O BRINDE
     Eram cinco horas da manhã quando a população começou a se aglomerar na calçada, do outro lado da rua em frente ao prédio de quatro andares, na pequena cidade de Matipó.
É justamente no quarto andar, na janela de uma das duas quitinetes alugadas para estudantes da simpática faculdade da cidade. O que estava chamando atenção das pessoas é o corpo nu de uma mulher na janela. Ela estava inerte, com as costas encostadas na grade de ferro. Seria um bundalelê inerte. O corpo não se mexia, estava lá parado.
     Era preciso que a polícia subisse lá e conversasse com a moça. Era um atentado ao pudor. As nádegas brancas estavam expostas publicamente.
     Duas horas se passaram. As pessoas na calçada, ela continuava lá, imóvel.
Enfim, a polícia, depois de chamar a moça e não ser atendida decidiu entrar na quitinete. Subiram a escada com rapidez e, com paciência misturada à brutalidade, arrombaram a porta.
     Ao empurrar, para adentrarem na quitinete, depararam com um mecanismo bem montado. Havia uma barra de ferro encostada atrás da porta que dava justamente no peito da moça nua na janela. Empurrando a porta, empurraram a moça que caiu da altura de quatro andares, bateu nos fios de alta tensão eletrocutando o corpo que se esborrachou na calçada. As grades estavam soltas e sustentadas por fitas adesivas.
     O crime foi engenhosamente preparado. Alguém dopou a vítima, serrou as grades da janela e colou-as ao suporte que restou com fita adesiva forte o suficiente para segura o corpo da universitária, mas perfeitas para cederem com o empurrar do mecanismo que ligava o corpo à porta.
     A perícia concluiu que o corpo veio a falecer com o choque de alta tensão complementado com a queda.
     Podemos afirmar que o assassino contou com a colaboração da própria polícia ao empurrar a porta.
     A moça assassinada, seja lá por quem, chamava-se Polliane Garcia Meirelles, era de Mutum e estava no terceiro período de Veterinária na faculdade de Matipó, morava sozinha na quitinete, próximo ao centro da cidade.
     A polícia precisava do caso esclarecido o mais breve possível. Intrigava a todos como alguém foi armar um dispositivo bem elaborado, deixando para a própria polícia dar o empurrão fatal na bela universitária.
     Outra coisa que estavam discutindo na delegacia local era como o assassino saiu da quitinete, se juridicamente ele poderia ser considerado um coautor, juntamente com o policial que empurrou brutamente a porta, quando Dr. Ramos chegou à cidade do “milho em pó” significado de Matipó na língua tupi-guarani.
     -Vocês olharam dentro do guarda-roupa quando entraram na quitinete?
     -Os policiais fizeram juntos a mesma careta e balançaram as cabeças negativamente.
     -Um detalhe que passou despercebido por vocês. Ele possivelmente estava dentro do guarda-roupa e esperou vocês abrirem a porta, e quando já não havia ninguém lá, ele saiu.
     -Pode ser. Concordaram os policiais incluindo o delegado local.
     -Vamos dar uma nova olhada no local do crime. O corpo já havia sido liberado para ser transportado até Mutum.
     Dessa vez o guarda-roupa foi verificado. De fato acharam algumas roupas de Polliane fora dos cabides. Eram claros os vestígios de que alguém esteve escondido ali. Algumas peças foram recolhidas por Dr. Ramos.
     Depois, foi com o delegado à faculdade, conversar com colegas e professores da estudante de veterinária. Como era a vida acadêmica da mutuense na universidade? Levantaram a ficha dela. Procuraram por desavenças.
     Segundo informações, ela era quieta, na dela. Não se envolvia com turmas e pouco era vista em baladas. Dividia seu tempo em aulas, estudos e vendas de produtos da Mary Key, de onde tirava dinheiro para seu sustento.
     Um dos colegas deixou escapulir que há três meses ela foi vista paquerando um rapaz. Era o Lucas, do curso de Engenharia Ambiental, de família de Matipó.
     O rapaz foi ouvido. Teria sido ele? Não, pelo depoimento não.
     Ele contou que ficou com ela, pois estava em atrito com Brigitte, uma colega sua do curso de Engenharia Ambiental. Brigitte foi então interrogada. Somente disse que conversou com Polliane apenas uma vez para saber se o caso dela com Lucas era para valer. Queria voltar para o rapaz, como de fato voltaram e estavam juntos até as três semanas atrás.
     Quem mais em Matipó tinha motivo para matar Polliane Garcia Meirelles?
     Vasculhando mais um pouco a vida da universitária mutuense, descobriu-se que havia sim, alguém em Matipó. Era a estudante do mesmo curso, porém já no sétimo período. Luciene Carvalho, da cidade de Raul Soares.
     Luciene dominava o mercado de produtos da Mary Kay. Mas com a chegada e com o trabalho metódico de Polliane, Luciene foi perdendo terreno e seus rendimentos não era mais suficiente para se sustentar na faculdade e completar o curso dos seus sonhos.
     Em seu depoimento, disse que na noite em que possivelmente foi armado o mecanismo que acionado pela polícia, matou a moça, ela estava em sua casa com os pais.
     Dois dias depois, Luciene foi conduzida à delegacia. Seu álibi era falso. Bastou uma ida de Dr. Ramos a Granada, distrito de Raul Soares, onde os pais de Luciene moravam, para descobrir que ela não esteve lá àquela noite. Depois não dava para ela ter ido lá e voltar para Matipó tão rapidamente. Os horários de ônibus não batiam.
     Dr. Ramos deu por encerrado o caso meio a contragosto. Alguma coisa lhe dizia que havia muito ainda a ser investigado. Mas sofreu pressão interna. A polícia, o prefeito, que era irmão do dono da faculdade, e, sobretudo, a faculdade queria um desfecho rápido. A cidade precisava voltar a ser considerada tranquila e a faculdade a ter seu nome vinculado a ações positivas. Questão de marketing.
     Retornando a Mutum, Dr. Ramos fez uma visita de cortesia para a família de Polliane. Informou para os ressentidos pais que o crime tinha sido solucionado.
     Com uma pulga atrás da orelha, o detetive sentado em seu bunker, isto é, a delegacia de Mutum, iniciou uma investigação por sua conta. Faltava fazer uma análise dos contatos em redes sociais dos envolvidos. Faltava também saber como a barra de ferro, ligando a porta ao corpo encostado na grade da janela chegou dentro da quitinete. Era uma barra desmontável em três partes, porém foi um artefato preparado para aquela função específica. E quem trabalha com ferragem é serralheiro.
     Depois de analisar muito bem as redes sociais, veio à tona um triângulo amoroso entre Lucas, Polliane e Brigitte. Mas isso em si não daria para incriminar nem o rapaz e nem a moça da engenharia ambiental. As evidências sobre Luciene eram mais fortes. A pergunta é: Depois que Luciene perdeu o mercado dos cosméticos, como se virou para continuar a faculdade?
     A resposta veio com um telefonema da delegacia de Matipó. Luciene foi solta. O seu cafetão, um conhecido chefe da rede de prostituição na região, compareceu à delegacia, acompanhado de seu advogado, e provou que na noite da armação do crime, a universitária estava trabalhando como garota de programa em Manhuaçu. Era assim que ela estava se mantendo. Como ela tinha alguns clientes fixos, estes deram falta dela, e ele sabia da sua inocência depois de ter se informado de mais detalhes do crime, resolveu dar esse depoimento. Ela refez seu depoimento também. Inventou a ida a Granada, na casa de seus pais, para esconder sua nova fonte de renda.
     Dr. Ramos estava em Matipó para retomar as investigações sobre o caso. Tomava sorvete próximo à praça principal quando viu passar dois rapazes carregando um portão de ferro. Um deles, de longe, lembrava Lucas.
     Deixou o copo de sorvete sobre a mesa e partiu atrás dos rapazes. Não era Lucas, mas um irmão seu que trabalhava em uma serralheria. Perguntou se seu irmão havia lhe pedido algum serviço ultimamente.
     Ele disse que sim. Uma barra, desmontável em três partes iguais, medindo exatamente três metros e quarenta centímetros. Exatamente o comprimento da barra que foi usado no crime.
     Mas outra coisa intrigava Dr. Ramos. A marca de batom em uma blusa que ele tinha recolhido dentro do guarda-roupa.
     O detetive, do alto da sua determinação, tinha mandado a blusa para uma amiga e ex-namorada do laboratório de criminalística em Belo Horizonte. Precisava descobrir a marca  e a procedência daquele batom. Não foi precipitado. De posse das informações de que havia um triângulo amoroso entre Lucas, Brigitte e Polliane. Apesar de que batom ainda mantém Luciene também como suspeita, sobretudo se for da marca Mary Key.
     Lucas ficava com Polliane e com Brigitte. E Polliane e Brigitte tinham um caso. Mas não há nenhuma evidência de um encontro com os três.
     Lucas, em novo depoimento, declarou que a barra de ferro era para um projeto na faculdade. Eles estavam desenvolvendo um novo tipo de viveiro de muda em que se aproveita melhor a luz solar. Também confirmou seu duplo caso íntimo. Ficava com Brigitte e com Polliane, mas nunca ficou com as duas juntas. Uma não sabia do seu relacionamento com a outra. Foi liberado assim que Dr. Ramos recebeu um envelope enviado por seu assistente em Mutum.
     Chegou o laudo do batom na roupa de Polliane. A marca é justamente da Mary Key.
Dr. Ramos foi atrás de Luciene. Ao ver o laudo da criminalística, afirmou para o detetive que era um produto novo e distribuído exclusivamente para revendedoras. Ela não tinha aquele batom por que ele foi enviado como brinde há dois meses. Sabe disso por que na sua cidade, sua colega recebeu o agrado. E que a morta, assim se referiu a Polliane, certamente teria recebido também.
     Como se uma estrela a tempos apagada, voltasse a brilhar, uma lembrança de um detalhe veio cintilar na mente borbulhante de Dr. Ramos. Era o mesmo batom que Brigitte estava usando no seu primeiro depoimento.
     Brigitte então confessou que matou Polliane por que essa queria dar fim ao seu relacionamento para ficar com Lucas. Isso era inconcebível para ela que amava tanto Polliane quanto Lucas, por causa da sua bissexualidade. Pegou a barra de ferro na faculdade, juntamente com uma serrinha. Após sedar a namorada e armar o dispositivo, ficou dentro do guarda-roupa aguardando que alguém caísse na armadilha. Os policiais empurraram a porta e em consequência o corpo da amante. Então ficou escondida até a barra ficar limpa. O batom tinha sido dado a ela pela própria Polliane.
     Dr. Ramos levou flores para Polliane em seu túmulo em Mutum, guardando segredo dos seus casos em Matipó.

DA SÉRIE: DR. RAMOS
Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 04/01/2016
Reeditado em 04/12/2016
Código do texto: T5500522
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