Prazeres da Morte - parte I

A vela queimava solitária no fundo da loja, ao lado da santa de gesso rogava um pedido, a oração de Dna. Quininha, proprietária do estabelecimento, já restava feita, restava só o fogo e a negra fumaça levar pela janela as graças que necessitava. Uma suave brisa entrou pela janela aberta e levou cortina até a chama, incendiando em breves segundos, tomando lugar vazio, provocando incêndio. Na parte da frente sentiram as chamas, e as vendedoras e clientes puseram-se a correr. Uma das jovens moças atendentes estava no estoque onde o fogo consumia , cercada por lânguidas chamas, desesperou-se por se ver não salva, procurava por um produto em falta nas prateleiras. A metros dali o alvoroço concentrava-se para total evacuação do prédio, alguns sentiram sua falta e a localização chegou pelos seus gritos de socorro, o moço a quem atendia tomou coragem e entrou no ambiente em chamas para livrar-lhe da morte. Ela mal viu o que acontecia, sentiu-se simplesmente levitar pelo homem que a tomava nos braços, o calor foi ficando distante, a luz amarela e forte foi ficando distante, os pensamentos, as vozes...

Acordou num leito de hospital, na sala de observação, fazendo jus ao ambiente, alguns lhe observavam, eram sua mãe, seu pai, sua irmã, e um homem, um homem? Ah sim! O homem que a salvara, seu cliente na loja... Quanto azar o dele, era a primeira vez que passava ali para comprar novelos rolos de lã colorida para a mãe confeccionar suetérs de natal (já que eram de descendência norte americana, e perto do natal as mulheres faziam manualmente este tipo de presente para a família), segundo a família a tinham perdido tudo na loja, e se não fosse o ‘cavalheiro’ teria morrido carbonizada, nem era bom pensar. Agradeceu e o homem se foi, contente por ter salvo vida. Mas para ela não era tão simples assim, Catarina queria saber de onde viera, porque e como, aquele homem entrara assim em sua vida, de repente, e sem rodeios. Deixou-o ir, mas saberia, tinha que saber, mesmo sem emprego, sem chão, aquilo era primórdio.

Visitou os restos do que fora a loja onde trabalhara, Catarina chorou, e lembrou com doçura o momento em que voou como uma fada nos braços daquele desconhecido... Refletiu e não teve dúvidas, era bem adulta já aos vinte e dois anos, e pelo visto do que sentia e não conseguia esquecer, estava apaixonada. Poderia ser apenas impulso, mas queria ao menos conhecê-lo, conhecer a possibilidade desse amor. Dna. Quininha estava na casa de uma irmã do outro lado da cidade, apanhou um táxi e foi até lá. Nem precisou apertar muito a campainha, logo a dona da casa a atendeu contendo a fúria do dobermann que rugia no portão. Dna Quininha ficou muito contente em receber a visita, disse que em breve o seguro lhe daria o dinheiro e iria construir uma nova loja, pra poderem trabalhar. Uma boa noticia:- no seguro estava incluso o salário das moças enquanto a loja estivesse em construção,o que significava férias remuneradas! E sem comer o bolo de fubá Catarina voltou á casa dos pais levando consigo o número de telefone da casa do rapaz, que segundo Dna Quininha eram seus amigos e “gente muito boa”.

Nem bem pagara o táxi, e um carro verde dava ré no começo da rua, cruzaram-se o táxi e o carro verde que ela nem sabia dizer o nome do modelo, mas reconheceu perfeitamente a figura no volante... O anjo que a salvara. Impacientemente ela estacionou os passos em espera, e ele num cavalheirismo raro estacionou ao seu lado, o pé no freio, na boca lindo sorriso. As súbitas preces de Catarina foram atendidas, e o ‘estranho’ queria boa conversa... Quanta coincidência, ela também! Sem consultas, e sedenta de desafios Catarina sentou ao lado de Estevão. Juntos deram algumas voltas no quarteirão, sem se importar com a vizinhança na companhia de estranhos.

Ele era extremamente simpático, e estava muito preocupado com o estado de saúde da garota que salvara, ambos sentiam que rolava um clima, mas nem por isso se deixaram intimidar. Ela deixou o papel com o telefone dele escapar de suas mãos, na gentileza ele pegou e sem querer leu, reconheceu.

- Porque você tem o meu telefone?

Catarina corou, o que fazer naquele momento? Destino mais cruel! Sentiu-se Julieta quando descobre Romeu escondido na sacada, mas era ela quem estava errada.

- me dê isso, por favor!

- Primeiro me explique.

- Eu não devo explicações a um desconhecido.

- Desconhecido? Ninguém senta no carro de um desconhecido.

Ela sentia neste momento repentina raiva de como era astuto o adorável canalha. Mais um motivo para apaixonar-se. Sem defesas e escapatória, contou-lhe toda trajetória, até aquele sublime momento findado com o mais profundo olhar e um terno beijo. Fora correspondida, ao menos é o que parecia.

- Eu posso te ver de novo?

Sim, fora correspondida, era o que parecia. Quis brincar um pouco com o moço: - Desculpe, mas tenho namorado. – Pareceu convencer.

Em face desolada ele rebateu: - Tudo bem, você pode me dar o endereço dele? Eu pretendo matá-lo.

Ásperas gargalhadas ecoaram no carro verde, na rua bonita. Era tarde, seus pais deviam estar preocupados, Catarina tinha de ir., e gentil eternamente, Estevão a levou até a porta. Sem mais beijo, ela se foi dizendo: - Pode voltar sim, será um prazer. (com toda certeza seria um enorme prazer).

Dna Andréia, mãe de Catarina, espiava o ‘affair’da janela da sala da frente. Repreendeu a filha com o olhar em sua entrada... mais diálogos, mais explicações. Estava, se não estava ao menos se sentia, apaixonada . e pelo decorrer das conseqüências, era recíproca, se não era, estava conseguindo ser muito bem enganada.

A família Gonçalves era constituída por quatro membros naquela residência, eram eles Amilton, o pai de família, alto, aquela básica barriguinha de chopp, moreno, aposentado, honesto. Andréia a mãe, dona de casa,era loira, muito simpática, como toda mãe cozinhava maravilhosamente e era muito amiga das filhas, adorava comemorações e queria, também como toda mãe, a felicidade de suas filhas. Carlise era a filha caçula, trabalhava em uma lojinha do shopping, cursava faculdade de letras na cidade vizinha. E Catarina, moça distante, primogênita, morena como o pai, simpática como a mãe, de coração aberto ás boas coisas do mundo. De classe média, viviam de costumes simples, desfrutando dos lazeres de uma viagem curta e pouco distante, domingos na praia, em shoppings, bailes de casais, jantares sociais, e tantos pormenores nem tão inatingíveis para pouco dinheiro. Não dispensavam uma comemoração, por mais simples que fosse, adoravam festas. Todo aniversário era preparativo antecipado de um mês no mínimo, para impecável frisar com gosto a data... Aniversários de casamento, de nascimento, promoção no emprego, chegadas, partidas, até para os vizinhos organizavam pequenas confraternizações. Eram simplesmente felizes sendo donos de uma simples felicidade.

Novo dia em todos os lugares, um mundo um pouco diferente a cada dia, as 10 da manhã Estevão estaciona em frente a casa de Catarina, ela esperando ansiosa, já quase sem unhas, vai atende-lo sem avisos. Dna Andréia olha de cara feia, preparando o discurso para a volta da filha. No mesmo instante em que ela saiu, a mãe parou de cortar o frango e espiou de leve na janela, conversavam lado a lado no carro, que pareceu sentir a alheia observação e partiu, deixando a senhora alegre ainda mais irritada e cheia de palavras á língua. Sr. Amilton não estava, fora no bar comprar cigarro e bater uma prosa com os amigos de perto, Carlise no shopping trabalhando, a mãe ligou para o trabalho de Carlise, esta atendeu, após reconhecer a voz, desanimou-se um pouco: - Fala mãe.

- Conheces o moço que salvou a tua irmã no dia do incêndio?

- Não, por que? Ele esteve aí hoje de novo?

- Aham, e os dois saíram. Conheces ele, ou alguém da família?

- Eu já vi ele na balada uma vez mãe, com uns amigos, só isso.

- E como é que ele se comportava?

- Bem mãe, ele é uma pessoa normal...

- E...

- Mãe! Eles não estão namorando, relaxa, daqui a pouco ela volta. Mãe, eu vou desligar, tenho que trabalhar... Ah, o que vai ter pra o almoço?

- Você não tinha que desligar? Tchau!

Reciprocamente, a quilômetros de distância, os respectivos fones foram ao gancho.

O almoço estava pronto, posto a mesa, o pai entrava na rua, quando o viu o carro verde contendo sua filha. “Quem era?” “Ah, o moço do incêndio!”

Entrou desapercebendo ambos, Catarina foi logo em seguida, Carlise guardava os óculos de sol na bolsa para sentar-se ao lado da mãe. Sentaram-se todos. O silêncio rodeou os corpos e os tradicionais pratos de bife acebolado e batata souté, até que Dna. Andréia fez esperadas questões.

- Onde você estava Catarina?

- Fui dar uma volta com ele.

- E porque não avisou? – Um fio de cebola frita lhe caíra ao colo.

- Desculpa mãe.

- Da próxima vez avise. Eu não lhe proíbo, mas avise... E leve seu celular.

Dna Andréia, assim que Catarina saiu pela manhã, ligou para seu número, e a vontade foi de jogar o aparelho contra a parede quando viu o mesmo ao seu lado, soando a campainha estridente na estante.

O pai lhe fitou com olhar de confirmação a todas as palavras da mãe.

- Vocês estão namorando? – maldosamente a caçula abordara.

- Não sei. E se for, não é da sua conta. – a resposta agressiva saiu de trás de um pedaço de alface na gengiva.

Novos dias passaram correndo, formando semanas, fazendo muitos passeios em carros verdes, namoros e até mesmo uma visita a um motel, entre risos e safadezas. Era namoro, consolidaram o ato em um barzinho elegante a beira mar, sentiam-se completos. Podia ser apenas a sensação do começo, a magia dos primeiros dias.

O primeiro “amor” de Catarina fora aos 15 anos, namoraram durante um ano, e quando tudo terminou, aparentemente sem motivos, mas sim porque devia cumprir regras do destino, o mundo pareceu acabar... Mas não acabou. Depois aos dezoito namorou novamente, seis meses apenas. E agora a felicidade ao lado de um homem lhe estendia as mãos outra vez. Ambos eram maduros, e sentiam uma coisa diferente quando estavam juntos, sentiam-se um casal de grandes romances, onde nada poderia separá-los, porque fazia pouco tempo e já sentiam-se como anos de casamento... Talvez em outras vidas, talvez mega amor verdadeiro de verdade. Tinham de contar a família em breve, antes que descobrissem pela boca de terceiros, quartos ou quintos. Todos os dias se ligavam, ficavam falando bobagens apenas para escutar a voz um do outro. Trocavam carícias como idosos carentes, não precisavam falar quando estavam juntos. A presença e o olhar supriam a falta, de nem um dia, que cada um tinha do outro. Além de tudo isto, externamente, a quem olhava, as formas e gestos deixava transparecer uma fidelidade inconcebível a quaisquer alheio casal no mundo. A alegria lhes acompanhava e exalava nas presenças unidas, ou breve passagem. Sentiam-se um só, enfim amados e completos... Aham, parece cedo pra dizer, mas era pra sempre!

O encontro familiar estava marcado, conforme combinado, primeiro seria ela na família dele, no próximo sábado, em um caso íntimo, apenas com os pais e o irmão num jantarzinho simples. Faltavam apenas quatro dias, e ela estava muito nervosa... “O que pensariam dela?” Tinha de causar uma ótima primeira impressão. E se não gostassem dela? E se encontrassem defeitos, a achassem ridículas e ficassem rindo dela o resto da vida, ou se fosse odiada??? Pensamentos como este ocupavam a cabeça de Carlise, e Estevão em uma frase, a tranqüilizou: - Pense no seguinte. A maior influência da minha vida são eles. 80% das coisas que gosto, é porque eles me ensinaram a gostar, sou como eles. Então se eu gosto de você, eles gostam do que eu gosto, também vão gostar de você. Seja você mesma e relaxe, tudo dará certo!

Com certeza, deu certo. Ela quis comprar um vestido novo, ele não permitiu, ela quis ir no salão de beleza, ele não permitiu, sua mãe quis gastar um pouco mais e contratar um buffet, ele não permitiu... Eram todas pessoas simples os envolvidos no enlace. Não necessitava de luxúrias e detalhes a sobrepor na real face do que aconteceria. Ele não permitiu máscaras. Na primeira vez, tudo tinha de ser como seria para o resto da vida... Assim pretendia, por isso desde já, ceifava gestos que viessem a se auto contrariar futuramente.

Estava marcado para as 20h, ele mais uma vez estacionou o carro verde em frente à casa dela, e num único buzinar ela saiu correndo, ansiosa por demais.

A casa era simples, em outro bairro, um tanto perto do shopping onde Carlise trabalhava. Catarina levou um arranjo de flores simples, que ela e a mãe fizeram com plantas do quintal. Casa grande, rosa, de grades por todas as janelas e muros, cruzou sala de estar e televisão, na sala de jantar a recepção lhe dava boas vindas, conheceu enfim a família. A mãe, Dna Estela, o estereótipo de mãe perfeito, magérrima, de cabelos bem pintados vermelho vivo, simpática e calculista. O pai, Sr. Aldo, de cabelos brancos, alto, nariz de batata, carinhoso, entendia e ajudava na medida do possível. Completava então o irmão Eduardo, mais novo, extrovertido, ator amador de teatro, brilhantes olhos azuis, tão lindo quanto o irmão mais velho. Ainda havia alguém também especial, a cadela Shakira. Uma das fases cruciais passara, os beijos, “muito prazer” e cumprimentos gerais. A família era exatamente como Catarina imaginara. Até mesmo as obras de arte d mau gosto na parede, as flores naturais sobre a mesa, a coleira extravagante da cadela, os talheres com cabo entalhado de madeira presente de casamento. No cardápio, um clássico frango assado com farofa, para facilitar e evitar constrangimentos de primeiro grau, o frango já era desossado, em pedaços. O bom e velho refrigerante, mais alguns acompanhamentos. Catarina faminta, fartou-se e foi tanto além perante os deliciosos pratos. Pra fechamento com chave de ouro, um licor de laranja em típicas taças, e uma sobremesa de nome alemão muito complicado, com sabor irresistível, baseada de framboesas, balas de goma, e creme de leite.

Todo passo a passo que realizara em frente ao espelho saíra de acordo com as marcas. Sentia-se uma tola, a mais tola do mundo, pois era apenas conhecer a família do namorado. Mas há tempos não fazia mais isto, era novamente novidade, como se fosse a primeira vez. Estevão notara tudo isso, ria discretamente a cada ato decorado, nas palavras de conquista... Lá um pouco mais da meia-noite, se foram, cheio de combinados, simpatia e próximas visitas, pois eram adoráveis, sentia Catarina, ali uma segunda família, uma extensão da sua.

Dentro do prescrito, a próxima etapa era o jantar na residência de Catarina. Também tudo muito simples. Carlise não parava de fazer gracinhas com o casal. Como se fosse uma grande comemoração do centenário de alguém, aguardavam o namorado. Para saborear, nada melhor do que uma suculenta lasanha a bolonhesa. Espaguete ao alho e óleo, vinho, era um típico almoço italiano, daqueles que se come pouco e se farta, até ficar agoniado em instantes.

Conheceram finalmente Estevão, o moço alto, bonito, de olhos claros e cabelos louros. Simpático e brincalhão, sempre preocupado com o bem estar dos outros... Sim, é o estereótipo perfeito, parabéns à Catarina, encontrou uma mina de ouro, e ele podia dizer o mesmo.

Lá pelos tantos pratos sujos de molho, comentários, risadas, talheres no chão e elogios, Carlise deixou um pedaço de lasanha cair na mesa, sujando a toalha, e Catarina que se servia, distraiu-se e deixou o seu pedaço cair sobre a camisa de Estevão. O molho, a massa fresca, o queijo e a carne de boa qualidade desperdiçados num tecido feio. Sem muito pensar agiram em conjunto, e uma camisa limpa do pai de Catarina lhe cobria o peito, um tanto maior devido a causas óbvias. Catarina agradeceu em silêncio a todos os santos por ser ela quem fizera o estrago, em mútuo que pestanejava por ocorrer a semi-tragédia. “Logo hoje! Não podíamos ao menos estar noivos?!”. Gargalhadas diminuíram o entrevero do jantar e deixaram o manjar de coco mais saboroso. Um cafezinho, algumas piadas sem graça, e ele foi embora. Foram a um motel, distante de tudo, comemorar o sucesso das ‘visitas de apresentação’. Felizes, era hora então de combinar o encontro das duas famílias. O que haviam feito nesta semana esplendorosa, o seu passo a passo significava na verdade desviar fofocas, apesar de não deverem, e sentirem-se mais livres, além de ganhar pontos com cada qual. E sabiam eles, que maior que tudo isso, mais desafiador, porém de maior recompensa seria reunir ambas famílias, pais e irmãos todos juntinhos, somando pontos na sua vida calculista, com todo amor que precisavam para continuar amando.

Entre uma relação e outra, na cama com lençol de seda adornada de velas artificiais (pois Catarina estava ainda com trauma de parafina e fogo), combinaram que no próximo sábado, dali a uma semana seria a tropa toda, na casa de Catarina pra início, depois uma visita á casa de Estevão. Promoveriam guerra? Só na pior das hipóteses, e como toda hipótese ela não era descartável, e muito mais positivamente hipotético era se promoverem pelo encontro, se fortificarem.

Quanto mais o sábado se aproximara mais eufórico cada integrante de cada parte ficava, até que o calendário brilhou sobre a data marcada. Tranqüilidade plena, pois confiavam em si mesmos e era nada mais que conhecer um lugar diferente e pessoas diferentes, mesmo que este lugar e estas pessoas fossem permanecer no seu convívio o resto de suas vidas. Caso isto fosse verdade, num próximo encontro deveriam sentir o normal nervosismo, fazer os comuns agrados e perceber os indeferíveis defeitos e rir destes, assim como ririam deles.

No abrir do portão de grades vazadas para a passagem do carro, Carlise viu um cachorrinho atropelado, morto, bem em frente a sua casa. Era o cachorro da vizinha, um lindo poodle pintado de rosa, e o motorista acelerou fugindo, com sangue ainda no pneu. Carlise gritou alguns palavrões com raiva, gostava tanto daquele cachorro, o achava tão lindo (mesmo rosa e indiscreto). Acudiu a vizinha em desespero, acalmou-a e ela própria acalmou-se... Nada durou mais que 15 minutos, e ainda tinham um jantar.

O primeiro ponto após as saudações e apresentações foi descobrir que a família anfitriã era metida a rica. Fizeram uma ilha de antepastos para entrada do cardápio... Ora se precisavam de cardápio! Não que fossem ignorantes. Conheciam tudo aquilo, e era horrível, extremamente desgostoso. Queijos mofos, geléias, quibe cru, salmão cru apenas com ervas, aspargos, nozes, e canapés com pasta de atum e ervas... Avançaram nos canapés, toda família, em instantes acabou-se deixando o resto da ilha literalmente isolada. Catarina olhava Estevão furtivamente com ar de reprovação e interrogação. Não que estivesse gostando dos pratos, mas porque a sogra não fez aquilo quando ela esteve ali sozinha? Que descaso!Mas era sogra, nada deveria passar de olhares, e somente ainda para o filho. Eram estes olhares incomuns a namorados, era aquilo coisa de gente casada faz tempo, comemorando médias bodas, ou então que realmente tivessem nascido um para o outro... O casal perfeito num enlace trivial. A segunda opção que lhes cabia, e por puro e mútuo desejo, fariam também a primeira opção realizar-se.

Em descontração na sala de jantar Carlise viu pela janela, a cadela Shakira dormindo no quintal, lembrou-se á tona da morte do cachorro na sua rua. Do maldito motorista, que agora lhe era familiar. Eduardo entrou também no aposento, ela o reconheceu: era o motorista do carro que matara o poodle rosa! Um flashback passou em sua mente, cada detalhe, e o segundo único em que viu o rosto do homem dentro do carro, sim era ele! Sentiu-se ao mesmo tempo constrangida, furiosa e contente por poder puni-lo com suas próprias mãos.

Não mediu esforços nem contou tempo: foi de tapa sobre Eduardo. Obviamente ninguém entendeu, e demorou segundos para começar o berreiro, expandir a falta de educação e Eduardo segurá-la. Todos a cobriram de perguntas, e mesmos em saber o motivo, a mãe de Carlise já predominava em vergonha.

Tendo um obstáculo no que poderiam chamar de feliz encontro, sentados na sala de jantar, Estela, mãe de Estevão, admirava o resto de açúcar no fundo do copo de requeijão, em que a jovem em crise bebera o calmante fluído. Ela explicou-se: - O Shrek, o cachorro da Dna Ana. Foi ele quem atropelou. Eu vi quando ele saiu, e nem acudiu o pobre coitado. Ou você não lembra de ter “pego” aquele poodle rosa?

- Vocês viram? – Eduardo indagou meio pasmo.

- A gente viu sim, e porque você não ajudou?

- Ah..., sei lá... Eu ‘tava’ com pressa... Não acredito que vocês viram!

A discussão tomou rumo agressivo, respectivos parentes interferiram. Fizeram uma falsa cerimônia de desculpas, jantaram, e tudo correu sem mais atritos. Repetitivamente, no próximo sábado, na oposta família.

E o próximo sábado num piscar de olhos virou presente. Casa limpa, arrumada, o banheiro cheirando a desinfetante de lavanda, na cozinha perfumava o filé de linguado na frigideira, o risoto de frutos do mar, já estava pronto, esperando na travessa decorada. Eles chegaram, com flores, o descaso entre Carlise e Eduardo ainda predominava mesmo após o sermão da mãe enquanto descascavam batatas. Ela tinha certeza de que o odiava, e assim seria para o resto da eternidade, afirmava isso sabendo do quanto demorava pra eternidade acabar.

A família de Eduardo sentira-se em casa com tamanha simplicidade e as coisas em comum que ambas as famílias tinham. Mesmo na sala de TV esta não fora ligada, o negócio ali era boa conversa, e qualquer tipo de mídia não seria bem-vinda, ainda mais tratando-se de que era falta de educação.

Carlise indiretamente falava de Eduardo e do cachorro, mas nem passou pela cabeça dos visitantes ou até mesmo do rapaz ir embora, sentiam-se bem ali e sabiam que numa visita daquelas se tudo fossem flores algo havia de errado, e a caçula deles tratava de fazer a parte dura do ato. Dna Andréia lhes mostrou toda residência após colocar o bibelô que ganhara na estante da sala de estar: era um globo de neve, Sr. Amilton não cansava de chacoalhar. Estevão precisou de um sal de frutas após o jantar de tanto que comeu, Estela repetiu várias vezes, mas se conteve. Riram tanto dele quando pôs-se a arrotar. Não jovem na casa da sogra e já causando vexame, gestos como este ou colocavam tudo a perder ou fortificavam os laços... Neste caso, parece que os bons modos haviam ido para o espaço.

Sentindo uma felicidade incontestável a família de Estevão foi embora já pela madrugada. Sabiam que tinham feito novos ótimos amigos, e isso era ótimo porque não tinham muitos conhecidos a não ser os parentes e outros amigos.

Parece que a missão do casal estava cumprida, ao menos se esforçaram, e dali as famílias marcaram mais programas, em parias, clubes, shoppings. Estevão e Catarina desta vez não comemoraram em um motel, mas na sala da casa dela, quietinhos, abraçados, na poltrona que dava de frente pra janela. A lua era cheia e o céu estrelado. Ficaram ali admirando, juntinhos, pois um com o outro tinham tudo que precisavam, assim adormeceram, e quando era quase manhã Estevão acordou e foi embora com um beijo de despedida.

Estevão era representante comercial, Catarina se encaminhando no emprego com Dna Quininha, num prédio alugado no centro, ainda no ramo de aviamentos. Voltou a trabalhar apenas com uma condição do namorado:

A de que o prédio não pegasse fogo, e seu cliente não fosse salvá-la.

Mesmo os dois trabalhando, a noite era livre, portanto se viam praticamente todos os dias, todas as noites. Isso quando ele não ia na loja e queria ser atendido pela namorada, apenas para vê-la e ouvir sua voz, comprava então qualquer coisa, pedia para ver várias, apenas pela companhia.

As famílias toda semana estavam juntas, domingo numa casa, outro domingo noutra, o tradicional almoço de família era agora constituído sempre por ambas as partes, logicamente isto causou intrigas e fofocas com terceiros, mas nem se importavam, eram felizes, descobriram pessoas perfeitas cada qual, amigos que procuraram por toda vida. Conheciam-se muito bem, e se sentiam uma única família, até mesmo Carlise e Eduardo haviam feito pazes, e sentiam o mesmo que os pais... Porém sabiam que não caso o casal se separasse, não havia o porquê continuarem intensa amizade. Porque o clima ficaria chato, tinham esta comum e oculta mentalidade.

Do total sentimento, certa vez cuidado não tomaram numa transa, e Catarina desconfiou, após exames de farmácia e sangue, confirmou a espera de uma criança. Como toda mãe solteira desesperou-se de início, não mais que dois minutos, porque estava grávida do homem que amava, carregava no ventre um fruto daquela paixão.

Em um pesado 2 de novembro foram todos juntos visitar o cemitério. Conhecer até mesmo os parentes mortos. Em frente á capela da família de Estevão, ele largou sem querer, abraçado á Catarina: - Acho que eu não conseguiria viver sem você! Caso algo aconteça, quem morrerá de verdade sou eu!

A namorada perplexa o fitou sem medidas, lhe disse bons desaforos, realmente não gostou da brincadeira. Brigaram cercado de arranjos, familiares e anjos de pedra. A família de Catarina abalada saiu dali, ele prometendo voltar a noite para conversas. Ela consentiu segurando firme a bolsa, olhando por cima dos próprios ombros.

O feriado era de saudade como sempre, e não de tristeza. As três mulheres na casa de Dna Andréia preparavam um rápido jantar. Conversavam acionando facas e botões, a filha mais velha falava de sua relação com o namorado: -... Nós brigamos aquela hora no cemitério, mas é com ele que quero passar o resto da minha vida... No momento é o meu sonho.

Dna Andréia atravessava a cozinha com uma travessa untada, parou e olhou a filha sinceramente: - Pois se é o seu sonho minha filha, saiba que é o meu também.

- Ah que isso mãe! Obrigada!... Mas e a senhora? Quais são os sonhos da senhora? Fala mãe!

Tudo parou naquela cozinha, Carlise fechou a torneira.

- Chega um tempo na nossa vida minha filha, que vemos que os nossos sonhos da juventude eram só sonhos mesmo... – Engoliu em seco. – então, depois que temos filhos, nos dedicamos aos sonhos deles... Por isso meu sonho, é ver os sonhos de vocês realizados.

Continuaram os afazeres da cozinha. Aquela mulher que sempre dava prova do seu amor sem saber, sem medidas para as filhas, mais uma vez fazia algo que as surpreendia. Nenhuma palavra do tema ocorreu após as dela, mas todas pensavam em conjunto tirando mesmas impressões. A vontade real de Carlise e Catarina era abraçá-la sem medidas, agüentaram um tanto, mas ainda antes do jantar provaram unidas do calor do afago materno... E o jantar estava maravilhoso.

Logo ao seu término o telefone tocou, era Dna Estela, a família de Estevão. Estavam quase chegando ali.

Catarina ringiu os dentes, quis chamá-lo de todos os nomes possíveis, no entanto sentiu uma profunda admiração e palpitar das borboletas da pele... Era contentamento! Como era astuto, haviam de certa forma brigado, e agora, no primeiro encontro após o entrevero viria acompanhado da família, gente de respeito cujo Catarina não ousaria ofender, ou dizer qualquer coisa... Era contentamento!

A campainha soou, e ele já espiava entre a cortina da sala da frente, esperando vê-la, e lá correu a melhor anfitriã do mundo, a família estava ainda ao portão, a família dela ainda na sala de jantar encaminhando-se.

Ela lhe abraçou apertado, e falou baixinho de olhos colados nos dele: - Me perdoa, me perdoa e não toca no assunto! Eu te amo, eu te amo! – E um beijo foi o ponto final de suas frases.

Formaram uma ilha de amor, o casal cercado de familiares sorridentes aplaudindo por todos os lados.

Dna Estela trouxera um a bela sobremesa, imaginando que tivessem acabado de jantar e apreciassem saborear das trufas de cereja, e da torta sensação, que logicamente comprara pronta em uma confeitaria de plantão.

Dois meses foram corridos no calendário, era um janeiro quente agora em nossa história. Não podemos falar que o amor de Catarina e Estevão aumentou, mas cada vez demonstrava-se de formas diferentes, eles eram um só, até mesmo nas loucuras estavam unidos e transpassavam a felicidade em casal, como na noite de natal em que passaram ambas as famílias juntos, e após a meia-noite eles saíram com dúzias de ovos, a rua estava cheia de carros estacionados, cada qual na sua festa, tomando porres e falando bobagens com suas famílias, vestindo toucas de papai noel, e dançando com vassouras. Não havia mais fascinante idéia que jogar ovos nos carros, ninguém iria ver, e por fim entre beijos e risadas, fizeram entre si uma guerra de ovos, gerando omelete nos jovens corpos, enquanto isso, seus pais e irmãos faziam o que as demais famílias da rua faziam, mesmo que Carlise e Eduardo não fossem de muita amizade e simpatia um com o outro, desde o atropelamento do cachorro.

Nesta noite de natal, esteve tia Ruth e Tio Arnaldo, com seus trigêmeos. Era ele irmão de Sr. Amilton, tio de Catarina e Carlise. Sempre foram unidos, para tudo quanto era festa, ou um simples bate-papo eles eram chamados, mas agora, inconscientes disto, não precisavam de mais ninguém. Tinham os amigos que sempre queriam, a família de Estevão era sua mega-sena, o prêmio maior que poderiam conquistar, tinham tudo o que queriam com eles, eram as pessoas que queriam para a vida toda e todos os momentos, eram uma família a outra também um namoro, uma paixão bem cuidada e preservada... Porém, tinham noção disto, romperiam a partir do momento que Catarina e Estevão rompesse, até lá, se é que aconteceria algum dia, tudo era lucro e pensavam mais era em curtir os convidados. E como é comum do ser humano desprezar o velho quando se descobre o novo, quando Arnaldo e Ruth chegaram na recepção de natal, poucas palavras mais do que o boa-noite foram direcionadas ao casal... Ignorados pelos próprios parentes. As visitas lhes deram atenção, paparicaram as crianças, quiseram saber de sua vida, mas o irmão e a cunhada eram só desprezo. O casal chegado de ultimato sentou muito bem isso, não se demorou a ir embora magoado... Levariam o descaso para o resto da vida.

O Reveillon também foi comemorado junto, fazendo as partes descartarem subliminares convites de terceiros.

Uma família já não se programava, não tomava muitas decisões sem consultar a outra. Eram divisores de conselhos, de problemas. Ajudavam-se, compartilhavam de tudo. Já conheciam os modos e gostos, até Carlise e Eduardo mantinham este programa meio esquematizado pelo destino. Com o casal protagonista, deve-se colocar todos estes termos elevados ao cubo... Eram de uma união, força total. Não se pensava num sem o outro, no outro sem o um. Aquele casal de cinema perfeito, que todos admiravam quando passavam, que brigas era pura fantasia. Que a fantasia estava na alma de amante, e a paixão aflorando em cada olhar.

Numa destas noites do quente janeiro, estavam sozinhos em casa, Estevão e Catarina. Ela lavando a louça do pequeno jantar que fizeram... Parece que viviam á comer, mas era somente fome de amor saciada pelo alimento na certeira companhia. Estevão admirava sua bela a esfregar os utensílios, uma peça ou outra ainda muito gordurosa pelo bife à parmegianna, ou o molho da suculenta macarronada. Já haviam até a prsente data passado por várias etapas de um sério relacionamento. Já tinham visitado todos os parentes mais próximos de cada lado, agüentado os comentários idiotas destes mesmos entes, participado de coisas sem graça, acordado cedo no dia em que se podia dormir até mais tarde, para passar o dia todo com o quase cônjuge, para fazer coisas insuportáveis até então... Já tinham descoberto defeitos e qualidades, manias e loucuras, as coisas mais íntimas que em muitos casais tendo anos de convivência não descobriam. Nesta noite de ainda mais firmação, na sua simplicidade inestimável, comendo morangos com creme de leite, até o queixo de branco, Estevão perguntou: - Vamos noivar?

Obviamente não eram nem um pouco românticas as condições em que se encontravam o pedido, ainda nestas circunstâncias Catarina não deixou de sentir borboletas percorrerem a epiderme, cada poro se exaltar num arrepio sensacional. Aquela sensação de surpresa, de perder as palavras e não saber o que dizer, embora as palavras estivessem ali e ela soubesse muito bem o que dizer.

- Como assim noivar? – Até parece mesmo que ela não havia entendido.

- Noivar, oras. – Ele rebateu nesta incrível explicação. – Nós noivamos, depois de um tempo marcamos a data do casamento. Daí nos casamos, vivemos a lua de mel, ganhamos uma porção de presentes, depois de algum tempo de casados fazemos alguma loucura de amor um pelo outro, mas loucura mesmo, em público e daí vamos presos e terminamos o nosso casamento. Depois quando alguém pagar a fiança...

- Se pagarem. – Retrucou no mesmo humor a futura noiva.

- ... Exatamente. – Retomou.Eu te salvo de outro incêndio, nós namoramos de novo, noivamos mais uma vez, casamos, e tudo acontece de novo. Isso até ficarmos velhinhos.

Risadas querendo dizer sim fecharam a hipotética teoria do relacionamento perfeito de Estevão. Porém o “sim”, de alegria incontestável, foi oficializado perante as famílias juntas. Mais do que esperado um animado jantar, com muitos convidados, até decoração e buffet, pois nenhuma das mães estava a fim de cozinhar. Cada lado tinha boas economias, e estavam dispostos a gastar um pouco na jovial comemoração. Sr. Amilton preferia deixar estes acúmulos para o casamento, mas como era o único a pensar assim, venceu então a maioria pensando no sublime momento, até o casamento se tinha mais dinheiro novamente (como se ele fosse cair do céu na próxima tormenta, ou brotar no quintal ao lado dos espinafres).

Se os dias pareciam não passar, agora mesmo com noivado marcado, com amor sobrecarregado levemente em toda célula viva e morta, agora mesmo que se demoravam perante a ansiedade do compromisso maior... Como se já não estivessem no limite do amor mais ascendente.

Tudo tinha de dar certo, terem um bom sono pra ficarem bem dispostos, sendo que este bom sono incluía algumas “brincadeiras” de casais felizes. E então o dia amanhecer com o sol fustigando as cortinas, lá fora, os passarinhos cantando também apaixonados, as flores vívidas, as pessoas cumprimentando uma as outras, um delicioso café da manhã em todas as mesas, nenhuma guerra no mundo todo, várias lojas promovendo liquidações incríveis, vários quilos a menos, uma pele linda e saudável, o amor em todos os corações de genros, noras e sogras, nenhum animal abandonado, seu prato favorito no almoço, uma nota alta de dinheiro achada num casaco velho, e todas estas coisas quase improváveis, mas que fariam um dia perfeito!... Assim que tinha de ser.

Catarina acordou assustada, seu sentimento era de casamento, estava mais desesperada, feliz, angustiada e nervosa do que uma noiva de casamento, e não de noivado. Pensou ser quase meio-dia, mas passava pouco das nove, e embora fosse o dia de seu noivado, queria aproveitar um pouco a folga que tirara da loja de aviamentos (santa Dna Quininha!) no intuito de ajudar na organização do evento, queria aproveitar um pouco no quesito lazer pessoal, com ou sem noivo (embora “com” seria muito melhor). Desesperada foi a cozinha de encontro ao porto seguro da mãe, entrou no recinto assustada, ofegante, e antes que pudesse olhar o relógio dna. Andréia a alertou:- Ei, enlouquecesse? Ficasse retardada?

Catarina sentiu o exagerado apavoro sem qualquer motivo, fez umas caretas auto-repudiando-se, e encheu uma caneca rosa estampada de ursinhos carinhosos de café com leite, meio que voltando ao estado de uma pessoa normal. Comeu do pão de casa com chimia de ovo, pareceu sentir uma pontadinha na barriga... Seria o bebê? Quase deu com a língua nos dentes para sua mãe. Ainda não era hora de contar, e ainda não era hora dele estar dando pontadas. Voltou para seu quarto e chorou um pouco, sentada na cama, a caneca e o pão em farelos no criado mudo ao lado de uma maleta de maquiagem, sentia vontade de arrotar a chimia, mas o soluço do choro não permitia, passou a mão na barriga, somente agora caía em sai do que era ter um filho. E mais preocupante do que isso era a descoberta, o enfrentar da família, e a temporária reação repentina, toda uma nação contra ela por alguns segundos eternos. Será que Estevão nem desconfiava? Sabia ele que haviam transado sem camisinha, mas independente disto a culpada seria sempre ela, a mulher é sempre culpada. Assustou-se com sombras que passavam na parede, vozes vindas da rua vagavam pela frente da residência, pelo timbre reconheceu ela ser Dna Fátima, da casa de dois pisos ao lado da mercearia, um pouco depois mais pro fim da via, falavam de alguém... Concentrou-se para ouvir bem se não era dela. Devia Dna Fátima estar louca e contando fofocas, o volume aumentava e diminuía conforme sua indignação, a grande sombra das mulheres lado a lado afastou-se e ela voltou a sua deprimente realidade. Mas sorriu em seguida: deprimente agora, afinal de contas o bebê traria felicidades futuramente, sentiu uma lágrima salgada na língua e limpou o resto da água nos olhos, olhou-se no espelho embaçado do banheiro e riu forçadamente, as vezes fazia isso e conseguia voluntariamente um pouco mais de alegria no seu dia, mesma sabendo que daqui a pouco vendo todos os preparativos do noivado e ele em si, tudo ficaria felicidade pura, e precisava disso, muito, muito!

Estevão ligou perto do meio-dia, quando imaginou que tudo estivesse mais tranqüilo, e as coisas para a festa da noite mais em ordem. O telefone na casa de Catarina não parava, até Carlise pedira folga para conferir passo a passo o andamento das coisas, e logicamente se intrometer e dar indesejadas opiniões, adorava movimento e não se incomodava em não ser atendida pelas suas entusiasmadas loucuras... Falando em loucuras, estavam todas as mulheres da casa, e Sr. Amilton em total loucura. Paravam mais no clube de gala, local da festa, do que em casa. Todavia ninguém fez cara feia, reclamou ou deixou o cansaço pesar, era só hoje, um dia único e inesquecível, por isso valia todo trabalho do mundo: tirar o gelo de todos os Alpes suíços, encerar de cabo a rabo todo castelo da rainha da Inglaterra, construir mais duas ou três pirâmides no Egito, e ainda lustrar todas as peças do museu do louvre, que valeria a pena pela felicidade de Catarina.

Pai. – A filha mais velha o chamou entrando no salão de festas com olhar meio triste, ele tinha uma pilha de toalhas de mesa em mãos, antes de olhar para a filha notou que em uma havia um pequeno queimado de cigarro. – Era para eu estar me divertindo com isso, mas estou só me cansando. Isso é normal?

Ambos frente a frente, a resposta era esperada: - Catarina, a gente tem que lutar para ser feliz. É o que você está fazendo neste momento. E lutar cansa, embora existam pessoas que nunca precisarão lutar para o conseguirem o que querem, elas também nunca vão saber o que é a verdadeira felicidade.

Mais um olhar, como coreografia, se viraram e foram a seus caminhos.a exaustão abandonou a aura da noiva... Foi buscar o vestido na lavanderia, mas já não estava, Dna Estela já o levara pra casa e neste momento seu celular vibrava e tocava o polifônico de Pintura Íntima do Kid Abelha, sentiu vontade de dançar mas lembrou que era o próprio celular, no outro lado da linha a sogra falando do vestido, mas a balconista da lavanderia já havia explicado, e mostrado o recibo assinado.

No inicio da tarde a alimentação geral, todas as famílias na casa de Catarina, foi uma rica e vitaminada salada de frutas, com granola e iogurte. Haviam almoçado pouco e o pacto em comum era ter o máximo de estômago para se esbaldar com as iguarias da festa.

- Mas eu tenho de manter a forma, se não vão fazer um antes e depois da noiva no final da festa. – Alegou Catarina em meio ao assunto do delicioso buffet, uma colher apenas com pedaços de maçã flutuando acima da tigela.

- Lembra-se da Noiva do Frankstein? - Risadas cheias de frutas e granola após o comentário de Carlise. – Era horrível, feia de doer, mas nem por isso deixou de ser uma noiva.

Os pais Andréia e Amilton pensavam em qual garbo estaria o casamento, pois para o noivado tudo já estava tão extrema em perfeição, requinte e elegância... Não conseguiam ver o casamento, e conforme as tradições sociais teria de ser muito mais do que aquilo. Em segredo e sem saber dos alheios pensamentos, os pais Estela e Aldo compactuavam pelo futuro. Estevão ligou para Catarina, já estava a caminho de casa, bem e muito ansioso, ao desligar o telefone ela sentiu uma revoada de borboletinhas azuis e rosa passando por seu coração, e outra pelo seu ventre. O amor de sua em breve estaria ali, para já não mais namorarem, mas sim serem noivos, e dali pra frente terem a eternidade da paixão em seus olhos lábios e todo o ser completamente.

Num gesto de total reciprocidade ele dirigindo o seu carro verde e ouvindo em alto volume o CD de Rod Stwart que adorava, vinha a toa velocidade para encontrar seu amor e viver aquilo que seria uma nova vida daquela noite pra frente. Levara o suéter que ganhara de sua mãe no natal, era tradição de família faze-los manualmente, mas acontecera todo o incidente coma lã, na casa de aviamentos em que salvara sua outra metade, então quebrando os ritos, Dna Estela e Sr. Aldo tiveram de comprá-los prontos em confecções. Nunca sentira tanta alegria por uma tragédia, adorável tragédia que o fez conhecer Catarina, amá-la como nunca amou ninguém. Entusiasmado por todos estes pensamentos aumentou ainda mais o volume do rádio, conferiu estar preso no cinto, e cantando junto com a música seguiu acelerando na via sem muito movimento, sob o sol escaldante... Que dia lindo! Arrumava os óculos de sol sobre o nariz quando numa sinuosa curva um caminhão se colocou a frente do carro verde, Estevão sentiu seus pulmões congelarem, viu de relance o igual desespero do motorista alheio, ninguém conseguiu desviar, pode ver num último olhar pressionado pela face a marca e alguns riscos na lataria do caminhão, um farol estava quebrado... Não conseguiu gritar, apesar da vontade, o coração pulsando em todas as partes, talvez estivesse gritando mas a música estava muito alta, ouviu grande ruído de coisas quebrando bem em sua frente, outras muitas coisas entrando em seu corpo, dor e mais nada, apenas um branco muito cintilante, e o mutilado corpo de Estevão morto entre a lataria do carro verde onde Rod Stwart não cantava mais, o suéter sujo de sangue, vidro e plástico. Estevão tragicamente sem vida, num dia de sol não tão mais lindo assim.

Douglas Tedesco

Douglas Tedesco
Enviado por Douglas Tedesco em 24/04/2008
Reeditado em 24/04/2008
Código do texto: T960285