportou esse estado por mais alguns momentos e, enfim, decidiu retirar-se. Ao sair do pavilhão, procurou o banco mais próximo, sob a sombra das árvores, e se sentou. Atentou-se a cada figura passante. Meditou. Sua presença ali era irrelevante, mesmo para si. Cada indivíduo que se aproximava esvaziava ainda mais a sua sensação de existir. Como uma casca oca, parecia não se suportar. "Deixei de compreender o que me motivou, outrora, a esforçar-me por manter esta regularidade diária de sofrimento". Voltou à sala de aula tentando assimilar o que era dito, mas tudo parecia ter-se tomado de tamanha estranheza que chegou ao ponto de encontrar o desespero. Com muito esforço, ali se manteve até que as atividades se encerrassem e pudesse retornar para casa.

Teron Nadori
Enviado por Teron Nadori em 01/11/2019
Reeditado em 01/11/2019
Código do texto: T6784393
Classificação de conteúdo: seguro