Permita-me discordar

E após a sessão de autógrafos dirigida aos fiéis e curiosos que haviam vindo adquirir seu mais novo livro sobre o reassentamento de judeus na Palestina, o reverendo Matthews deparou-se com um homem alto, de terno com colete e barba negra, que o aguardava à saída do salão de festas da igreja. O homem estava com um exemplar de "O Caminho do Reino" nas mãos, e Matthews imaginou que fosse um admirador. A confusão dissipou-se em poucos instantes, quando o estranho lhe estendeu a mão e apresentou-se.

- Reverendo Matthews? Sou o detetive Norman Rowland... Agência Pinkerton.

Matthews franziu a testa, mas apertou a mão estendida.

- Sr. Rowland? A que devo a visita?

- Podemos conversar em particular?

Matthews fez um aceno em direção à secretaria paroquial.

- Por aqui...

Entraram na sala, decorada com móveis austeros e pesados, e Matthews fechou a porta, indicando uma cadeira de braços ao detetive. Sentou-se em outra diante dele, e abriu as mãos.

- Podemos falar agora, senhor Rowland.

- A minha presença aqui, hoje, deve-se ao fato de que o senhor recentemente anunciou sua associação com Arsenio Brentano, importador.

- Sim, o senhor Brentano possui bons contatos na Palestina e desde algum tempo tornou-se divulgador de meus livros sobre a questão do reassentamento dos judeus naquela região... mas no que isso poderia ser do interesse de uma agência de detetives?

- A Pinkerton foi contratada para investigar a venda de terras na província de Nablus, Palestina, por Arsenio Brentano, com fins de colonização.

- Até aí, nenhum problema...- retrucou Matthews. - Estou ciente de que o Sr. Brentano estava organizando a formação de uma colônia em terras que havia adquirido dos turcos otomanos.

Rowland cruzou as mãos sobre o ventre.

- Mas é este justamente o problema, reverendo. As tais terras que Arsenio Brentano está vendendo, possuem moradores nelas; aparentemente, tirá-los de lá será responsabilidade dos compradores.

Matthews encarou o detetive com ar de estupefação.

- Então... não é uma terra sem povo para um povo sem terra?

- Depende do conceito que o senhor queira dar a "povo", reverendo... se por "povo" quiser dizer "pessoas", Brentano o enganou e aos seus investidores. Há muita gente vivendo lá... por gerações, inclusive.

O reverendo passou a tamborilar nos braços da cadeira.

- Creio que por "povo" ele quis dizer uma nação. Certamente, não há uma nação hoje naquelas terras inóspitas da Palestina...

- O senhor sabia que os otomanos possuem um parlamento, reverendo?

- Naturalmente - retrucou Matthews com ar ofendido.

- Então, permita-me discordar. Há uma nação ali sim... os árabes, inclusive, possuem representantes no parlamento.

O reverendo encarou o detetive com animosidade.

- Quem está lhe pagando, detetive Rowland?

- Meus contratantes estão protegidos pelo sigilo profissional, reverendo. Mas eles também leram os seus livros e pediram que lhe transmitisse um recado...

Inclinou o corpo para a frente, e declarou:

- Se acredita que restabelecendo os judeus em Israel provocará a Segunda Vinda de Cristo, perde seu tempo. A Segunda Vinda já ocorreu... na destruição de Jerusalém, em 70 d.C..

Matthews suspirou.

- Preteristas. Eu devia ter imaginado...

- A Grande Tribulação? Ela já ocorreu para os judeus pelas mãos dos romanos, que destruíram o Templo de Jerusalém - acrescentou Rowland.

Matthews exibiu um sorriso pálido.

- Ah, detetive... as tribulações para os judeus não terminaram. Há pogroms ainda ocorrendo na Rússia enquanto estamos aqui, conversando... e haverá outros, até que eles tenham uma terra para chamar de sua. A terra que, por direito, é deles.

- Se os colonos se virem lesados, o senhor certamente será denunciado, reverendo - alertou Rowland.

- O recado foi dado, detetive. E agora, por favor, queira retirar-se.

Rowland ergueu-se, e com uma vênia de cabeça, saiu da secretaria. O reverendo ficou ainda um tempo ali, pensando no que fazer.

Finalmente, decidiu-se a mandar um telegrama para Brentano. Precisavam acelerar a implantação da colônia de Nablus...

- [09-05-2018]