VOCÊ NÃO CONHECE REBECA LOBO? (TEXTO DO DESAFIO CARA A TAPA)

Rebeca!

Rebecaaaa

(Chamada de voz perdida as 20:16)

A tela do celular piscava em uma infinidade de mensagens e chamadas não atendidas. Inês ligou para todas as amigas em comum, principalmente para aquelas do clube de leitura que ambas frequentavam. Todas tentavam falar com ela, sem sucesso, e o burburinho só crescia:

Alguém tem o telefone de algum parente dela?

Alguém sabe

Ao menos

Caraca, ela não responde!

Onde ela mora

Vários emotions e figurinhas no grupo do Leia Mulheres Vivas sinalizavam negativamente. Era difícil se aproximar, intimamente, de Rebeca. Sempre tão comedida. Quando se expressava em público, parecia a fumaça de uma vela recém apagada.

“A legítima tia solitária”, constatou Inês, ainda apavorada com a última mensagem de sua amiga. “Se eu não impedir Rebeca de fazer uma besteira, até meu trabalho com as meninas vai perder a credibilidade”. Depois, se arrependeu do pensamento fúnebre, com um gosto meio amargo na boca.

Parou para tomar um chá de camomila recém preparado. Precisava raciocinar melhor e, em meio aos seus pensamentos desconexos, lembrou-se da primeira vez que viu a amiga em seus trajes escuros, escondida por trás de óculos com lentes enormes e desproporcionais para aquele rosto pequenino. Uma recepcionista de consultório odontológico. Não era de muito assunto com ninguém, salvo quando um dos clientes da clínica tinha algum livro em mãos.

Era assim que Inês aguardava ser chamada, com meio interesse compartilhado entre a leitura, o celular e uma perna inquieta.

— Nossa! Amei o título. Sobre o que é esse romance? — Rebeca, não introduziu assunto algum antes, disparou a pergunta para Inês. Esta apenas sorriu e não respondeu com exatidão, falou uma coisa outra, já que o ego dela era diretamente proporcional à sua vaidade.

— Sim, é um romance! Fui eu que escrevi.

— Uau! Eu nunca vi uma escritora de perto. — Os olhos da recepcionista franzina ganharam alma por alguns instantes. Pois, de regra, eles viviam devotados para o chão. — Eu também gosto de rabiscar algumas ideias e criar alguns personagens, — tomou um segundo fôlego para continuar — se eu pudesse também queria ser escritora. Na verdade, é um sonho de menina.

Em apenas uma conversa, Rebeca gastou sua cota de palavras do ano. Inês, mais pesarosa do que solícita, a convidou para participar do clube de leitura dela. O que deixou a discípula, recém conquistada, tomada de uma esperança que nem ela lembrava mais aonde estava escondida, se na mente, no fígado ou nas partes mais fétidas do intestino.

Inês estava feliz com a nova seguidora, que contava com a cota de trezentas e duas pessoas nas suas redes sociais, sendo que uma parcela era de colegas de trabalho com os quais Rebeca não tinha nenhuma intimidade e a outra de contas comerciais de pets, hortas e poesias. Já nossa renomada escritora, mal tocava nas suas mídias. Afinal, tinha uma equipe de marketing digital para administrar seus cinquenta mil fãs e fakes. Havia nascido triplamente privilegiada: negra, lésbica e com talento incontestável para ser a mais nova voz do feminismo brasileiro. Abarcava para si quase todas as minorias, o que somava para ela uma maioria considerável de visibilidade.

O romance de Inês, obra agraciada com vários prêmios literários, foi lido e relido, ou melhor, estudado com precisão cirúrgica por Rebeca e quando implorava para a mais nova amiga dar uma olhada nos rabiscos dela, obtinha como resposta: “escrever é a arte de reescrever” ou “o instrumento mais poderoso do escritor é a tesoura”. Frases que Inês havia decorado, para demonstrar autoridade no ramo. Foi assim, entre cortes e recortes, feito e desfeitos, de tietagem em repostagens de Rebeca para Inês, fazendo aumentar apenas vinte pessoas nas mídias sociais da aspirante a escritora, que se passou um ano e, como já era de esperar, Rebeca caiu no esquecimento como um brinquedo novo de natal que perde a graça, a partir de fevereiro.

Inês não queria carregar aquela culpa, mas a última mensagem da discípula era clara e em caixa alta:

QUERO QUE MINHA ÚNICA

OBRA SOBREVIVA A MIM.

VOU PARTIR PARA DEIXAR

VOCÊ ETERNIZAR MEU NOME

COM SEU TALENTO.

Na verdade, nossa escritora de best sellers havia lido o romance de Rebeca uma vez e com afinco. Foi tomada pela trama, pelo ritmo, pela originalidade introspectiva dos personagens, os escritos tinham uma assinatura, coisa difícil de falsificar, replicar ou não afirmar, de modo convicto, que aquela escrita meio Cecília Meireles, com pitada de Lispector e uma prosa poética meio woolfiana, só poderia pertencer a uma única autora: Rebeca Lobo.

Mas, a garota de 29, doze anos mais nova que Inês Girão, não fazia ideia da potência da sua escrita, porque ela nem sabia o que era em si mesma. Vivia anestesiada da própria existência, só parava de sua inércia para criar seus personagens e a dinâmica psicológica na qual viviam. Talvez fosse por isso que estes eram tão críveis e absolutos, pois dela não tinham nenhuma interferência, já nasciam livres como semideuses esculpidos do barro, mas ela não era Zeus. Na verdade, parecia que nem era. Pois, se não estava a escrever, só vegetava para pagar contas.

Inês...

Te deixo essa última missão

querida amiga...

Publique meu romance

e o retoque com seu talento

Que ele chegue até onde for possível

Eu mesma não me vejo vivendo de escrita

Ah! Nêzinha... vc sabe...

A última coletânea de contos que eu publiquei como e-book

só teve 10 downloads

eu não sou uma Inês Girão

prefiro existir em você

do que ver meu livro

fenecer diante de mim

Fica bem. Pfv...fica bem.

(Chamada de voz perdida as 20:01)

O que Rebeca nunca imaginou é que ganhar um Prêmio Jabuti ou um SESC de Literatura exigia visibilidade, tão como algumas estratégias de marketing, ou está inserida no grupo certo e conhecer as pessoas certas que lhe abrissem portas para a nata do mercado literário nacional.

Nossa Lobo, agora caída em um banheiro com frascos vazios nas mãos e meia garrafa de vinho barato no chão, compondo um cenário de filmes e séries de Netflix, além de talento, não tinha nada mais em que se firmar. Por isso, tomou a decisão de viver imersa em um livro e se eternizar como um pseudônimo de Inês.

Passou-se algumas semanas e Inês, a administradora, excluiu o contato de Rebeca do grupo de WhatsApp. Afinal, não fazia mais nenhum sentido sua presença. Logo, se recuperou do breve luto e atendeu ao último pedido de Rebeca, mas não sem antes falar com meia dúzia de advogados sobre leis de direitos autorais, assim o mais novo romance que ela promoveu, mas não escreveu, assinado como Rebeca Lobo, foi campeão de vendas nas plataformas digitais. Ganhou o Kindle de Literatura, traduções para mais de cinco línguas e era muito improvável que esse nome e estrofes de seus escritos não fossem mencionados em lançamentos literários ou em cursos de escrita criativa.

Deixando assim uma verdade latente para todos nós: nada substitui o talento, mas a falta de estratégias de promoção o deixa à mercê do acaso, da sorte, do tempo ou da morte.

(Reescrito a partir das sugestões de Flávia Iriarte do Carreira Literária)

Andréa Agnus
Enviado por Andréa Agnus em 01/04/2021
Reeditado em 01/04/2021
Código do texto: T7221558
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