Entre amigos - primeira parte

Quando eu tinha doze anos, minha vida mudou. Eu era o melhor aluno da sala, sempre procurado pelos professores para responder as perguntas, apesar de nunca estar a fim de respondê-las, porque havia em mim uma timidez crônica, que não me deixava erguer a voz nem falar com as garotas. E esse era meu principal problema, eu tinha medo de conversar com as garotas. Não uma conversa sobre exercícios e "o que você fez nas férias", mas um papo sobre sentimentos e passeios a sós no parque traziam-me certo pânico. Certa vez fui chamado por um amigo para conversar com uma garota. Hesitei, dei desculpas e quis embora. No dia seguinte, eu estava indo tomar uma água quando vi meu amigo parado, conversando com uma garota na janela da sala dela, tentei desviar o caminho, mas era tarde. Ele chamou-me e apresentou-me à menina, trocamos os cumprimentos habituais, mas em nenhum momento olhei-a nos olhos, o suficiente para que ela dissesse: "Desse jeito você nunca vai arrumar uma namorada". Saí dali com um mínimo de decência possível e voltei para sala, esquecendo-me de que estava com sede. Mas havia uma garota em minha sala, chamada Síntia, que fora minha primeira paixão. Era uma menina linda de pele morena e olhos brilhantes, cujo cabelo cobria-lhe a testa, num corte horizontal, quase perfeito. Lembro-me de suas bochechas que, ao seu sorriso, ganhava covinhas divertidas, iluminando meu dia, por mais cinzento que ele estivesse. No meio do ano, como de costume, acontecia o São João, e dessa vez iriam inaugurar a Caixa do Amor, onde os alunos poderiam deixar mensagens para os colegas e para os professores. O conteúdo, no entanto, só poderia ser conhecido pela pessoa endereçada, e isto me pareceu uma ótima oportunidade de declarar o meu amor. Eu não era de muito falar, mas adorava escrever. No dia em que coloquei minha carta, Síntia não foi à escola. Meu melhor amigo Eduardo não estava a par de meus planos, apesar de conhecer meus sentimentos. Fiz o possível para desvencilhar-me de sua companhia e corri (corri mesmo) até a Caixa do Amor. Depositei o bilhetinho e voltei correndo para a sala. Tomei os devidos cuidados para declarar-me decentemente e esperei com o coração aos pulos no peito. A coisa não poderia ter sido pior. Foi na quarta feira a abertura da Caixa e a entrega dos bilhetes. Pensei em faltar naquele dia, mas minha assiduidade tão estimada não poderia ter uma baixa logo no fim da unidade. Dormi muito tarde na terça, acordei muito cedo na quarta e fui para a escola sentindo que poderia voar, de tão nervoso que estava. As crianças aos poucos chegavam para formar a fila que depois formaria outra fila no interior do colégio. Esta fila cantaria o hino, ou recitaria um Salmo. Diferentemente dos outros dias, eu não consegui lembrar uma linha sequer do hino, nem do Salmo. Girava a cabeça nos quatro cantos, procurando Síntia. Eduardo deu-me um cutucão, perguntado o que estava acontecendo, balancei a cabeça, murmurando um "nada não" e continuei procurando. Entramos na sala e sentei. Síntia ainda não tinha chegado. Os bilhetes seriam abertos no intervalo, e até lá eu ficaria ansioso e preocupado. Síntia chegou dez minutos atrasada, sentou a duas cadeiras logo atrás de mim, e sorrimos um para o outro. Eu transparecia nervosismo, ela permanecia tão ignorante quanto aos meus sentimentos como sempre. Eduardo tentou algumas vezes encorajar-me para fazer uma declaração, mas seria mais fácil recitar a Lusíada de Camões, todas as suas 1102 estrofes do que fazer a declaração. Pois bem, para minha felicidade, a professora não nos deu muito que fazer, corrigiu exercícios sem nos perguntar coisa alguma, pois era um novo assunto e ausentou-se por alguns minutos na secretaria, durante a terceira aula. Ao tocar o sinal, tive o prenuncio da minha derrota, ou da vitória. Em ambos, meu estômago parecia querer sair do meu corpo e ganhar o mundo. A Caixa foi aberta no início do intervalo. Eu e Síntia conversamos um pouco, ela explicou o motivo do atraso, dizendo que demorara em encontrar o livro que precisava trazer; depois suas amigas entraram na conversa e eu fui conversar com o Eduardo, sentado num dos bancos do pátio. Havia a merenda costumeira, mas não dei bola, eu não comeria até no outro dia. Quando retornamos para a sala, com poucos falando sobre a demora na entrega dos bilhetes, eu estava mais calado como de costume. Talvez não fossem entregar aquele dia, e isto me deu um certo contentamento por não ver o rosto de Síntia ao ler o meu bilhete. Engano meu. Não só entregaram o bilhete como entregaram a mim, e não a Síntia. O ajudante da secretaria, um aluno de outra série, veio com o bilhete na mão, recostou-se a janela e chsmou meu nome em tom alto e claro. Não importei-me com o chamado, como eu era o líder da sala, às vezes tínhamos obrigações com a diretoria. Meus pés gelaram quando vi o que o menino tinha na mão, meu coração palpitou no peito. Levantei e não consegui dizer nada. O rapaz entendeu que era eu e estendeu a mão. Meu bilhete estava lá, parecendo ter sido aberto e fechado, sem nenhum cuidado. - Há duas Síntia na escola – falou ele, sem se importar em ser ouvido. - Como você não botou o sobrenome nem o número da sala, não sabemos para quem entregar. Tome, entregue você mesmo. Foi o fim da minha vida, ou o que pareceu durante dois minutos. Vire-me saber onde pôr a cabeça. Todos os alunos sentados nas cadeiras perto da janela ouviram do que se tratava. Eu não sabia o que fazer, mas andei até Síntia, entreguei-lhe a carta (não olhei em seus olhos), virei-me para sentar e desabei, sem encarar as pessoas, com o mundo girando em minha volta. Para minha sorte, no entanto, a professora não havia voltado. Todos estavam conversando e pareceram não se importar com a cena. Quando olhei para Eduardo ele sorria, divertindo-se com minha cara de paisagem. Não sei se Síntia abriu o bilhete, não sei o que fora feito dele. Não lhe perguntei nada durante um bom tempo, sequer apareci no outro dia. Eduardo visitou-me logo depois da aula. Ele morava em outro bairro, bem distante da escola. Seu pai tinha carro, mas por castigo, não o levava, pois o acordo entre os dois uma ano antes, era de que ele deveria passar de ano, senão faria todo o caminho a pé. Bem, Eduardo perdeu. Minha mãe não se importava com minhas amizades, tampouco acreditava que eu pudesse ter amigos de caráter duvidoso, pois eu mesmo fugia deles. Minha amizade com Eduardo nascera de uma forma natural, sem que houvesse uma situação incomum para que acontecesse. Ele mudou-se de colégio, pois havia perdido a aposta com o pai, e caiu exatamente em minha sala. Durante um dos trabalhos em dupla, restou apenas ele, tão perdido quanto somente os calouros são capazes de ficar, é claro que isto não durou muito. No meio do ano, Eduardo era o menino mais popular da escola, e eu, seu melhor amigo. Uma dupla nada provável, julgando o que os filmes sobre adolescentes teimam em nos mostrar, mas tínhamos interesses em comum, pois eu precisava da proteção dele e ele, de minha inteligência. Fazíamos uma dupla e tanto, deixando de fora o fato de ele ser extrovertido e eu, um complexado garoto franzino e desajeitado. Eduardo perguntou-me porque eu não fui à aula. Disse-lhe que estava doente, mas ele sabia que não. Também perguntara apenas para saber a minha resposta, já havia feito as deduções cabíveis aquela altura. Ele disse que Síntia, ao chegar e ver que eu não estava em sala, e isto me fez ficar ainda mais preocupado, perguntou por mim, e não falou mais nada. Disse ainda que ela carregava um pedaço amassado de papel na mão, que o socou na mochila e não o tirou mais de lá. Depois, no fim da aula, jogou-o na cesta de lixo. Eduardo sorriu para mim, com seus olhos apertando-se de tão pequenos e disse: Se você continuar agindo assim com ela, não vai conseguir nada. Eu estava deitado na cama, ajeitei o travesseiro e ergui-me um pouco. Do que você está falando? – perguntei. Mulher gosta de cara atirado. Você mandou o bilhete e quase se enfia debaixo da mesa. Ela deve ter achado você um bundão. Ele falava assim mesmo. Pedi que medisse as palavras, pois a mamãe, religiosa como era, não gostava de ouvir obscenidades. Ele deu de ombros. Não quero falar sobre isso – falei, cruzando os braços. Como você quiser. Mas se quiser conquistar a menina, fala com ela. Um bilhete pode ajudar, mas falar na lata é ainda melhor. Eduardo levantou-se da cama e foi até a porta. - Você vai amanhã? – perguntou. - Tenho de ir – falei. – Eu preciso ir senão minha mãe vai me entopir de remédio achando que realmente estou doente. Despedimo-nos e ele foi embora, caminhar por cinco quadras antes de chegar em casa e fazer o almoço. Sem mãe, pois ela morrera quatro anos antes, num acidente de carro, Eduardo vivia praticamente sozinho. O velho barrigudo Juarez, seu pai, era um mecânico pouco preocupado com o filho. Os dois não se davam bem. E isto influenciaria negativamente a vida de Eduardo pelo resto da vida. Fui à escola na sexta, mas Síntia não. Sentei-me num canto, perto de Eduardo, que me cutucava de vez em quando, tentando levantar meu astral. Eu não estava bem, acho que se Síntia tivesse ido naquele dia, eu estaria ainda pior. Pelo canto do olho vi duas meninas protegendo a boca enquanto falavam, riam e apontavam em minha direção. Por um minuto achei que estivessem comentando sobre o Eduardo, o menino mais bonito da sala, mas convenci-me que era de mim mesmo que falavam, os olhares eram todos para mim. Eu só não consegui descobrir se eram com boas intenções ou não, tudo indicava que era sobre o bilhete. O final de semana chegou. Eduardo convidara a si mesmo para comer conosco. Aos domingos ele não gostava de aparecer, pois era obrigado a ir a igreja pela manhã e caso fosse convidado a ir ao culto a noite, não recusaria, ninguém recusava um pedido da senhora dona Lúcia, minha mãe. Quando ela fazia a celebre pergunta: “você vai ao culto conosco hoje a noite, fulano?”, todos entendiam ser uma intimação, não uma simples pergunta. Para um menino de apenas onze anos, mesmo sendo o Eduardo, ficava difícil recusar. Pedi a ele que não falasse nada sobre Síntia, eu ainda estava muito triste. Ele respeitou, apesar de meter uma ou outra garota em nossas conversas. Depois do almoço fomos ao quintal, onde havia um grande pé de seriguela, onde comíamos as frutas e jogávamos os caroços em qualquer lugar. Conversamos bastante, sempre sobre algo relacionado a videogames e series de TV. Quando enveredávamos pelo assunto Síntia, eu mudava de assunto; quando o assunto parecia pender para o lado família, o Eduardo mudava de assunto. No fim da tarde, as quatro para ser preciso, ele teve uma ideia. Pediu-me que o acompanhasse para uma lugar que somente ele conhecia. Fomos de bicicleta. Eu na minha, e ele convenceu a mamãe a pegar a do papai, que ele usava para ir a lugares próximos, poupando assim a gasolina do carro. Eu não sabia onde era, e talvez se soubesse não teria ido. Atravessamos o bairro, cruzamos a avenida, passamos pelo supermercado mais conhecido da cidade e chegamos à praça. Uma grande praça redonda, com um parquinho e gente tocando suas vidas naquele sol insuportável. Mas não era ali o lugar. Pedalamos mais um pouco e fizemos algo que, se sabido por minha mãe, ela enfartaria, mas naquele momento, somente o frescor do vento em meu rosto importava. Assim que passou por uma F4000, Eduardo pedalou com mais vigor e agarrou a carroceria; vendo-me sem saída, pois aos poucos ficava para trás, fiz o mesmo. Entre o medo e a sensação de liberdade, abri um largo sorriso e ainda lembro de minhas risadas naquele momento quando fecho os olhos. Mais a frente largamos e entramos numa pequena rua de calçamento e, virando a direita, paramos em frente a casa de Síntia. Você é doido! – afirmei, arquejante. Quer falar com ela? – ele perguntou. Vamos embora – falei, dando meia volta com a bicicleta. Deixa de ser medroso, cara – ele disse, divertindo-se. Eu fui embora com raiva e temeroso de que Sintia nos visse. Antes de virar a esquina, no entanto, ela passou com o pai no carro, estava cm os olhos arregalados, reconhecendo a nós dois, que íamos nas bicicletas. Se não fosse o grito estridente de Eduardo, eu não teria desviado e teria batido em cheio na moto que vinha logo a frente. Depois de sermos xingados pelo motociclista (e com razão), seguimos adiante, direto para casa. Não falei com o Eduardo o trajeto inteiro, e quando chegamos em casa, recebi a bicicleta de suas mãos e nos despedimos. Desculpa aí, cara! – disse ele. Tem nada não – respondi. Entrei no banheiro, tomei um banho e reuni minhas revistinhas em quadrinhos. Li todas naquela noite, mas o olhar surpreso de Síntia não me saia da cabeça. No domingo, fomos a Escola Bíblica Dominical pela manhã. Discutimos o chamado de Abraão e fizemos analogias sobre correr atrás de nossos sonhos, pois como disse o pastor, se Abraão ficasse parado esperando a promessa, não chegaria a lugar algum. Depois da promessa, o homem que fora capaz de levantar uma faca contra o próprio filho em nome de Deus, calçou as sandálias e saiu às cegas, a procura da Terra prometida. Saímos as dez da manhã, e quando olhei em volta, despreocupadamente, vi Eduardo, sentado do outro lado no passeio, sorrindo para mim. Atravessei a rua e sentei-me ao seu lado. Eu ainda estava com raiva dele. Desculpa, cara – ele disse. Tem nada não – disse eu. Tem uma coisa que quero mostrar pra você – ele disse. Eu já não estava mais com raiva dele. O que é? – perguntei. Tenho de mostrar. Você não vai acreditar se eu disser. É muito longe daqui? É não. Fica perto, encontrei quando ia pra casa. Está bem, mas vou avisar a mamãe. Dona Lúcia, com seu braço preso ao do papai, olhou-me como se fosse desaprovar minhas intenções, mas deu um ligeiro sorriso diante da mulher do pastor e concordou que eu fosse, mas voltasse antes do almoço. Entreguei a bíblia a ela e fui para o lugar misterioso do Eduardo. Nosso bairro não era perigoso. Não havia assaltos ou assassinatos naquela epoca, pelo menos em números que alarmassem. A maioria dos crimes aconteciam nos finais de anos e em épocas festivas. Seguimos caminho então, com Eduardo chamando a atenção até mesmo de mulheres mais velhas. Mesmo com onze anos, ele parecia ser mais velho, tinha mais músculos que os outros meninos e o cabelo mais negro de todos, liso e rebelde. O oposto de mim: um garoto de andar desajeitado, cabelos crespos, corpo franzino e introvertido. Viramos a esquerda numa casa abandonado, cujas paredes não demorariam a cair ( e caíram seis meses depois), atravessamos a rua e chegamos ao nada. Eduardo levara-me para um conjunto de terras despovoadas, cheia de tocos e lixo. A frente havia uma construção, e foi para lá que ele me levou. Era um ferro velho. E não sei se ali havia algo que fosse aproveitável. Eduardo agachou-se e imitei, apesar de não saber o motivo, o gesto. O que você está fazendo? – perguntei, sussurrando naturalmente. Não podemos ser vistos –ele respondeu, sussurrando também. Prevendo o que ele estava prestes a fazer, estanquei e o puxei pela manga da blusa. O que você está pensando em fazer? – perguntei, tentando parecer intimidador. Ele se virou e encarou-me. Tem uma coisa aí dentro que quero te mostrar. Vamos embora, cara! - Já estamos aqui. Você não está curioso? – ele disse, em tom desafiador. Não, não estou – e não estava mesmo. – Você quer nos meter em encrenca? O dono não está. Não vai dar nada. Deixa de ser medroso. Achei que estávamos parados, conversando. Mas quando olhei ao redor, vi que tínhamos andado pela lateral e chegado até a janela. Eduardo espiou e disse, apontando. Olha! Respirou fundo, mordendo os lábios, e ergui a cabeça. A janela não estava totalmente aberta, mas vi lá dentro um animal parado, de costas para nós. O bicho não movia um musculo sequer. Abaixei-me novamente e arregalei os olhos. Viu? – perguntou Eduardo, sorrindo de satisfação. – Eu também não acreditei quando vi da primeira vez. É de verdade? – perguntei. Acho que não. Ele não se move. Está assim desde cedo, quando vim aqui. O que você veio fazer aqui? – perguntei. Eu sempre trago coisas para vender ao dono - ele respondeu. - Ele compra de tudo. Vendi-lhe uma ferramenta sem uso do meu pai e quando ele entrou para pesar, vi o animal e quase saio correndo. Quando o dono voltou, perguntei de quem era o animal, ele desconversou e me pagou, me mandando embora com a cara amarrada. Então fui chamar você pra ver também. - Será que é de verdade? – perguntei. - Acho que não – Eduardo respondeu, tomando a frente para espiar a porta do ferro velho. – Deve ser animal empalhado. Já assistir sobre isto na TV. Eu também já li num livro. Será que tem mais? Só vi um. Mas a gente pode entrar e conferir. Que tal? Eu já iria responder que não, mas com o barulho da caminhonete do dono do ferro velho, nos escondemos e saímos dali. Fomos conversando todo o caminho sobre o animal. A penumbra do pequeno quartinho onde ele estava, não nos deixou discernir qual bicho era. Pensávamos ser um felino, talvez uma onça. A nossa curiosidade, no entanto, nos poria em sérios apuros dias depois, e então descobriríamos de que animal se tratava. Pena que isto mudaria completamente o rumo de nossas vidas.

Regi Ferreira
Enviado por Regi Ferreira em 29/12/2017
Reeditado em 29/12/2017
Código do texto: T6211988
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