"Angelical Cunhadinha" = Conto policial=

O suplício de Susana terminou oito anos, sete meses e quatorze dias depois de começado, exatamente no dia de seu vigésimo nono aniversário, com o falecimento de seu marido em um acidente de trânsito. À uma hora da tarde, a caminho de casa para o almoço, ele levou uma fechada violenta, perdeu o controle do veículo, bateu em uma árvore e morreu na hora.

Ao saber da notícia, diplomaticamente transmitida por telefone, o primeiro sentimento de Susana foi de alívio.

- Deus que me perdoe, mas não vou fingir pra ninguém que senti a morte dele. Sendo bem sincera, ele começou a morrer para mim desde a primeira semana de nosso maldito casamento. Que Deus o tenha...

Agradeceu à pessoa que telefonou e logo depois ligou para seu cunhado.

- Já soube da notícia, Wilson?

- Que notícia, cunhadinha?

- Seu irmão faleceu em um acidente agorinha mesmo.

- Não brinque, menina! Como é que foi isso?

- Ele estava vindo para casa almoçar e bateu em uma árvore.

Silêncio do outro lado da linha.

- Wilson? Ainda está na linha?

- Estou, cunhadinha. Estava aqui pensando se te envio pêsames ou parabéns. Sei que é humor negro, mas não dá pra resistir, minha querida.

- Tanto faz, Wilson. O importante é que você venha me ajudar a cuidar do enterro e da papelada. Você vem?

- Claro, minha querida. Acha que a deixaria sozinha em uma hora de tanto sofrimento, de tanta angústia?

Depois dessa frase os dois não resistiram e riram francamente.

Enquanto esperava pelo cunhado, Susana sentou-se no sofá, desligou a televisão e recordou a última conversa que tivera com o cunhado dias antes:

“Susaninha, você é uma heroína, moça. Esse meu irmão, esse infeliz com quem você se casou, é simplesmente chato. Mas se fosse apenas chato até que seria tolerável, mas ainda por cima ele é prepotente, antipático, arrogante, pretensioso, dono da verdade, mal educado, mal humorado, grosseiro e sem tato algum. Se eu não der um jeito de terminar a sociedade com ele, perdoe-me a vulgaridade, mas estarei simplesmente fodido. Estamos perdendo clientela todos os dias. Muitos clientes e vários bons funcionários também. Ninguém agüenta por muito tempo a cavalgadura que é o pai de meu querido sobrinho e seu marido. O que te faz agüentar esse maledetto, cunhadinha?

- Sei lá, Waldir. Acho que é a educação que recebi, talvez muito antiquada, talvez medo de criar sozinha meu filho, conformismo ou covardia. Sei lá...acho que nunca parei pra pensar e preferi ir levando a vida com ele e acho que até me acostumei.

- O cretino nunca percebeu a sorte que teve ao se casar com você. Você, para ele, é dar pérolas aos porcos literalmente. Bonita, bem educada, simpática, amorosa, espirituosa, uma pessoinha tão especial casada com aquele...aquele...aquele merda, digamos assim. E você sabe que não estou lhe cantando, lhe passando a conversa. Eu já lhe dizia coisas parecidas quando você ficou noiva dele e nós ficamos nos conhecendo.”

- Cheguei, cunhadinha. Vamos lá. Vamos resolver as coisas do enterro e tudo mais. Estou às suas ordens. Cadê o Miltinho?

- Mamãe o levou pra casa dela. Depois me encontrará no cemitério. Sabe que ela teve coragem de me pedir que finja que senti muito a “tragédia”? Disse que não fica bem aparecer no velório de “cara lavada e sem lágrimas”. Vê se pode...Tenho mais medo de que pensem que eu gostava dele do que do que podem dizer sobre minha falta de sentimento.

- Você o odiava?

- Acho que não. Nunca desejei a morte dele ou que lhe acontecesse qualquer mal, mas a verdade é que desde pouco tempo depois de casados ele parece que fazia questão de exterminar qualquer sentimento bom que eu pudesse ter em relação a ele. Chatice, grosseria, incompreensão, deboches, humilhações, críticas constantes ninguém agüenta muito tempo sem uma reação. Minha reação foi não reagir mais. Deixar que entrasse por um ouvido e saísse pelo outro. Vivendo dentro da mesma casa, vivíamos separados.

- Não me diga que vocês dois não...

- Quanto a isso ele sempre fez questão de se mostrar o machão dominante. Eu apenas abria as pernas, deixava que ele “se servisse” à vontade e logo depois entrava em um banho demorado. Nessas horas ele sentia raiva e dizia que eu era uma mosca morta. Nunca se tocou que fora ele mesmo o inseticida que matara essa mosca.

- Nunca entendi como alguém podia viver como meu irmão. O cara parece que fazia questão cerrada de arranjar um inimigo por dia, uma encrenca por hora, uma antipatia por minuto. Como foi o acidente?

- Segundo me contaram, ele levou uma fechada muito violenta de uma picape enorme, sem placa e em alta velocidade. Nem mesmo quanto à cor alguém tem certeza. Uns acharam que era vermelha e outros juraram que era marrom. Agora, quanto a você, Waldir, eu nunca entendi você ter coragem de se tornar sócio dele, Waldir. Vocês são tão diferentes, ou melhor, eram tão diferentes um do outro...

- Contingências da vida, cunhadinha. A vida me pegou de jeito uma certa hora e se não fosse o capital dele eu teria ido à falência. Nessas horas a gente perde um pouco a vergonha, engole o orgulho e se enfia na merda pra resolver uma situação momentânea. Agora que ele se foi, minha querida, a sociedade será entre nós dois. Isso é, se você quiser continuar tocando o negócio comigo.

- Tenho que pensar com calma sobre isso, Waldir, mas não por sua causa.

- Sei disso, Su. Sei muito bem. Sua preocupação é quanto à minha mulher. Você se casou com um merda e eu me casei com a mulher que devia ter se casado com ele. Os dois juntos seriam o par perfeito. A diferença entre nós dois, cunhadinha, é que eu estou tomando as providências para terminar de vez meu casamento.

- Mesmo? Já falou com ela?

Wilson colocou a mão sobre o joelho de Susana, apertou-o um pouco e disse com entusiasmo:

- Não apenas falei, minha querida cunhadinha, como ela aceitou bem a coisa, me arrancou o pelo em questão de finanças ficando com a casa toda para ela, mas sem pensão alimentícia e, a muito custo, me deixou ficar com o carro novo.

Afrouxando um pouco o aperto no joelho de Susana, Wilson deixou, como que distraidamente, que sua mão continuasse pousada sobre a perna da cunhada.

Susana fingiu que não percebeu, esperou alguns minutos, levantou-se e subiu ao seu quarto para trocar de roupa e sair para tomar as devidas providências para o enterro do marido.

- Vamos, cunhadinho?

- Vamos, minha querida. Na volta eu terei uma boa surpresa pra você.

- Ah, meu Deus!! Vai me deixar curiosa até lá?

- Vou. Valerá a pena esperar. Será uma coisa boa que certas mortes nos trazem.

- Já vi que não será mais surpresa. Você vai querer me contar que ele deixou uma apólice de seguro de vida e que eu sou a única beneficiária. Isso eu já sei faz tempo.

- Como é que você sabe? Ele disse que não lhe contaria nada.

- Não contou. Quem me contou foi o gerente do banco. Ele não sabia que o gerente é meu primo de primeiro grau. Criado como se fosse meu irmão.

- Estragou minha surpresa.

Voltaram do enterro no fim da tarde admirados de quão poucas pessoas haviam comparecido. Apenas três dos dez funcionários da oficina, uma meia dúzia de amigos de Waldir e um ou outro parente.

- Estimado demais meu irmão, cunhadinha...Você viu?

- Tão estimado quanto meu maridinho, cunhado. Você viu? Nem sua esposa compareceu.

- Eles dois se odiavam. Parecidos demais, já viu; né?

Waldir parou o carro em frente à casa da cunhada e preparava-se para beijar-lhe o rosto em despedida quando ela perguntou:

- Não quer entrar e consolar uma pobre viúva desesperada? Vamos aproveitar que o Miltinho está com minha mãe e que temos a casa só para nós.

- Ô se quero!! Nem dá pra pensar duas vezes.

Transaram muito naquela noite e em muitas manhãs, tardes e noites seguintes durante vários meses até que a separação de Waldir foi oficializada e passaram a morar juntos definitivamente.

Alguns meses depois Susana percebeu, com ódio e sem qualquer sombra de dúvida, que o ex-cunhado e agora companheiro, era muito, muitíssimo parecido com o falecido de nada saudosa memória.

-Ai, ai, ai, meu Deus!! Da outra vez foi tão difícil e me custou tanto dinheiro conseguir alguém que desse a “fechada mortal” no carro daquele desgraçado...O que será que terei que fazer dessa vez? Outros oito anos iguais àqueles eu juro que não agüento.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 19/09/2010
Código do texto: T2506876
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