O fim da neurótica Helena H.

Helena H. olhava para o fogão de quatro bocas. Cinco botões de acendimento; um para o forno. Era a terceira vez que ela se posicionava a frente do aparelho. A terceira vez em cinco minutos. Ela olhava para os botões; um a um; todos lhe indicando que não trabalhavam: o aparelho estava desligado. Ela, no entanto, após tanto mirá-los, os botões, não mais acreditava em seus próprios olhos e lhes alisava, um a um, com o dedo as saliências que apontavam para o teto como um relógio que indica a meia-noite. Lena, sim, o fogão está desligado, não vês?!, dizia-lhe na cabeça uma voz, a sua voz.

A Helena H. também atormentavam as torneiras; do banheiro, da cozinha e do tanque na área de serviço. Ela, após fechá-las, aproximava-lhes a palma da mão, onde sempre caía uma ou duas gotas de água; queria ter a certeza de que estavam fechadas, de que o apartamento não seria inundado. Também lhe atormentavam os interruptores de luz, e toda a sorte de dispositivos domésticos, mecânicos e elétricos, cuja falta de zelo lhe seria muito cara. Com isto, sentia-se bem e se sentia mal: sabia-se falha de comportamento, mas sua casa nunca fora consumida, nem pelo fogo nem pela água, e isto lhe trazia alívio aos pensamentos.

Ela tinha muitos sonhos lúcidos. Uma manhã, sabendo-se sonhando, a frente de um supermercado, num estacionamento vazio, sabendo o supermercado estar sobreposto a uma rua residencial que muito conhecia, pelos apartamentos de bloco e pela tranquilidade dos residentes, agarrou-se a ele, ao sonho, da maneira que se pode agarrar os sonhos, pois sentia que logo viria a despertar. Foi ao banheiro, os olhos semicerrados contra as primeiras luzes da manhã, os pés rápidos sobre o piso, e quando retornou para a cama, tão logo adormecendo, viu-se novamente no vazio estacionamento, a observar o supermercado onde um amigo há muito esquecido lhe esperava com bons conselhos, que em realidade eram seus.

Ela se achava muito parecida com Adrienne Shelly. Para ela, Shelly era uma daquelas atrizes jovens de cinema que repetida e amargamente se perde ao fim de cada sessão, como Françoise Dorléac e Sharon Tate. Shelly morreu assassinada em seu escritório aos quarenta anos; Dorléac, acidente de carro, aos vinte e cinco; Tate, também assassinada, aos vinte e seis; mas Shelly sempre lhe seria a menina preocupada com ataques nucleares, enrolada numa jaqueta masculina e de óculos enormes. Helena, que trabalhava como secretária num escritório do centro, sentia que a qualquer hora lhe acometeria o mesmo fim.

Um dia, no conforto do seu quarto, na privacidade da noite, ela, que morava sozinha, que por vezes se sentia sozinha, decidiu se embrenhar na entropia dos aplicativos de relacionamento, com seus muitos cenários, variáveis e rostos. Entrou em contato com um rapaz com quem dividia o mesmo edifício, a quem já vira, mas com quem nunca falara. Foi seu único contato. Sentia prazer em se preservar silenciosa e distante, somente a observar todas aquelas cabeças que flutuavam presas à rede e aos instintos, estes tornados viciados pela velocidade das impressões. Ela sabia o que seu vizinho queria, e queria o mesmo, com ele, não com outro, mas sentia medo.

Todo o medo esconde um desejo, escreveu David Mamet. Helena H. temia analisar o próprio medo. Introspecção lhe causava ansiedade. Sentia-se como um ovo prestes a rebentar para o concebimento de um monstro. Parecia-lhe então que se encontrar com o tal rapaz a ajudaria a se livrar de si mesma; suas mãos tremiam, os pensamentos, que se desenrolavam como rolos de filme, o conteúdo, o rapaz, abafava-os. Descobriu-lhe os horários para evitar de encontrá-lo à rua ou nos corredores. À noite, imaginava-o lhe batendo à porta. Decidiu se comunicar com outras cabeças flutuantes, as distantes, sentindo-se assim segura, sabendo que os via como uma insuficiente medida paliativa para as suas angústias.

Helena H. assistira a'O Pianista no cinema. Pensava onde estaria ela neste dia, se Roman Polanski em agosto de 69 estivesse em 10050 Cielo Drive, com sua mulher e amigos. Se esta noite, esta presente noite, ela se encontraria com seu vizinho, foi porque um grupo de assassinos, liderado por um homem com devaneios de grandeza, decidiu, arbitrariamente, matar desconhecidos numa mansão em Hollywood. Esta noite ela deve a família Manson, ou quem sabe à mãe de Charles, ou aos psiquiatras incompetentes a quem ele enganara, ou aos pais dos jovens a quem ele manipulou, ou quem sabe deva a Polanski que sobreviveu à guerra, que escapou à prisão, que continuou a ser financiado mesmo após os escândalos, ou quem sabe deva a própria mãe que a criou para ter medo do mundo, ou de sua avó que fez sua mãe assim, do mundo que fez a sua avó, nada disso lhe era claro, os processos introspectivos se lhe assomavam muito confusamente, a mão dele em sua cintura, o hálito quente no seu rosto, o estacionamento vazio, o desejo sendo liberado, a casca rebentando, rebentando também os vidros do carro, o líquido quente se derramando sobre seu corpo, o rapaz por cima dela, pesado, o corpo muito pesado, morto, assassinados os dois por dois caminhantes adolescentes que, àquela noite, arbitrariamente, sob a contingência de um revólver que lhes caiu às mãos, decidiram lograr o próprio aborrecimento.

Helena H., durante a sessão d'O Pianista, precisou ir ao banheiro e não viu Adrien Brody tocar para um nazista. Por duas vezes retornou do corredor que a levava de volta à sala de cinema, para verificar a torneira. Não testemunhando a grande cena do filme, aborreceu-se mais tarde com um grupo de amigos próximo que a analisava e discutia. Queria não tê-la perdido e pretendia revê-lo, não queria que lhe contassem os detalhes que desconhecia. À frente de uma cafeteria, aguardando a vez, teve um sonho, não ouviu a atendente que lhe chamava, querendo saber dos seus pedidos. Desperta, sem pedir nada, voltou para a sua mesa e se sentou. Quem sabe isto, estes detalhes, explique-nos porque ela foi assassinada naquela noite, naquele lugar, àquela hora específica.