O APARTAMENTO

UM barulho estranho foi aos poucos tomando forma conhecida. Sim, era o barulho de uma campainha que parecia muito distante. Aos poucos se foi aproximando e quando chegou ao seu auge, Cláudio ergueu-se repentinamente na cama. Em princípio, atordoado; depois se foi integrando ao ambiente e viu que estava acordando. Aborrecido, reclamou:

- Droga! Quem estará tocando a campainha a esta hora?

A seu lado, Lúcia espreguiçou-se e falou lentamente:

- Não é a campainha, é o telefone.

- Vá atendê-lo! É para você - disse o homem sem coragem de levantar-se.

A mulher, por sua vez, não tinha o menor desejo de sair da cama. Pegou o celular na mesinha ao lado e olhou as horas.

- Não é para mim. Minhas amigas só ligam para o meu celular. Não tem nenhuma ligação. Com certeza é para você.

Os dois, sentados na cama, se olharam.

- Se fosse para mim, teriam ligado para o meu celular - retrucou Cláudio.

- Mas você sempre desliga o celular quando vai deitar. Veja se não tem alguma ligação perdida - insistiu a mulher.

Enquanto isso, novamente o telefone insistiu na sua chamada. Enquanto um esperava pelo outro, o homem ligou o celular e verificou as ligações perdidas.

- Três ligações perdidas - disse. Não conheço esse número. Não é de ninguém conhecido. Droga! Estava dormindo tão bem... Logo hoje, sábado!

Levantou-se, demonstrando completa falta de coragem, vestiu uma calça e pegou a camisa que estava sobre a mesa do televisor. Desligou o ar-condicionado, não dando atenção às reclamações de Lúcia.

- Deixa ligado! Vou ficar mais um pouco na cama.

- Nada disso. Levanta e passa o café, pois, com certeza, vou ter que sair. Se estão insistindo tanto, deve ser alguma coisa importante.

Com raiva, a mulher levantou-se e foi para o banheiro, ajeitando os cabelos com os dedos. Estavam em completo desalinho. Cabeleira cheia, rebelde, dava-lhe o ar de alguém que estava apavorada. Não era loura, nem ruiva. Notava-se claramente que tingia os cabelos e mudava constantemente de cor. Por isso tinha um cabelo mais rebelde que o costumeiro. Não era magra, mas não tinha o perfil de gorda. Era, por assim dizer, cheia de corpo, mas com uma pouca gordura proporcional. Aparentava uns trinta e cinco anos, mas poderia ter muito mais. Era uma mulher que se cuidava, que vivia constantemente em academias. Fazia caminhadas na avenida, despreocupadamente.

- Já sei o que é importante! Tu sabes muito bem quem está te chamando para a farra. Vai ser na casa de quem? - gritou do banheiro.

Como não obtivesse resposta, continuou: - Ou vai ser no clube?

Cláudio não deu ouvidos aos gritos da mulher. Pegou o telefone com vontade de desligá-lo sem ouvir quem estava do outro lado da linha, mas a curiosidade fê-lo atender.

- Alô!

Uma voz desconhecida e arrastada fez-se ouvir logo em seguida.

- É da residência do senhor Cláudio Azevedo?

Por um momento quis dizer que, se estava ligando para a casa dele, era claro que era, mas não queria encompridar a conversa.

- É sim. Quem está falando?

- Aqui é o corretor de imóveis. O senhor lembra que me procurou para ver um apartamento?

Cláudio estava querendo mudar-se e procurava um local mais próximo do trabalho. Perdia muito tempo indo e voltando para casa. Além disso, a despesa com combustível aumentava a cada dia, pois subia o preço da gasolina e aumentava o congestionamento. Acordar cedo não era o seu forte, mas não podia chegar atrasado. Algumas vezes, quando isso acontecia, notava os olhares dos colegas na sua direção e já tinha ouvido muitos cochichos de que ele era protegido pelo chefe. Não gostava daquilo e sabia que mais dia menos dia poderia ser transferido para outra área, ou sofrer retaliações após a aposentadoria do chefe.

- Como é mesmo seu nome?

Na ânsia de encontrar logo um apartamento, tinha procurado muitas imobiliárias e até então ninguém havia ligado. Tinha recebido muitos cartões, mas não os guardava. Ao chegar a casa, jogava-os em qualquer lugar sem pensar que um dia poderia precisar do número na hora de ligar.

- Sou o Ricardo... O senhor falou comigo há uns quinze dias, lembra-se?

Lembrar-se? Cláudio não era muito bom em guardar nomes e fisionomias, principalmente de pessoas que vira uma vez e não tinha a esperança de encontrá-las novamente. Para não perder tempo, nem teve o trabalho de vasculhar a memória.

- Ricardo de qual imobiliária?

Com a voz de quem estava decepcionado, o homem respondeu:

- Da Imobiliária More Bem. O senhor esteve lá numa sexta-feira à tarde e eu o atendi. Falamos pouco, pois estava apressado. Apenas disse que queria um apartamento, indicou a região e a faixa de preço. Eu fiquei de ligar tão logo aparecesse um dentro das suas especificações. Creio que o que eu tenho no momento pode agradar-lhe.

- Tudo bem. O senhor quer mostrar o apartamento agora? Não pode deixar para outra ocasião?

- Tem que ser hoje, senhor Cláudio, pois nele mora um idoso e disse-me que só pode mostrar o apartamento nos dias de sábado.

Após um breve silêncio, Cláudio continuou:

- Eu não quero apartamento ocupado. O meu desejo é efetuar a compra e mudar-me o mais rápido possível.

- Não se preocupe, quanto a isso. O proprietário quer se desfazer do imóvel e mudar-se para uma chácara que tem no interior, tão logo o transfira. É só uma questão de legalizar a venda.

- Onde a gente se encontra?

- Avenida Imperial, 432, próximo da Quinta Real. O proprietário é o senhor Gilbert Roland, apartamento 816. A gente se encontra em meia hora.

Cláudio desligou o telefone e por um instante olhou a mesa da sala de jantar. A mulher continuava no banheiro, ele não tinha tomado banho e o café não tinha hora para ficar pronto. Ainda com a camisa na mão, dirigiu-se para o banheiro social. Aparentava um metro e oitenta, cabelos grisalhos, pele bronzeada e não mais que cinquenta anos. Tinha um perfil de atleta, pois praticava esportes. Gostava muito de futebol, mas a idade não permitia que o praticasse no clube, pois a turma que o frequentava tinha quase a metade da sua. Mudara para o vôlei e o tênis. De vez em quando, fazia uma temporada de academia.

- Não vou tomar café aqui! Vou ter que sair para ver um apartamento - gritou para a mulher, que continuava no banheiro.

- Eu sei que apartamento tu vais ver! Conta essa história direito - respondeu, aos gritos, Lúcia.

Depois de alguns minutos, Cláudio saiu enrolado em uma toalha, foi para o quarto e trocou-se. Quando saiu, vestia uma calça cinza, uma blusa azul marinho, calçava um tênis preto e na mão trazia um boné do San Antonio Spurs.

- Ainda volta hoje? - Lúcia tornou a gritar.

Sem responder, ele tirou o carro da garagem e saiu em direção à zona sul da cidade. Era um 207 Sedan, da Peugeot, cor prata, ano 2015, que saiu rapidamente pelo asfalto irregular, obrigando o sistema de suspensão trabalhar para manter uma estabilidade confortável no veículo.

O relógio do carro marcava 10 horas e trinta e cinco minutos. Há algum tempo havia passado o prazo determinado pelo corretor para chegar ao endereço informado, mas mesmo assim não acelerou o veículo além do permitido pela sinalização. Estava no norte e ia para o sul. Àquele horário o trânsito não era tão difícil, mas ao atravessar o centro da cidade vinha a complicação. Os carros parados em fila dupla dificultavam muito mais que o excesso de semáforos. No cruzamento da Heliodoro Pestana com a Martins Pena uma batida paralisou o fluxo. Teria que dobrar à esquerda, mas a via estava interditada pelos agentes de trânsito. Pelo retrovisor viu que a fila estava crescendo. Olhou o relógio. Estava muito atrasado e aquilo lhe preocupou por dois motivos: prezava pela pontualidade e não podia perder a oportunidade de ver o apartamento. Talvez aquele fosse o momento que tanto esperava. Deixava-lhe entediado o percurso que fazia todo dia. Iniciava o trabalho diário sob o peso do estresse, isso sem falar no custo mensal. Pegou o celular e ligou para casa.

- Lucia, o corretor ligou novamente?

Do outro lado da linha, ela falou ainda aborrecida:

- Tá ligando de onde?

- Estou preso no trânsito! Bolas! Ligou, ou não ligou?

- Ninguém ligou - disse, batendo o telefone.

Era uma das coisas que mais aborrecia Cláudio. Ela queria ser bem atendida em todos os momentos, mas quando ele precisava dela para alguma coisa era um suplício. Ela nem ligava para os seus problemas, ele que os resolvesse sozinho. Lembrou-se de quando lhe pedira para ir ao banco fazer um pagamento e ela disse-lhe que tinha horário com a manicure. Não adiantou argumentar que a manicure poderia ser remarcada, mas o boleto tinha prazo para pagamento.

O relógio marcava dez para meio dia. Estava mais que atrasado e o pior é que não tinha o telefone do corretor. Viu um guarda passando e chamou-o.

- Vai demorar, seu guarda? Tenho compromisso e estou muito atrasado.

- Todos têm compromisso, moço. Tem gente ferida no carro e só podemos removê-lo após a chegada da ambulância. Em primeiro lugar a vida, depois os compromissos - disse o guarda, se afastando.

Não gostou do tom de voz do agente de trânsito. Pensou em anotar seu nome, mas não o fez, apenas repetiu silenciosamente por várias vezes, como se quisesse gravá-lo: Maurício... Maurício... Maurício...

O tempo passando e a ansiedade ia tomando conta de Cláudio. Impaciente, saiu do carro e foi para o local do acidente onde muitos motoristas procuravam satisfazer a curiosidade e os guardas tentavam afastá-los.

- Para trás, minha gente. Vocês estão atrapalhando o nosso trabalho. A ambulância está tendo dificuldade de chegar até o local das vítimas. O trânsito está difícil e vocês estão complicando ainda mais.

- Esse negócio vai demorar quanto tempo, seu guarda? - perguntou Cláudio para o guarda que se virou, encarando-o.

- Você de novo! Volte para o seu carro e aguarde. É a melhor coisa que o senhor pode fazer para nos ajudar.

Contra vontade, ele voltou. Ligou o carro e em seguida o ar-condicionado. O calor beirava os quarenta graus na rua. No carro, aproximava-se dos cinquenta. Ligou o som numa emissora, mas a música que tocava deixou-o mais nervoso ainda. Preferiu desligá-lo e fechar os olhos. Talvez assim conseguisse se acalmar.

- Ei, não está satisfeito com essa paralisação toda e quer complicar minha vida! Vamos, te manda!

Abriu os olhos e viu o mesmo guarda mandando-o avançar, enquanto um barulho de várias buzinas fazia-se ouvir na fila que ele impedia que andasse. Só então observou que dormira no carro, enquanto o problema era resolvido. Dando partida, viu que passava das treze horas.

Algum tempo depois chegou ao endereço procurado. Teve dificuldade para encontrar uma vaga, mas conseguiu a uns cinquenta metros. Passou defronte ao prédio, um edifício novo de quinze andares, localizado numa rua calma, larga e bem sinalizada. Era protegido por um grande gradeado de ferro com lanças pontiagudas sobre as quais havia várias câmeras. Ao lado do portão de acesso, uma guarita elevada e bem protegida dava para abrigar confortavelmente um vigia.

Após caminhar de um lado para outro sem saber quem estava procurando, foi que notou que cometera um terrível engano. Não tinha a menor ideia de como era a fisionomia do corretor e esquecera-se de combinar com ele uma maneira de se identificarem quando chegassem ao edifício. Ligou novamente para casa, mas desta vez ninguém atendeu. Sabia que não adiantaria conversar com o vigia, mas mesmo assim resolveu procurá-lo.

Quando voltou para a portaria, o vigia não se encontrava no posto. Aquilo lhe aborreceu, pois mostrava que a segurança não era considerada importante naquele prédio. Procurou uma sombra para se proteger, esperando o vigia voltar para a guarita. Enquanto isso, um carro parou defronte ao portão que se abriu lentamente. Após o carro passar, viu que ele se fechava na mesma velocidade em que abrira. Não pensou duas vezes. Já que não havia um guarda e tinha o endereço e o nome do proprietário do imóvel, por que não conversar diretamente com ele?

Na área externa do prédio pôde ver como ele era imponente para as suas ambições. Após passar o portão, os veículos seguiam ladeando um imenso muro de proteção recoberto por trepadeiras bem cuidadas. Entravam pela direita e saíam pela esquerda. Do outro lado da pista, um jardim com inúmeras palmeiras sombreavam diversos bancos de madeira com encosto. Em seguida, duas piscinas, uma olímpica e outra infantil, deixavam à mostra uma água límpida e azul que convidava ao banho. Às margens das piscinas, várias cadeiras longas para bronzeamento e ao lado uma mesinha redonda protegida por uma sombrinha enorme e colorida. Separando as piscinas, um gramado verde, cercado por pequenas roseiras, dava um ar de paraíso. Para circulação, duas vias de pedras amarelas uniam as piscinas. Havia ainda uma cerca de palmeiras que lançava sombras às águas. Ao longo das piscinas, algumas cascatas jorravam permanentemente.

Cláudio pensou em procurar logo o proprietário do apartamento, mas aquela visão do que poderia ser o seu novo lar foi bem mais forte. Continuou a caminhada e o que viu mais adiante lhe deixou extasiado. Próximo a um grande playground, uma área coberta contendo inúmeras mesas e bares e, a um canto, uma enorme churrasqueira. Tudo isso rodeado de frondosas árvores, onde conseguiu muito bem ver mangueiras e oitizeiros. Era uma maravilha de sombra. Pensou no que poderia acontecer nos finais de semana e com isso despertou para o momento. Antes de sonhar, tinha que tornar tudo aquilo uma realidade.

Voltou para portaria do prédio e notou mais uma vez que o porteiro não estava no seu lugar. Entrou no saguão e não viu ninguém. Foi direto para o elevador e apertou o botão do oitavo andar. Durante o trajeto, o elevador não parou em nenhum momento. Quando a porta se abriu, olhou para os lados e viu que deveria ir para a esquerda. Ninguém. Nenhum barulho. Apertou a campainha do 816 e aguardou. Nada. Só silêncio. Apertou novamente e aguçou os ouvidos, mas não conseguiu observar nenhum ruído. Torceu a maçaneta. Estava trancada. Olhou o relógio. Passavam vinte minutos das duas da tarde. Resolveu voltar.

Quando chegou à portaria, o vigia já se encontrava e o olhou desconfiado. Descendo da guarita, o encarou.

- Como o senhor entrou?

Já prevendo este tipo de pergunta, Cláudio logo respondeu:

- Vim com um amigo, mas acho que ele esqueceu que para eu sair alguém tem liberar o portão. Quando chegamos não havia ninguém na portaria...

Aquela observação deixou o porteiro sem graça. Viu que tinha sido flagrado por um condômino e ia ter que se explicar com o síndico.

- Foi uma emergência. Tive que sair às pressas e não encontrei quem me substituísse.

Querendo sair o mais rápido possível, Cláudio procurou encerrar a conversa.

- Não foi nada. Tudo está na santa paz. Não houve problema e com certeza meu amigo não vai lhe dedurar.

Com ar de alívio, o porteiro liberou a saída.

Aproveitando o nervosismo do porteiro, ele saiu apressado e sem contratempos entrou no carro e voltou para casa.

* * *

À noite, vendo o noticiário da TV, ficou espantado. O repórter policial, falando de um crime, levou a imagem da emissora para o edifício que poderia ser o seu novo lar. O rebuliço no local era grande e pelas imagens dava para notar que as filmagens aconteceram poucos minutos após sua retirada. Havia dois carros da polícia, uma ambulância, vários policiais e muitos curiosos se aglomerando em torno da área delimitada pela faixa amarela com os dizeres: Não ultrapasse!

Cláudio sentou-se na poltrona e olhou atentamente para a cena. De repente o cenário já não era mais aconchegante como antes. O burburinho no local imitava um filme policial que se vê costumeiramente na televisão e ele gostava de tranqüilidade. Outro carro chegou com a sirene ligada e as luzes piscando, parou bruscamente e um policial jovem, moreno, alto, de expressão dura, desceu da viatura. Aproximou-se de outro policial e conversou com ele. Em seguida, os dois entraram no prédio, enquanto o repórter descrevia o que devia ter acontecido, segundo informações colhidas no local.

- ... a polícia foi chamada pelos vizinhos que faziam caminhadas diariamente com o morto. Como não aparecera no pátio do edifício, nem atendera às ligações do grupo, um deles subiu para ver o que tinha acontecido. Não obteve nenhuma resposta ao tocar a campainha e viu que algo estava errado, pois, segundo o vizinho, ele sempre avisava para alguém quando ia sair, pois morava só, e não ligara para ninguém. O porteiro disse não ter visto o morto durante o dia e que não tinha desconfiado de nada, pois a sua saída costumeira era na parte da tarde quando ia fazer a caminhada com os amigos...

Sem entender o motivo, aquela notícia deixou de lhe interessar. Cláudio desligou o televisor e foi até a geladeira. Como não tinha ido ao supermercado nos últimos dias, ela estava desabastecida. No entanto havia duas latas de cerveja. Pegou uma e abriu, enquanto preparava um sanduíche.

Quando Lúcia chegou, ele cochilava na poltrona.

- E aí, gostou do apartamento? – perguntou a mulher, jogando a bolsa sobre a mesa.

Ele ficou calado. Queria dizer que ficara maravilhado, mas os últimos acontecimentos deixaram-no confuso. Até o interesse da mulher, que ele não sabia dizer se era falso ou verdadeiro, era um motivo para não externar seus sentimentos.

- Já sei, - disse ela, - o preço está acima de suas possibilidades. Eu sabia! Eu conheço aquele bairro. Ali é muito requintado, tudo muito caro, só tem gente rica. Não é coisa para teu bico. Se quer sair daqui, procura outra região.

Lúcia tinha uma personalidade volúvel e isso era o motivo da instabilidade emocional que reinava na vida do casal. De um momento de afabilidade para outro de críticas, sem nenhum motivo aparente, ela criava um ambiente insustentável, onde a convivência se tornava difícil. Nessas horas ele simplesmente saía da sala e ia para o quarto de hóspedes e passava a noite. Quando o clima chegava ao extremo, saía de casa e passava dias fora. Mas voltava.

Foi para o quarto.

* * *

No dia seguinte, tanto os jornais como o noticiário nas rádios e nas televisões destacou a notícia de forma bombástica. O morto era muito conhecido na cidade. Descendente de francês, ele fizera fortuna no mundo das artes como marchand, intermediando obras de pintores famosos entre os ricos da região sul e sudeste. Sua grande facilidade de acesso ao mercado europeu tornou-o o preferido dos aplicadores em objetos que eram focados em amostras internacionais. Os jornais fizeram um breve apanhado de sua vida e cada um mostrava um aspecto diferente que, no conjunto, daria uma pequena biografia.

* * *

O final de semana transcorreu em paz e na segunda já não se falava mais do crime. Cláudio retomou sua vida normal sem, contudo, esquecer o edifício onde estava o apartamento que passara a ser dos seus sonhos. Nem o conhecia, não sabia do tamanho, nem das divisões, mas tudo que vira na área social fora suficiente para conquistá-lo. No escritório, remexendo papéis, viu alguns folders com a propaganda de vários imóveis. Amassou todos, jogando-os no cesto de lixo. O telefone tocou. Olhou e viu que era de Lúcia.

- O que é? – atendeu meio chateado. Esperava não ser aborrecido no trabalho. Não é porque tivesse alguma coisa para fazer, mas não estava com vontade de falar com ninguém. Principalmente com ela.

- Encrenca – disse ela.

- Não estou para brincadeira. Estou ocupado. Se tem alguma coisa para dizer, fala logo! – disse, aborrecido.

- Não estou brincando, não. Passaram aqui dois policiais e entregaram uma intimação. Vai ter que comparecer ao 13º DP...

Estupefato, ele isolou-se da realidade. Não ouviu mais o que ela estava dizendo, apenas sentiu o mundo girar e, tonto, apoiou-se na mesa para não cair. Após alguns segundo, pareceu despertar no meio de um pesadelo.

- Estão me acusando de quê? – gritou Cláudio.

- Não sei. Apenas dizem que é para prestar uns esclarecimentos. Acho melhor tu passares ainda hoje na delegacia e vai com um advogado – disse a mulher, desligando em seguida.

Cláudio ficou em pé, segurando o telefone, por um momento. Parecia atordoado com a notícia. Seja lá o que estava acontecendo, na certa teria muita dor de cabeça para se explicar com a polícia. Não esperou mais nada. Antes mesmo de desligar o telefone, viu-se correndo em estacionamento. Entrou no carro e saiu em disparada.

* * *

Na antessala do escritório do advogado, Cláudio esperava ansioso a sua vez. Era uma sala pequena onde a mesa da atendente ocupava a maior parte. Nela havia só um telefone, agendas e um processo. Uma poltrona com três assentos, outras duas individuais completavam o mobiliário. Na parede, um quadro com o diploma do causídico e do outro lado uma paisagem discreta mostrando a Estátua da Liberdade. A atendente, uma jovem de pequena estatura, loura, franzina, fitava o cliente, possivelmente pensando no que poderia ser o motivo que o trazia ao escritório do doutor Augusto Comte.

- O senhor aceita um café?

Absorto em seus pensamentos, Cláudio não ouviu a jovem falando. Naquele momento olhava insistentemente para os dedos das mãos como se pudesse encontrar neles a solução para os seus problemas.

- Senhor!... - insistiu a jovem. - O senhor aceita um café ou um copo d’água?

Como se despertasse de um longo sono, Cláudio olhou espantado para a jovem. Só então observou que ela lhe oferecia café. Indeciso, passou a mão no rosto.

- Um café, por favor.

Enquanto tomava o café em pequenos goles, a atendente o fitava com insistência. Via no rosto marcado pelas primeiras rugas uma espécie de pavor. Estranhou aquele comportamento porque ele parecia ser um indivíduo inofensivo, daqueles que não molestam, nem são molestados por ninguém. Estava acostumada a ver pessoas de toda espécie no escritório. Uns chegavam com o ar de quem está acima de todos e esses eram os piores. No final, sempre davam-se mal. Outros eram tímidos, calados, parecia que o mundo havia desabado sobre eles, como se mostrava o novo cliente. Com esses, muitas vezes ela se enganava.

- Estão demorando, não é? - falou Cláudio irritado.

A jovem deixou o seu mundo de análise e voltou à realidade. Dificilmente prendia-se às conjeturas, mas naquele momento, sem saber por que, viu-se envolta em indagações por causa de uma pessoa que não conhecia, não tinha ideia dos seus problemas, mas que a contagiava.

- O caso dele é demorado. Depois, o senhor não tinha hora marcada. Geralmente o doutor Augusto não recebe ninguém sem uma reserva.

- Nós somos amigos de infância - disse Cláudio, contorcendo-se na poltrona como se pudesse esconder-se nela.

Uma sirene tocou levemente. A jovem levantou e entrou na sala onde o advogado atendia. Cláudio ficou olhando a porta do gabinete por um instante. Estava nervoso e gotas de suor brilhavam em sua testa. Àquela hora não fazia calor. Ao contrário, o escritório estava bastante frio e o ar-condicionado funcionava perfeitamente com um leve ruído que não chegava a incomodar. Observou que ainda se encontrava com a xícara na mão. Foi até a mesa para devolvê-la e viu o jornal que estampava uma manchete policial: PORTEIRO DESCREVE POSSÍVEL ASSASSINO.

- Só mais uns dez minutos e o senhor será atendido - disse a moça, voltando para sua mesa.

Com um susto, Cláudio deu um passo para trás, como se tivesse sido apanhado fazendo algo de errado. A jovem notou a reação do cliente, mas procurou acalmá-lo.

- O senhor quer ver o jornal? Pegue-o, por favor.

Agradecendo, ele voltou para a poltrona. Abriu na página policial e foi direto para as declarações do porteiro.

“ ... quando voltei para a portaria havia um homem circulando pela área das piscinas, sem que eu soubesse como tinha entrado. Perguntei como entrara e ele disse que tinha vindo com um amigo. Achei estranho, pois se tinha vindo com um amigo devia estar com ele, ou pelo menos ter ficado para abrir o portão. Como não vi nada de anormal, liberei o portão para sair. Mesmo assim, acompanhei-o de longe e vi quando ele entrou num carro prata e anotei a placa. A polícia está com essas informações... ”

Antes de terminar a leitura, o cliente que estava sendo atendido saiu acompanhado do advogado. Praticamente da mesma idade de Cláudio, Augusto era grisalho, porte atlético, moreno e usava um cavanhaque. Despediu-se do cliente e depois se aproximou do amigo que o esperava. Com um sorriso e um forte abraço, convidou-o para entrar.

- A que devo a honra dessa visita? Espero que não seja nenhum problema para resolver.

- O pior é que é, Augusto. Ultimamente tenho andado com uma onda de azar que quando menos espero acontece tudo que não presta.

Indicando uma poltrona, o advogado sentou-se atrás da sua escrivaninha.

- Senta e conta o que está acontecendo. De antemão eu te digo que não acredito em azar. Tudo o que acontece tem uma razão de ser, tem uma origem. É aquela velha história de que uma coisa puxa outra, mas nada surge sem uma explicação.

Sem saber por onde começar, Cláudio coçou a cabeça. Olhou o interior da sala e viu que era tão simples quanto a antessala. As únicas diferenças era o tamanho da mesa, um pouco maior, uma ampla prateleira recheada de livros que cobria quase toda a parede, uns armários e uma geladeira quase escondida num canto da sala. Na mesa, poucos papéis, uma estatueta da justiça feita de mármore e algumas agendas.

- Já viste o noticiário hoje? Leste o jornal que está na mesa lá fora?

- Vi pouca coisa, mas o que foi que aconteceu que o traz aqui?

- Um homem foi assassinado, um marchand... - disse Cláudio, interrompendo em seguida.

- Conhecias esse homem? Tiveste algum encontro com ele? - perguntou o advogado, demonstrando interesse na conversa.

- O pior é que eu não o conhecia, mas tinha interesse em conversar com ele. Estive no prédio onde ele morava justamente no dia em que foi assassinado. Tinha um encontro com um corretor, pois soube que ele estava querendo vender o apartamento e ele me interessava. Por conta de um engarrafamento, cheguei muito atrasado ao local do encontro e não vi mais o corretor. Para não perder a viagem, fui até o prédio e acabei entrando no edifício, subi até o endereço que me foi fornecido, toquei a campainha, mas não apareceu ninguém.

- Achas que a polícia vai te procurar?

- Já está me procurando. Estava no escritório quando minha mulher ligou para avisar que dois policiais tinham passado lá em casa e entregue uma intimação para comparecer ao 13º DP.

Enquanto Cláudio falava, o advogado fazia algumas anotações.

- Chegou a tocar em alguma coisa?

Após pensar um pouco, Cláudio respondeu:

- Peguei na maçaneta. Já que não aparecia ninguém e eu vi uma faixa de luz por baixo da porta, procurei ver se estava aberta. Bati, mas não ouvi nenhum barulho. Resolvi voltar.

- Quantas pessoas te viram no interior do prédio?

- No interior do prédio, ninguém. Pelo menos não observei. Mas na área de lazer, várias pessoas que trabalhavam com limpeza me viram. Na portaria, quando tentava sair, o porteiro chegou a conversar comigo. No jornal ele afirma para o repórter que me viu, abriu o portão para eu sair e chegou a anotar a placa do meu carro para dá-la à polícia.

Após alguns segundos pensando, o advogado perguntou:

- Tens certeza de alguns detalhes que ocorreram que podes dizer à polícia sem que venhas te contradizer depois? Por exemplo, a que horas chegaste ao prédio? Como conseguiste entrar sem o controle do portão? Quem te viu entrando? O que fizeste após entrar? Foste direto ao apartamento, ou passaste por outros lugares? Coisas assim, que a polícia com certeza vai te perguntar, não só uma vez, e não pode haver contradição.

Cláudio contou todo o seu trajeto de casa até o local do encontro com o corretor. Falou inclusive da discussão que tivera com o guarda de trânsito durante o engarrafamento.

Sem demoras, Augusto ligou para o delegado.

- Bom dia, meu caro Dr. Pedro Cintra! Como vai de problemas para resolver?

Ouviu o delegado por uns bons dez minutos. Parecia que ele estava abarrotado de serviço, pois não dava tempo para um simples comentário. Por fim, o advogado disse-lhe que um cliente estava sendo intimado e que iria levá-lo no dia seguinte. Informou que se tratava do caso do assassinato do marchand. Em seguida, desligou. Antes de fazer qualquer comentário, foi à geladeira, tomou um gole d’água e trouxe um copo para Cláudio.

- Bebe um pouco, pois vamos ter que conversar bastante.

* * *

No dia seguinte, Cláudio ligou para o escritório avisando que não iria trabalhar. Era um dos diretores técnicos de uma grande construtora e tinha muitos projetos para analisar, mas em primeiro lugar sua situação.

Quando chegou ao escritório do advogado, ele já o esperava. Após tomarem um cafezinho, Augusto olhou para o amigo e disse, reforçando as palavras:

- Vamos agir com bastante cuidado. Não sei por que, mas acho que alguém vai querer te usar como bode expiatório.

- Porra, cara! Mas por que eu? - perguntou Cláudio, nervoso.

- Porque tu estavas no lugar errado, na hora errada e infelizmente não tiveste a paciência de aceitar a chance que o destino estava te dando ao não encontrares o tal corretor. Perguntaste se ele foi ao local e, se foi, por que não ligou, já que estavas atrasado?

Cláudio respondeu balançando a cabeça negativamente. Não tinha o número do corretor. Nem ao menos se perguntara por que ele não ligara querendo saber por que não tinha ido. Afinal, se ele tinha interesse em comprar o apartamento, o corretor tinha interesse em vendê-lo, já que ia receber uma boa comissão.

- Olha, eu acho que isso vai render muito. Quem sabe se ... Deixa prá lá. Vamos ver o que o delegado tem a dizer.

Quando chegaram à delegacia, o delegado encontrava-se em seu gabinete sozinho, esperando-os. Como já se conheciam, foram direto ao assunto sem delongas.

- Não vou tomar o depoimento do seu constituinte no momento. A nossa conversa vai ser informal, mas asseguro que os investigadores estão bastante avançados nas pesquisas e temos algumas informações interessantes.

- Antes de continuar, Pedro, foi feita a autópsia? - perguntou o advogado. - O ponto que me interessa no momento é a exata hora da morte do marchand. Não me interessa a forma, mas a hora.

O delegado puxou uma gaveta e tirou um volume onde se encontravam todas as informações sobre o caso. Pegou o laudo cadavérico e mostrou para o advogado. Lá o legista afirmava que o crime havia acontecido entre dez e dez e meia de sábado. Que ele havia sido atacado com uma estatueta usada como peso para papéis.

- Nesse horário meu cliente não estava ainda no condomínio onde aconteceu o crime. Temos como provar - disse o advogado. Em duas oportunidades ele discutiu com um guarda de trânsito que estava tentando administrar o caos que estava ocorrendo no cruzamento da Heliodoro Pestana com a Martins Pena. Só temos que localizar o guarda e verificar a hora que a ambulância recolheu os feridos. Só depois disso é que o trânsito foi liberado no local.

- Então você cuida dessa parte - disse o delegado. Já tenho muito trabalho para fazer.

- Nada disso, doutor. O senhor, como policial, tem mais facilidade em obter essas informações que eu como advogado. Depois, esse trabalho é da polícia, não do advogado.

Augusto era amigo do delegado há muito tempo, contudo nessas ocasiões usava de toda cerimônia para mostrar que não estava usando o amigo, mas colocando-o na posição de agente da lei.

- Está bem, mas se não conseguir em uma semana vou ter que pegar o depoimento dele. Afinal foi citado pelo porteiro e eu não posso dispensá-lo sem que exista algo que assim o justifique.

- Pois eu acho, delegado, que o senhor deve procurar ouvir o corretor. Ele aparece nessa história de uma forma muito esquisita - disse o advogado.

- Não se preocupe, vou intimá-lo. Eu vou precisar do nome e endereço, pelo menos o do trabalho.

Naquela noite Cláudio dormiu mais calmo. Sentia-se mais confiante com o trabalho do amigo e à proporção que ele falava, mostrava indícios de saída para o seu caso. Agora uma luz mostrava que ele não estava totalmente perdido, como pensara no início.

* * *

No dia seguinte, tão logo chegou ao escritório, pediu uma ligação para a Imobiliária More Bem. Pediu para falar com o corretor Ricardo, mas disseram que ele havia saído. Deram-lhe o número do celular.

Ligou.

- Alô! É Ricardo? - Após a confirmação, continuou. - Cara, naquele sábado tu me ligaste cedo para casa para a gente ver o apartamento da Avenida Imperial e não apareceste por lá!

Após conversar com o corretor, ligou para o advogado.

- Augusto, eu falei com o corretor e ele me disse que não se encontrou comigo na Avenida Imperial, porque foi assaltado no cruzamento da Floriano Peixoto com a Cruz e Sousa. Estava de moto, parado no semáforo, quando dois caras colocaram uma arma nele e levaram a moto e o celular. Disse que saiu a pé direto para o distrito registrar um B. O.

Como o advogado disse-lhe para não se preocupar, pois o delegado estava tomando as providências para ouvir o corretor, e ia ouvir também o porteiro, saiu um pouco tarde do escritório e passou num bar onde costumava encontrar-se com amigos.

O recinto estava lotado e muitas caras estranhas tornavam o local esquisito. Não viu ninguém conhecido e achou aquilo anormal. Mas não ligou. Tomou duas doses de uísque e como não tinha com quem conversar, resolveu ir para casa. Pegou o carro e saiu lentamente pela avenida, aproveitando que o trânsito estava calmo e corria uma brisa suave. Com os vidros abertos podia ver com clareza alguns bares movimentados, com pessoas saindo e chegando. Ao sair da avenida, observou que um carro o seguia desde que saíra do bar. Ficou tenso e acelerou, procurando ver a reação do outro. Não soube dizer se era impressão ou realidade, mas sentiu que o veiculo acelerava também. Para tirar a dúvida, dobrou uma esquina e logo em seguida viu surgir o mesmo carro. Uma onda de pavor tomou conta do seu corpo e as mãos começaram a suar, escorregando sobre o volante. Pisou mais fundo e quase bateu no carro da frente. O desejo de fugir fê-lo agir de um modo que sempre criticava nas pessoas. Passou a andar em zig-zag, na tentativa de ultrapassar os carros que encontrava pela frente. Desesperado, perguntava-se o que devia fazer: procurar uma rua movimentada, onde estaria protegido por vários carros, ou uma via deserta, onde poderia tentar fugir em velocidade.

Encontrou uma brecha e jogou o carro. Sentiu um solavanco grande e viu que havia se jogado dentro de um buraco. O carro balançou e quanto mais o acelerava ele se fixava na beira do buraco. Viu que estava perdendo tração. Olhou pelo retrovisor e não viu o carro, mas quando virou o rosto para a direita, pensou que ia morrer. O automóvel diminuíra a marcha e um dos passageiros estirou o braço para fora. Instintivamente, abriu a porta e lançou-se no buraco ao mesmo tempo em que ouvia vários estampidos. Em seguida o barulho de um carro que arrancava em velocidade.

Parecia uma eternidade, mas haviam transcorrido somente uns dez minutos quando saiu do buraco. Estava sujo de lama, tinha um hematoma na cabeça e o ombro doía terrivelmente. Passou a mão no bolso e viu que estava com a carteira e o celular. Pediu um táxi e procurou se esconder da melhor forma possível atrás de uma banca de revista. Sentiu vontade de pular de alegria, quando o táxi parou a seu lado. Ao chegar a casa, respirou aliviado ao ver que sua mulher não estava. Foi direto para cama.

* * *

Na manhã seguinte, ligou para o advogado e fez um relato do que havia ocorrido. Combinaram para se encontrar na delegacia onde Cláudio foi registrar um Boletim de Ocorrência, por sugestão do causídico.

Passados dois dias do atentado, o advogado ligou-lhe pedindo que fosse ao escritório no final da tarde. Nada mais disse, deixando-o ansioso.

- Tenho umas informações conseguidas por baixo do pano. São confidenciais e devem ser guardadas sigilosamente.

Parou para tomar um gole d’água, deixando Cláudio curioso, mas também nervoso.

- Foi encontrada uma apólice de seguro no valor de cinco milhões de reais e imagina quem é o beneficiário, no caso de morte do marchand.

Após um instante de silêncio, o advogado continuou:

- Não tens a menor ideia?

Cláudio não falou. Apenas balançou a cabeça negativamente.

- Pois o beneficiário é nada menos que Cláudio D’Alvarenga Azevedo!

Cláudio estremeceu na poltrona como se tivesse levado um choque. Estupefato, boca aberta, ergueu-se, de repente, quase gritando:

- Eeeuuu!!! Mas por que eu? Eu nunca vi o cara na minha vida. Só vim saber o nome dele através do corretor. Nem por telefone conversei com ele. Que diabo está acontecendo?

- É como eu te disse, meu amigo, estão querendo jogar a culpa do crime nas tuas costas.

- Eu não entendo como uma pessoa faz um seguro e coloca logo o meu nome como beneficiário, sem me conhecer?

- Isso aí está mais do que claro que o seguro não foi feito pelo morto. Eu tentei obter algumas informações na seguradora, mas eles disseram que se tratava de um assunto confidencial e não deram nenhuma pista.

- Mas o delegado pode investigar este caso e conseguir as informações que tu queres. Fala com ele - pediu Cláudio.

Augusto balançou a cabeça, dizendo que não.

- Não posso tocar nesse assunto para o delegado, pois oficialmente essa é uma informação sigilosa e ninguém tem acesso a ela, a não ser os investigadores e o próprio delegado. Se eu falar, vou perder minha fonte na delegacia. Vamos dar tempo ao tempo.

- Diz para tua fonte sugerir ao delegado uma investigação na seguradora - insistiu Cláudio.

- Também não é possível, pois minha fonte não tem acesso ao inquérito, entendes? O que ele me passou é resultado de uma pesquisa às escondidas. Se ele demonstrar ao delegado que conhece essas informações, é o mesmo que confessar que está vasculhando documentos aos quais ele não deve ter acesso.

Após um instante de silêncio, Cláudio lembrou-se do fatídico dia e passou na sua mente todos os acontecimentos. Lembrou-se do guarda.

- Mas eu tenho um álibi. No momento do crime eu estava preso no congestionamento e isso pode ser confirmado pelo guarda de trânsito. O delegado já falou com o tal Maurício? - indagou.

- Falou, mas ele enfatizou que foram tantas as reclamações que recebeu no local do acidente que não tem como se lembrar especificamente de uma pessoa. Sem essa confirmação, tu não tens um álibi - disse o advogado.

* * *

Passados dois dias, Cláudio vivia seu inferno astral. Na reunião da diretoria recebeu uma carga de reclamações pelo atraso de um grande empreendimento que dependia dos resultados da análise do departamento de sua responsabilidade. Na verdade sua cabeça estava perdida no espaço. Perdera o controle da situação e dependia de sua assessoria que lhe enchia de perguntas sobre o seu estado psicológico. Não contara nada a ninguém da empresa. Mesmo tendo pessoas de confiança, aquele assunto devia ficar sob sete chaves enquanto fosse possível escondê-lo. Sentia, no entanto, que a bomba estava para estourar e já se imaginava perdido. Corria o risco de ser preso a qualquer instante e perder o cargo pelo qual dera grande parte de sua vida para consegui-lo.

À noite encontrou-se com Augusto no Clube dos Advogados. Pedira esse encontro, ou melhor, suplicara por ele.

- Estou perdido, cara - disse, em tom de desespero.

- Tem calma! Não é hora para desespero - retrucou, o advogado.

- Pra ti é muito fácil falar. Eu estou vivendo num inferno. Quando me olham na rua é como se me apontassem o dedo e dissessem: - “Olha, esse cara matou um homem para receber um seguro! Ele nem conhece o homem a quem matou!” E no trabalho, então! O silêncio de cada um é como se me chamassem de louco. Eu vejo espanto em cada olhar. Outros me olham com ar de medo. Se continuar assim, vou acabar enlouquecendo!

Augusto colocou uma dose dupla de uísque no copo e o empurrou na direção do amigo.

- Tome essa dose e vê se te acalma. Procure não guardar tudo isso dentro de ti. Desabafa com Lúcia...

- Tá louco! - gritou Cláudio, antes que ele terminasse a frase. - Ela só quer saber de salão de beleza, lojas e academia. Se eu falar duas palavras com ela, no dia seguinte a cidade inteira saberá de vinte. Não.

- Então vais ter que desabafar com alguém.

- Por isso que insisti que saísses comigo para algum lugar. Eu preciso me abrir, falar seja lá o que for, mas não posso ficar com toda essa tensão me matando. O coração vai acabar estourando - disse, ao virar o copo.

Por um instante, os dois ficaram calados. Cláudio estava tenso, ainda segurando o copo vazio, olhou fixamente para o amigo, esperando uma fórmula salvadora para a sua situação. Augusto, por sua vez, dobrou lentamente um lenço de papel sobre a mesa, mergulhado na onda de angústia do outro que aos poucos parecia querer contagiá-lo. Ergueu lentamente a cabeça, encarando-o, por fim.

- Eu tenho ideia do que estás passando, mas eu pouco posso te ajudar. Tenho muitos processos que me tomam o tempo além do que eu estou disposto a pôr à disposição do trabalho.

Amassou o lenço, jogando-o no copo.

- Não quero que leves a mal, mas por que não procuras uma psicóloga? Se quiseres, posso te indicar uma amiga. Ela já vai ficar sabendo do que se trata e vai te ouvir. Se achares que te interessa um conselho, com certeza ela é a pessoa ideal para mostrar como deves agir numa situação como essa que estás passando.

Sem nada falar, Cláudio jogou uma cédula sobre a mesa e saiu.

* * *

Numa quarta-feira à tarde o telefone tocou na mesa de Augusto. Do outro lado alguém falou:

- É do Lagosta Dourada?

- Não, o telefone de lá termina com 2045 - disse, desligando em seguida.

Olhou as horas e espantou-se. Eram exatamente oito horas da noite. Só então se lembrou de que sua secretária não viera à tarde, pois levara a mãe ao hospital. Rapidamente, pegou o telefone e ligou para casa.

- Amor, me perdi no tempo e como vou ter um compromisso às 20 e 45, não me espere para o jantar. Me perdoe por não ter ligado antes. Um beijo.

Com a velocidade que o trânsito permitia, percorreu o centro da cidade até pegar uma via menos trafegada. Atravessou uma ponte e depois entrou numa rua estreita, quase deserta, até encontrar uma imensa área repleta de árvores, bastante iluminada, com um grande estacionamento. Colocou o carro num canto protegido pela sombra de uma mangueira, que ocultava a lua cheia dominando o espaço. Fugindo dos locais mais freqüentados, chegou a um elevado onde poucas mesas ficavam à disposição dos clientes especiais. Naquela noite, para alegria sua, a mesa preferida estava desocupada.

Olhou o relógio. 20 horas e quarenta e dois minutos. Como ele, o outro também prezava pela pontualidade.

- Boa noite! - disse, enquanto puxava uma cadeira.

Antes que o outro respondesse, continuou:

- O que tem de tão importante para esse encontro de urgência?

- Vamos disfarçar, doutor - disse o homem.

- Tem razão.

Enquanto Augusto procurava um garçom, seu companheiro de mesa tirou do bolso uma cadernetinha de anotações. Folheou-a cuidadosamente até encontrar o que procurava. Aguardou o retorno do advogado.

- Este caso está cheio de fatos interessantes - disse, mostrando umas anotações.

Enquanto Augusto lia, o policial olhava fixamente para seu rosto, esperando observar alguma reação que pudesse valorizar a sua informação. No entanto, não viu nenhum movimento facial que denotasse surpresa. Ficou decepcionado, mas já observara que o causídico era muito esperto e sabia que quanto mais importância desse à notícia passada por ele a informação ficaria mais cara.

- Aqui tem muita gente graúda – disse o advogado. - São clientes do morto, na certa.

Continuou passando as folhas com certa atenção. Demorava mais em alguns nomes e noutros nem considerava. Estava indeciso quanto ao valor daqueles dados. De qualquer forma, iria negociar um preço para não perder o informante.

- Cem reais, para não perder a viagem. Esses nomes não me interessam – disse, enquanto tirou a carteira do bolso do paletó.

- Que é isso, doutor? O senhor acha que eu iria perder tempo vindo aqui se essas informações não tivessem valor? Eu nunca iria lhe tirar de casa, se isso não fosse importante – disse o policial, prevendo uma longa negociação.

Augusto fechou a caderneta e deixou-a cair sobre a mesa. Não viu nenhuma ligação entre aqueles nomes e o crime. Uma nuvem de tristeza e preocupação cobriu-lhe os olhos. Lembrou-se do amigo e de como ele se encontrava. Olhou para o policial à sua frente e imaginou que ele estava aproveitando-se da situação para tirar-lhe dinheiro, no entanto, pensou que há alguns anos vinha recebendo informações úteis para a solução de muitos problemas sem que ele o explorasse.

- Cem reais para a gasolina – repetiu, colocando a cédula sobre a mesa.

O policial afastou-a com delicadeza. Viu o garçom chegando com uma garrafa de uísque e os copos. Pôs a mão sobre a cédula, enquanto ele colocava as doses. Quando ele se afastou, tomou um gole da bebida, enquanto o advogado estava impassível à sua frente. Devolveu a cédula, fazendo uma observação:

- Doutor, eu não quero saber mais que o senhor, mas eu acho que a gente deveria começar a investigar a vida dessas pessoas que estão relacionadas nessa lista. O morto não iria anotar numa caderneta esses nomes se não houvesse um motivo. Eu copiei do mesmo jeito que ele escreveu. Nem mais, nem menos. Lá não consta endereço, telefone, local de trabalho... não tem nada para facilitar a identificação. Isso quer dizer que são pessoas bastante conhecidas.

Tomou mais um gole de uísque. Viu no rosto do advogado que ele procurava processar o que estava ouvindo, na ânsia de chegar a alguma conclusão. Estava imóvel, olhos fixos no copo à sua frente. Parecia que, de tanto estático, não respirava. O grande reboliço do local não o fazia despertar para a realidade. Uma voz suave começou a cantar uma canção antiga, ao som de um melancólico piano. Àquela hora, os garçons andavam acelerados por entre as mesas. Olhou o relógio: 22 horas e cinco minutos. O tempo passava rápido.

- Doutor, o senhor está me ouvindo?

Voltando à realidade, Augusto acrescentou mais duzentos reais à cédula de cem que estava sobre a mesa.

- Se for o que estou pensando, vou te dar mais depois. – Tomou a dose de uma só vez. – Vou precisar de ajuda, Chicão. Temos que descobrir o que aconteceu com esses clientes do marchand para serem colocados numa lista separada. Ver se alguém tem, ou teve, alguma relação com meu cliente.

O policial sorriu e encarou o advogado.

- O que é que está acontecendo, doutor? O senhor não está conseguindo raciocinar? Investigar cada um desses nomes é perda de tempo e tempo é coisa que eu não tenho.

- Se não é para serem investigados, eles vão me servir para quê?

- O senhor não está me entendendo. É claro que eles devem ser investigados. Passe para o delegado. Eu não estou com o caso – disse Chicão.

Augusto, com cara de espanto, esmurrou a mesa, fazendo com todos em volta o olhassem espantados. Ele fez um gesto de pedido de desculpas e falou baixo:

- Porra, cara! Eu não tinha pensado nisso! Realmente, vocês têm muito trabalho, são muitas investigações e o pessoal disponível é pouco. Tenho outra ideia. Amanhã cedo vais à Seguradora e vê o que consegues arrancar do pessoal.

Impaciente, o policial balançou a cabeça negativamente. Estava estranhando o comportamento do advogado. Tinha admiração por ele porque era uma pessoa de raciocínio rápido e dificilmente errava em suas suposições. O que estava acontecendo?

- Como é que eu vou chegar pedindo informações sem estar fazendo parte das investigações? O que o senhor tem a fazer é falar com o delegado e sugerir essa linha investigativa. Mas se lembre o que estou dizendo: sugerir!

- Tu estás trabalhando em que caso, agora? – indagou Augusto.

- No crime do armazém – respondeu.

- Esse caso é meu também – disse Augusto. – Vou tentar uma jogada com o Pedro – disse, referindo-se ao delegado.

* * *

No dia seguinte, Augusto pôs em prática seu plano.

- Está bem – disse o delegado – vou tirar o Chicão desse caso, o problema é que vou ter que colocá-lo na investigação do crime do marchand e pelo que sei tu tens interesse nele também.

- Não tem problema. Este é um caso novo. O outro é que está se arrastando e eu tenho pressa – disse, sorrindo intimamente.

Augusto era muito esperto e sabia manobrar as pessoas com bastante maestria. Quando os seus interesses estavam em jogo, passava por cima de todos. Não resta dúvida de que era muito generoso e isso fazia com que, mesmo notando que estavam sendo usadas, as pessoas fechassem os olhos.

Oficializado na investigação do crime mais falado nos últimos dias, Chicão, seguindo orientações do advogado, foi à seguradora e ficou sabendo que havia uma apólice de seguro em nome de Cláudio Azevedo. No mesmo dia, ligou para Augusto informando que o Promotor de Justiça havia solicitado a prisão de Cláudio. As notícias surgiam com extrema rapidez e não eram boas.

* * *

A lua estava encoberta por uma camada fina de neblina, numa noite fria e silenciosa. A estrada escura e deserta compunha um cenário fúnebre. As margens eram planas e sem arbustos, como se tivessem sido preparadas para a agricultura. Um vento brando corria, levantando um pouco de pó, batendo na flandagem do carro que se deslocava solitário na direção de um imenso vulto adormecido no horizonte. Mesmo sem trânsito, o veículo era conduzido com cuidado, pois a visibilidade não era boa.

Após alguns instantes, a pista começou a contornar um terreno pedregoso e íngreme. No meio da neblina, inúmeros vultos de pedra completavam o cenário catastrófico. Pareciam gigantes ajoelhados ao redor de um altar de sacrifícios instalado na margem da estrada. Ao desviar-se de um vulto, o carro chocou-se contra algo colocado no asfalto. O motorista por pouco não se lançou através do pára-brisas, não fora o cinto de segurança que usava. Rapidamente livrou-se do cinto, abriu a porta e escapuliu por entre as pedras. A uma certa distância, parou e procurou ouvir algum ruído, já que não tinha a menor possibilidade de enxergar nada. O frio obrigou-o a se encolher, pois no interior do carro, com os vidros fechados, a temperatura estava agradável.

Não tinha noção do tempo, mas pressentiu que passava da meia-noite. Temeu ter que passar a noite encolhido naquele local, pois o frio estava aumentando. Do local onde se encontrava podia ver o vulto do carro com a porta aberta. Desejou estar agasalhado no calor gostoso do veículo, mas o medo foi maior. Nos últimos dias, muita coisa estranha tinha acontecido e não queria se arriscar. Lembrou-se do atentado que sofrera e agora a estrada estava interditada...

Olhou para todas as direções e não viu nada. Lá em cima a lua continuava quase escondida. Intimamente rezou para que continuasse assim, pois estaria mais protegido. Enquanto aguardava o tempo passar, vieram-lhe à mente os acontecimentos dos últimos dias. Sua vida sempre fora a mais pacata possível, pois seus únicos problemas eram em casa com Lúcia. Enquanto ele batalhava dia após dia para realizar seus sonhos, ela esbanjava tudo o que ele não conseguia impedir. Por isso suas discussões. De repente começaram os problemas, surgidos sem nenhuma explicação. Agora viu que tudo estava ligado ao apartamento que desejava adquirir. No entanto, não conseguiu ver nenhum vínculo plausível, mas tudo começou com a primeira visita ao imóvel.

Pareceu-lhe ouvir pessoas falando. Aguçou os ouvidos e prendeu a respiração. Nada. Silêncio total. Só uma leve brisa fazia as folhas das raras plantas rasteiras moverem-se. Esfregou as mãos. Estavam geladas, como também as orelhas, o nariz e os pés. Encostou-se à pedra, procurando retirar dela o calor que não existia. Lembrou-se de quando tudo começou. Estava na lanchonete, próximo ao prédio da construtora, lendo os classificados, enquanto a garçonete trazia-lhe um suco com um salgado. Teve a leitura interrompida por um estranho que se apresentou como corretor de imóveis.

- Desculpe-me interrompê-lo, mas vi que o senhor está lendo os classificados na parte de imóveis e eu sou corretor. Na nossa imobiliária temos vários apartamentos e eu tenho um que com certeza vai lhe agradar.

Cláudio olhou para o homem que estava à sua frente e o analisou friamente. Homem franzino, estatura mediana, cabelos por cortar e em desalinho, barba rala, testa estreita, olhos negros com umas sobrancelhas grossas e um queixo fino com um pequeno sinal no lado esquerdo.

- Realmente estou procurando um apartamento – disse, fitando o homem fixamente.

- Vi que o senhor está procurando nos anúncios da zona norte – falou, enquanto puxava o jornal sem ao menos pedir licença. – Olhe, eu tenho um excelente apartamento na zona sul e com certeza que lhe agradar.

Cláudio sentiu-se um pouco incomodado com aquela petulância. Puxou uma conversa num momento em que ele precisava estar só e agora quase lhe tira o jornal das mãos. Achava incrível como alguém pudesse agir daquela maneira, com tamanha falta de educação. Mas, ao mesmo tempo, admirou-se com a coragem do vendedor. Vender era muito difícil, só os afoitos conseguem se sobressair nessa atividade.

- Eu prefiro na zona norte, pois fica mais próximo do meu local de trabalho – falou relutante, embora existisse uma ponta de curiosidade querendo saber que imóvel era esse que estava sendo oferecido para ele.

- O senhor não pode dizer um não sem conhecer o apartamento – retrucou o corretor. – Tenho certeza de que o senhor ficará maravilhado com ele e não perderá a oportunidade de possuir um imóvel de qualidade por um pequeno preço. Além disso... o senhor trabalha mesmo onde? – perguntou sem demonstrar curiosidade.

- Na Dirceu Lopes, próximo do Viaduto Wilson Petroni – respondeu.

O corretor abriu um grande sorriso no rosto castigado pelas acnes da juventude. Afastou-se um pouco, procurando um local em que ficasse numa posição mais elevada.

- Pois o senhor não poderia trabalhar em local melhor. Se o senhor pegar o viaduto na direção da Cardeal Richelieu, onde fica o condomínio, só vai pegar trânsito no cruzamento da Heliodoro com a Martins Pena. Nem todo dia a coisa pega por lá. Vai sair mais rápido do que morando na zona norte porque, mesmo sendo mais perto, tem a região do estádio que vive sempre cheia de camelôs e depois o Centro de Abastecimento, que é uma loucura, principalmente pela manhã – disse com toda euforia de que era capaz.

Novamente um barulho mais forte tirou-lhe do mundo das recordações. O frio estava insuportável e as mãos estavam quase dormentes. Abraçando a si mesmo colado à pedra, viu dois vultos aproximarem-se cautelosamente do carro. A porta escancarada facilitou-lhes o trabalho. Meio corpo dentro do carro, vasculharam seu interior. Depois conversaram por uns segundos e olharam ao redor. Mesmo nas trevas, deu para notar que um dos vultos tirou algo do agasalho. Não era preciso ser adivinho para saber que se tratava de uma arma.

Um raio seguido de um estrondo deixou por um segundo tudo claro como o dia. Cláudio estremeceu, porém a sorte era que naquele momento eles estavam de costas para ele. Se outros relâmpagos acontecessem seguidamente, com certeza seria visto pelos homens que o procuravam. O frio que percorreu seu corpo foi maior que o causado pela baixa temperatura. Era o frio do medo. Nisso, começou um temporal violento, como se tivessem sido abertas todas as torneiras do mundo. Era o seu fim, pensou.

Segundos que pereciam a eternidade foram contados por Cláudio. Ensopado até os ossos, já não sentia quase nada. Se lhe perguntassem se sentia frio ou calor, não saberia dizer. Estava com o corpo quase congelado. “Hipotermia”, pensou com dificuldade. Sentiu que estava perdendo a capacidade de raciocínio. Nisso, ouviu o ronco de um motor que aos poucos foi-se distanciando. Com muita dificuldade, arrastou-se até o carro, entrou e fechou a porta. A chuva continuava torrencial, com ventos assustadores.

* * *

A jovem atendente serrava as unhas com muito esmero. Passava a serra com cuidado, soprava e olhava o resultado de seu trabalho. Não satisfeita, reiniciava toda a operação. Assim estava quando a porta do escritório foi aberta com um pouco de violência. Assustada, levantou-se, deixando cair a serra. Estremeceu ao reconhecer quem estava chegando.

- Pensei que não havia ninguém aqui – falou o recém-chegado.

Toda sem jeito, sem saber onde colocar as mãos, a jovem falou:

- Desculpe, doutor. Estava tão entretida que não vi o senhor chegar. – Atarantada, parecia que ia ter um ataque. – Sente, enquanto chamo o doutor Augusto – disse, mostrando o sofá à sua frente, enquanto derrubava papéis que estavam sobre a mesa.

- Acalme-se, menina – disse o homem, enquanto ela corria para a porta do gabinete do advogado.

Voltou quase no mesmo instante, ainda esbaforida.

- Pode entrar! Entre, Dr. Pedro...

No gabinete, o advogado o esperava de pé com um amplo sorriso. Aproximou-se recebendo-o com um longo e apertado abraço.

- Mas que surpresa! Qual o motivo desta visita agora? – perguntou com visível curiosidade.

- Não se trata de visita, Augusto. – Disse, após acomodar-se na poltrona. – Quero saber do paradeiro de seu constituinte, aquele acusado da morte do marchand, o tal Cláudio.

Após sentar-se, Augusto fitou o delegado e respondeu com a maior calma possível:

- Não sei. Não vou perguntar se está em casa ou no trabalho, porque com certeza seus homens já passaram por lá. – Pegou um copo com água e antes de beber, perguntou: - Aceita uma água ou um café? Podia ser outra coisa, mas tenho certeza que está a serviço...

- Um copo d’água, por favor.

Enquanto o advogado pedia água para a jovem atendente, o delegado retirou da pasta um calhamaço de onde pegou algumas folhas.

- É a ordem de prisão de Cláudio Azevedo. Não está em casa. Não apareceu no trabalho. Parece que fugiu – disse o delegado.

- Se ele não foi encontrado, algo aconteceu com ele. Cláudio não tem nenhum motivo para fugir. Ele é inocente e alguém está tramando contra ele. O que disse a a mulher dele?

- A conversa de sempre. Que ele saiu ontem cedo e não apareceu, nem deu notícias até agora. Que está preocupada, já ligou para familiares e amigos, mas ninguém sabe do seu paradeiro.

Augusto passou a mão no rosto e fitou o delegado, enquanto ele recebia o copo d’água da atendente. Estava preocupado, pois tinha certeza de que Cláudio estava em apuros. Pegou o celular e ligou. Ouviu a mensagem informando que o telefone estava desligado ou fora de área.

- Na última vez que nos encontramos, a impressão que tive era que ele estava mais para fazer uma loucura que fugir. - Após uma pausa: - Mas eu acho que ele não chegou a esse ponto.

Com os dois em silêncio, o delegado girou o copo entre as mãos, colocando-o, depois, sobre a mesa.

- Você era a minha esperança de localizá-lo. Como precaução, enviei um agente para a construtora para ver se encontra alguma pista. Temos que ter um ponto de partida, porque no momento estamos sobre uma circunferência. Não sabemos onde é o começo, nem o fim; se vamos para a esquerda ou para a direita. Em resumo: estamos perdidos.

- Não me diga que o tal agente é o Chicão! - Exclamou o advogado.

- Quem mais poderia ser? - disse o delegado. Você me pediu para tirá-lo do caso em que ele estava trabalhando, que era do seu interesse. Só me restou ele! Você pensa que eu estou com a delegacia cheia de investigadores? Ao contrário, eu tenho casos parados por falta de agentes - reclamou o delegado.

O celular de Augusto tocou e ele não atendeu. Na segunda chamada, ele olhou o número e balançou a cabeça negativamente.

- Oi, amor, diga!

Enquanto ouvia, olhou para o delegado, fez um gesto de impaciência e balançou a cabeça.

- Não estou aprontando nada! Quer dizer que toda vez que lhe chamo de amor é porque estou tentando lhe esconder alguma coisa? Estou trabalhando, estou com o Dr. Pedro, o delegado. Se estás duvidando, liga para Vilma e pergunta - disse bastante aborrecido.

Ouviu mais um pouco e em seguida desligou o telefone repentinamente.

- Desculpa, Pedro, mas minha mulher me deixa descontrolado. Meteu na cabeça que toda vez que a chamo de amor é porque estou aprontando e quero fazer média. Agora acha que estou tendo um caso com Vilma. Vê se pode!

O delegado deu um sorriso sem graça e mexeu-se na poltrona desconfortavelmente. Estava sem jeito diante daquela situação caseira que presenciara.

- Fica despreocupado, pois eu já conheço isso. Esses problemas não são exclusividades suas. Eu também tenho minha cruz para carregar e lhe garanto que não é tão leve - disse o delegado, procurando amenizar a situação. - Bem, não vou mais tomar o seu tempo. Se tiver notícias de Cláudio, me avisa, pois será melhor ser preso por mim que pelos agentes.

Após a saída do policial, Augusto pegou o telefone e ligou.

- Me diz só onde tu estás e desliga o aparelho. Talvez eu esteja sendo monitorado, pois sabem que sou teu advogado - após uns segundos, desligou.

Pegou a pasta e, pelo interfone, avisou para a atendente que estava saindo, não voltaria mais e que ela poderia ir para casa.

* * *

Nuvens escuras anunciavam um temporal com expectativa de muitos estragos. O vento estava aumentando de intensidade e as poucas árvores que seguiam a linha da estrada balançavam num vai e vem crescente. Embora não fosse muito tarde, a claridade ia-se esvaindo rapidamente. Com aquela velocidade, em pouco tempo a escuridão tomaria conta da paisagem, recebendo a noite antecipadamente.

A caminhonete Dodge Ram deslizava pelo asfalto esburacado sem que demonstrasse a péssima qualidade do piso. Seguia em velocidade constante, mas não estava lenta. Após atravessar uma pequena ponte de madeira, deixou o asfalto e pegou uma estrada de barro vermelho e cheia de lama. Em poucos minutos as margens foram sendo tomadas por uma mata de cana-de-açúcar que se estendia à distância por muitos quilômetros. Finalmente o veículo parou defronte a um imenso portão de ferro ladeado por duas grossas colunas de pedra. Embaixo, um trilho grosso e sem ferrugem mostrava que o portão era utilizado constantemente. Na coluna da direita, uma caixa de metal ocultava um interfone que foi usado pelo motorista do carro.

Depois de entrar, o portão fechou-se da mesma forma que abrira. Embora ficasse no meio do canavial, a área construída estava no centro de um bosque que havia sido protegido quando do desmatamento para o plantio da cana. A estreita estrada de pedra seguia em zig-zag por aproximadamente um quilômetro, terminando numa área aberta de uns dois hectares com um casarão antigo no centro. Nos dois lados havia carros estacionados.

Uma porta se abriu e surgiu um homem moreno, alto, vestindo uma calça jeans e camisa de malha. Aproximou-se do carro, falou alguma coisa com o motorista, que saiu e o acompanhou até o interior da casa. O visitante examinou o salão e ficou maravilhado. Nas paredes pintadas de bege, grandes quadros se estendiam em fila como num requintado museu. Não havia móveis e o espaço era suficiente para juntar uma centena de pessoas. Verificou que havia obras de vários mestres da pintura universal, mas o que mais lhe chamou a atenção foram quadros assinados por Matisse e Monet, onde a mistura de cores e a profusão de luzes deixaram-no como hipnotizado. Estava preso àquelas maravilhas, quando ouviu seu nome:

- Dr. Augusto, por aqui, por favor.

Virou-se e viu a mesma pessoa que lhe atendera ao chegar, indicando-lhe uma porta no final do salão. Hesitou em deixar o local, mas não foi para admirar quadros que viera. Dirigiu-se para a porta indicada.

No amplo escritório, três pessoas o aguardavam. Somente uma era conhecida: Cláudio. Foi ele quem se aproximou de Augusto, de braços abertos. Estava muito nervoso, mas ao mesmo tempo demonstrava uma nascente alegria. Abraçou o recém-chegado demoradamente. Puxou-o, em seguida, pelo braço, levando-o para uma mesa no fundo da sala, enquanto os outros dois dirigiram-se para o outro lado da sala onde um terceiro lia um jornal. Contou tudo para o amigo com os mínimos detalhes. No final, cansado e ansioso, perguntou:

- O que é mesmo que está acontecendo? Não estou entendendo nada - exclamou. Estou sendo caçado e não vejo nenhum motivo para isso.

- Pois eu tenho uma explicação para o que está acontecendo – disse Augusto. Você, meu caro, é uma mina de ouro.

- Não é hora para brincadeiras, cara! Estou falando sério. Quem está correndo risco de morrer sou eu. Do jeito que as coisas estão indo, ou me matam ou eu morro de pneumonia. Saí de lá mais gelado que parede de iglu.

Augusto viu o quanto o amigo estava desorientado. Parecia ter envelhecido uns cinco anos em poucos dias. Era uma situação desconhecida para ele, que já vira muitas armadilhas e artimanhas por parte de bandidos, mas aquela era nova.

- Não fala para ninguém o que eu vou te contar. Nem para Lúcia. Estamos perdidos num pantanal sem a mínima ideia de direção. Quanto mais permanecermos calados, melhor. – Fez uma pausa, enquanto procurava a melhor forma de contar tudo para Cláudio. – Soube por fonte confiável que existe uma apólice de seguro, um seguro de vida, que foi feito por ti, mas não sei quem é o segurado.

Cláudio quase salta da cadeira, gritando.

- Mas isso é loucura! Eu nunca fiz seguro nenhum, a não ser do carro. Porra, cara, que brincadeira é essa? – gritou, enquanto, de pé, esmurrava a mesa.

Augusto viu que estava chamando a atenção das pessoas que se encontravam no salão. Numa mesa do outro lado, os três homens conversavam e estavam agora olhando para eles curiosos.

- Te acalma!

Olhou de um lado para outro e fixou nos homens que os observavam. O mais velho tinha o ar cansado e segurava o jornal do dia. Os outros dois eram bem mais jovens e vestiam-se mais esportivamente. Todos, no entanto, tinham um olhar indescritível, enigmático. Na verdade, eram olhares frios, sem sentimentos.

- E esses, merecem confiança? – indagou, referindo-se aos três.

Cláudio baixou o tom de voz e respondeu com a mais absoluta segurança:

- Completamente! O mais velho é o dono da construtora e os outros são diretores. Estão há muito na empresa e são assessores direto do Dr. Felinto.

- Dr. Felinto? – indagou o advogado, esperando mais informações sobre a pessoa indicada.

- Sim, o dono da empresa – completou Cláudio. – O moreno é o diretor financeiro, a peça chave do grupo; o outro é o diretor administrativo. Os três são o cérebro da construtora. Os outros diretores apenas completam o organograma e quase sempre dizem amém às propostas apresentadas por estes três.

Augusto olhou para Cláudio e coçou a testa. Em seguida fitou o amigo como se procurasse ver se ele estava realmente desperto.

- O que eu estou querendo saber é se merecem a nossa confiança. Tu não és nem ao menos parente do chefão. Esse pessoal só gosta do empregado enquanto pode tirar vantagem. Na hora de ter que interferir para ajudar, a coisa muda de feição.

Sem avaliar o que o amigo dizia, respondeu:

- Tenho plena confiança no Dr. Felinto e os outros só fazem o que ele quer. Não tenho por que não confiar neles. Desde que assumi a diretoria de projetos que frequento sua casa e até o momento não tive nenhum motivo para desconfiar dele. Sempre sou bem tratado e sou convidado para a maioria dos eventos que acontecem aqui.

Augusto ficou pensativo por uns segundos, rosto fechado, mas, de repente, sorriu e colocou o braço ao redor do pescoço do amigo.

- Se você acha assim, o que é que eu posso fazer. Vamos mudar de assunto, mas não baixe a guarda. A qualquer momento, se notar algum detalhe anormal saia daqui imediatamente sem dizer para onde vai. Outra coisa: não use seu celular para falar comigo. Consiga um meio de ligar de um telefone fixo de algum lugar, pois ele pode estar grampeado.

Cláudio olhava-o com o ar de quem está surpreso. Ele sempre foi desligado e nunca pensara em ser objeto de investigação. Muito menos estar no meio de uma trama que mais parecia enredo de filme de suspense. Tentou sorrir, mas só conseguiu fazer uma careta desajeitada. No fundo, demonstrava nervosismo. Um nervosismo que não queria aceitar.

- Ah, ia-me esquecendo. Se tiver necessidade de ligar para tratar de algum assunto urgente, seja rápido, para não dar tempo de localizá-lo. Lembre-se de que a polícia também está à sua procura.

Quando o advogado saiu, Cláudio ficou sem ambiente naquele imenso casarão. A semente da dúvida que ele plantara estava germinando. Já não conseguia olhar para os três homens que estavam com ele naquele momento sem sentir temor. E se Augusto estiver certo? Embora não quisesse aceitar aquela ideia, o receio estava tomando conta de si.

Foi até ao bar, na outra sala, e tomou uma dose dupla de uísque. Noutras ocasiões, aquela dose seria um momento de extremo prazer, mas não conseguiu livrar-se da sensação de estar sendo perseguido pelos próprios colegas de trabalho. Isso só pode ser psicose de Augusto, pensou, na tentativa de encontrar um motivo para se acalmar. Pela janela, viu que o dia estava findando e teria que dormir na mesma casa com aquelas pessoas que já não eram tão amigas, como antes julgava. Sentiu um calafrio. Tomou outra dose.

***

Depois de um dia de muito trabalho, Augusto sentou-se na poltrona da sala de casa e ligou o televisor. Ia demorar um pouco antes de deitar-se, pois acabara de jantar. A vontade que tinha era de ir para cama, mas se o fizesse teria uma noite mal dormida, com pesadelos. Viu na telinha que terminava a novela e estava entrando o noticiário das dez. Não tinha muito interesse nas notícias veiculadas nas televisões, pois quase sempre eram sobre política, casos de polícia e esporte. Esporte era uma exceção. Ainda dava para ver. Estava cochilando, quando algo lhe despertou a atenção: uma reportagem sobre a crise na construção civil. Por força da crise que assolava o país, a construção civil não ficava de fora. E a matéria dizia que havia centenas de apartamentos estocados por falta de compradores, enquanto que outro tanto estava sem pagamento, com os compradores querendo fazer um acordo para devolvê-los. Não citou nomes de construtoras, apenas generalizou.

Pegou o celular e discou. Após uns segundos, falou:

- Pedro, é Augusto. Desculpa pelo horário, mas preciso saber como estão as investigações sobre o assassinato do marchand e não pude te ligar durante o dia.

Enquanto o delegado falava no outro lado da linha, ele permanecia sem demonstrar nenhuma reação.

- Esquece, Cláudio, tua investigação não vai levar a nada. Estás perdendo tempo, ouve o que eu te digo. As minhas suspeitas me levam a crer que este caso é bem mais sério do que imaginas. E te digo mais, possivelmente muito peixe grande vai cair na rede quando o caso for solucionado.

Desta vez ele se mostrou impaciente, enquanto ouvia o delegado dando suas explicações. Policial teimoso! - pensou. Viu que era melhor continuar com sua investigação paralela. O problema é que sempre saía caro, mas não tinha alternativa, pois não podia contar com o delegado.

Foi para a cama com a cabeça cheia de pensamentos diversos. Nem notou que sua mulher não estava ao seu lado. Aliás, nem sabia se ela estava, ou não, em casa.

Na manhã seguinte, tão logo chegou ao escritório, ligou para Chicão. Em menos de meia hora ele entrou na sala. No seu rosto estampava uma grande curiosidade. Era a primeira vez que se encontravam no escritório do advogado. Só podia ser algo muito sério, pois ele era muito reservado. Tinha notado o espanto da atendente quando chegou. Talvez pensasse que se tratava de alguém mais importante na polícia. No íntimo, estava admirando tanto luxo naquele escritório. Conhecia muitos outros, mas aquele era insuperável. Teve até certo receio em sentar naquelas poltronas, mas viu que o dono não ligava muito. Obedecendo a um aceno do advogado, que o indicava um lugar, sentou-se confortavelmente. Lembrou-se das poltronas da delegacia e deu um suspiro. Enquanto lá era um suplício, ali poderia muito bem dormir a noite toda e levantar-se em plena forma na manhã seguinte.

- Já deve ter notado que se trata de uma emergência - disse Augusto. Preciso urgentemente saber da saúde da construtora “Felinto e Empreendimentos Imobiliários”. Estou falando de saúde financeira, como estão as vendas, se há dívidas, etc. - falou, enquanto rabiscava umas folhas de rascunho.

Enquanto pensava que aquele era o momento de faturar alto, Chicão mexia-se nervoso da poltrona. Era uma oportunidade que parecia estar fugindo de seu controle, porque não entendia nada de finanças.

- Onde é que eu vou conseguir essas informações, doutor? -perguntou desolado.

- Eu sei que este assunto não está na tua área, mas sei também que conheces muitas investigações onde alguém interferiu extraoficialmente no caso e é aí onde tu entras - disse, enquanto continuava a riscar aleatoriamente os papéis à sua frente. Depois de um breve silêncio, continuou: - Não quero, nem tenho tempo para sair à procura de quem faça isso. Preciso de alguém de confiança e que tenha capacidade de conseguir essas informações de modo sigiloso e rápido. Não preciso te dizer que quero urgência.

- Doutor, eu sou um simples investigador... como é que eu vou...

Antes que ele continuasse suas justificativas para no final pedir muito dinheiro, Augusto o interrompeu.

- Para, para, para! Eu sei que há inúmeros inquéritos que tramitaram pela delegacia e houve esse tipo de interferência a pedido do delegado. Eu só quero que vejas os nomes das empresas, pois eu sei que não é trabalho para uma única pessoa. O Cintra não ia confiar numa única pessoa para conseguir informações importantes.

Chicão sentiu que não seria desta vez que conseguiria arrancar uma vultosa soma do advogado. O que ele queria era tão insignificante, que se sentiu lesado. Fizera todo percurso da delegacia até o escritório planejando o que faria com o dinheiro e agora tudo desaparecia no ar como uma nuvem de fumaça sob rajadas de vento. Ficou olhando o advogado fixamente sem condições de falar. Augusto abriu a gaveta e colocou sobre a mesa um maço de cédulas.

- Mil reais pelo nome, ou nomes. Quero urgência! Dependendo do resultado, tem mais! Não quero que fique de braços cruzados, quero ação.

Sem pensar duas vezes, o investigador pegou o dinheiro rapidamente e o acomodou no bolso da calça.

- Hoje mesmo eu ligo para o senhor com os nomes que encontrar. Eu sei de vários casos que o Dr. Cintra solicitou a ajuda de firmas de consultoria, só que é gente amiga dele, não cobra nada. É aquela história de uma mão lava a outra. Para o senhor, vai custar caro - disse, insinuando que ele também merecia uma compensação maior.

Depois que o policial saiu, ficou pensativo e não notou o tempo passar. Olhar fixo nos riscos que fizera, não conseguia entender como tudo aquilo começara, nem que rumo estava tomando. Era difícil imaginar que Cláudio estivesse no meio de um crime inexplicável. As pistas que a polícia estava considerando eram muito direcionadas para ele. Tudo levava a crer que alguém estava planejando uma cilada para incriminá-lo. Como a polícia foi tomar conhecimento dessa apólice de seguro tão facilmente? Se Cláudio não conhecia Gilbert Roland, como foi contratar um seguro colocando-o como beneficiário? Como tinha todas as informações dele? Não entendia como a polícia não fazia as mesmas perguntas.

- Doutor, desculpe entrar sem autorização. O senhor deixou o fone fora do gancho; bati, mas o senhor não respondeu – desculpou-se a secretária, entrando na sala. – Hoje o senhor tem uma audiência às onze horas.

Augusto ergueu a cabeça e fitou a jovem com um ar de espanto. Estava atordoado. Como se despertasse, levantou-se de um salto.

- Meu Deus! Tinha que falar com o Dr. André antes da audiência. Agora não vai dar.

Remexeu as gavetas, abriu um armário, sem nada tirar, olhando em seguida para a jovem.

- Já arrumei tudo, doutor. Está na minha mesa - disse a jovem, sem demonstrar interesse de fazer ver ao seu patrão o quão era eficiente.

Sem conferir os papéis, Augusto colocou-os numa pasta negra de couro e deixou a sala com um leve aceno de cabeça, demonstrando total confiança no trabalho da secretária.

* * *

Estava estacionando o carro ao lado do prédio do Tribunal de Justiça quando o celular tocou.

- Droga! Isso é hora de tocar! – pensou, aborrecido.

Após fechar o carro, pegou o celular e olhou a chamada. Chicão. Entrou no carro para voltar a ligação. Examinou a hora e viu que podia dispor de uns vinte minutos para conversar. Podia até ser mais, pois as audiências nunca começavam na hora marcada.

- Fala, Chicão! – disse em voz baixa, mesmo os vidros do carro estando fechados.

Um breve silêncio tomou conta do ambiente, por um pequeno tempo, mas que parecia uma eternidade. Augusto estava impaciente, pois tudo estava correndo de maneira rápida e inesperada. Não teve paciência.

- Fala de uma vez! - disse, gritando.

Do outro lado da linha, o homem fez o relato de tudo que tinha conseguido até então.

- Está bem. Vou ter uma audiência agora, não dá para continuar falando. Anota tudo e me entrega depois. Cuidado para não esquecer nenhum detalhe. Depois te ligo.

Enquanto falava, foi feita a chamada das partes para a próxima audiência. A sua audiência.

* * *

- Quem sabe onde anda o Chicão? – perguntou o delegado, bastante nervoso, abrindo a porta do seu gabinete.

Na antessala um policial mantinha sob a mira de um revólver dois presos algemados, esperando o momento de serem conduzidos para a cela, pois todas estavam lotadas.

O dia estava muito estressante e a delegacia não comportava mais pessoas entrando e saindo a todo o momento. O telefone não parava de tocar e muitos chamados não eram atendidos, pois não tinha ninguém disponível.

- E esses aí, Nilton? – perguntou o delegado.

- Artigo 155, doutor – respondeu o agente, ansioso por se desfazer da responsabilidade de manter os dois sob a mira de sua arma.

- Trancafia os dois e vem para o gabinete. Tenho uma missão urgente. Sabe do Chicão?

- Sei não, doutor. Cheguei agora com esses dois.

O delegado entrou no gabinete e o agente pediu ajuda a um colega para levar os meliantes para a cela. Estava abarrotada, mas conseguiram empurrar o dois no meio dos presos que os olhavam com a cara de desespero. Não havia espaço para sentar e muitos usavam o corpo dos companheiros para permanecerem em pé. A situação era deplorável, desumana, mas chegava mais que saía. De vez em quando aparecia vaga nos distritos distantes e os presos mais antigos eram remanejados, embora o inquérito continuasse a correr na delegacia de origem.

Após fechar a cela, Nilton foi até o gabinete do delegado. Deu dois toques na porta e empurrou-a sem esperar resposta. Pedro Cintra estava debruçado sobre um amontoado de papel e não observou o agente entrando. Instantes depois, ergueu a cabeça e deu sinal de que o tinha visto naquele momento.

- Senta!

Juntou os papéis que estavam à sua frente, colocando-os ao lado. Por mais que tentasse organizar a papelada, o espaço livre na mesa era muito pequeno. Tirou os óculos e fitou o homem por uns segundos.

- O que foi, desta vez? Aqueles dois? – completou.

- Entraram num prédio da Avenida Imperial, mas foram vistos pelo porteiro que ligou para o 197. Como é na nossa área, fui lá com o Tião e pegamos os dois com a boca na botija.

- Mas agora de manhã? – indagou o delegado, com ar de espanto.

- Não, doutor. Foi de madrugada. Eles ficaram no camburão até agora. A gente estava esperando surgir alguma vaga, mas não aconteceu.

O delegado olhou para o agente com um ar de espanto.

- Uma vaga de madrugada? Estava adivinhando alguma fuga?

- É que o Márcio me disse que um advogado tinha telefonado que estava chegando com uns habeas-corpus para soltar uns clientes dele e eu achei melhor esperar.

- Conversa! Onde é que advogado vem à delegacia de madrugada soltar bandidinho? Isso só acontece quando o peixe é grande e olhe lá!

O delegado girou a caneta nos dedos por alguns segundos. Notava-se, claramente, que algo estava sendo processado em sua cabeça, pois, mesmo com os olhos direcionados para os movimentos giratórios da caneta, seus pensamentos nada tinham a ver com a sua demonstração de malabarismo. O agente o olhava calmo e silencioso. Sabia que alguma coisa iria acontecer e ele estaria envolvido. Não deu outra.

- O caso desses dois é teu. Tenho quase certeza que aí tem muito mais que um simples roubo. Vou alterar a tabela de plantão, pois eu quero exclusividade nessa investigação. E é para começar já! – disse em tom autoritário.

Márcio estava abrindo a porta, quando ele retomou:

- Quero sigilo absoluto! Que ninguém saiba do que se trata. Tudo o que conseguires deve ser tratado comigo.

- Se eu estou entendendo bem, o senhor acha que este caso tem alguma vinculação com o assassinato do 816? Se for, o Chicão está investigando o caso. Podemos trabalhar juntos…

- De maneira nenhuma! – rosnou o delegado. Quero tratar este caso sigilosamente. Que fique só entre nós dois. Se precisar de alguma coisa, fala comigo. Se estiver em apuros, liga prá mim. Para o meu celular. Nada de ligar para a delegacia, entendeu?

- Entendi, doutor. Com licença.

Pedro coçou o queixo e, por um momento, ficou pensativo. Pegou o celular, discou um número e aguardou, enquanto ouvia o aparelho chamar. De repente, desligou e saiu apressado.

* * *

A lua brilhava intensamente sobre a copa das árvores deitando sombras geladas sobre o verde gramado ao redor da imensa piscina. Um antigo poste de ferro sustentando três pendentes tinha suas lâmpadas apagadas e deixava uma imagem fantasmagórica vigiando a paisagem. De vez em quando uma ave noturna cruzava o espaço, produzindo um som macabro. Uma leve brisa fazia balançar as palhas das palmeiras que ornavam a quadra de vôlei. Havia um silêncio tenebroso que importunava.

De uma janela do segundo andar, Cláudio estava com os olhos fixos nesse cenário, como hipnotizado. Um calafrio percorria seu corpo, quando pensava que naquelas trevas podiam estar escondidos os homens que o perseguiram em duas oportunidades. Não podia se sentir seguro, no entanto foi o único lugar que lhe ofereceram e que ele confiava. Olhou o relógio de pulso. Onze horas e quarenta minutos. Aproximava-se a meia-noite e ele estava sozinho naquele imenso casarão.

Um rangido de porta tirou-o de seus tenebrosos pensamentos. Entregou-se ao pavor que lhe pregou ao solo como se pesasse uma tonelada. Tentou afastar-se da janela, mas seus pés não conseguiram sair do lugar. Uma onda de frio percorreu seu corpo e de repente viu-se tremendo desesperadamente. Aguçou os ouvidos, procurando distinguir passos, mas foi em vão. Olhou novamente para fora e viu um vulto passar sorrateiramente por entre as palmeiras, procurando proteger-se nas sombras. Um nó formou-se na garganta e a respiração ficou acelerada. O coração passou a bater mais apressado como se quisesse sair pela boca.

De repente a energia sumiu. A sala escura recebia a luz da lua que se espalhava no tapete, mostrando o desenho de um dragão negro no campo vermelho da tapeçaria. Cláudio pegou o celular, mas ficou indeciso. Ligar era denunciar o seu esconderijo e não teria tempo de receber ajuda. E quem iria socorrê-lo? A polícia? Esta estava à sua procura. Não tinha a quem pedir socorro. Além disso, a luz do celular mostraria a sua posição na sala.

Os cães latiram desesperadamente e a correria dos animais tornou-se mais audível na medida em que eles se aproximavam da casa. Dois disparos abafados trouxeram um desesperador silêncio. Cláudio dirigiu-se a um armário que ele sabia que estava um pouco afastado da parede e, com muito esforço, conseguiu entrar na estreita vaga. Estava quase sufocando, a respiração difícil, praticamente esmagado pelo armário, mas não tinha outra opção. Esperou. Os segundos pareciam uma eternidade. Não sabia se queria que aquele sofrimento se prolongasse, na esperança de receber um socorro, ou terminasse de vez.

Uma nuvem cobriu a lua e a pouca claridade que penetrava na sala desapareceu. Novamente um barulho de porta se abrindo fez-se ouvir mais próximo. Quem quer que fosse, conhecia a casa, pois estava se aproximando do local em que se encontrava com muita facilidade. A garganta estava seca, o suor escorria pelo corpo, embora o frio tomasse conta das mãos, dos pés, orelhas e nariz: todos extremamente gelados. Deu vontade de gritar desesperadamente. As pernas não se dobraram porque não havia espaço disponível. Os joelhos forçavam o armário cheio de livros que suportavam o peso do corpo sem dificuldade.

Subitamente voltou a energia, mas ele sentiu que chegara a sua hora. Uma névoa cobriu-lhe os olhos e desfaleceu.

* * *

Ainda sonolento, corpo dolorido e sem forças, despertou sem saber onde se encontrava. Abriu os olhos lentamente. De início viu, alguns vultos parados na sua frente e aos poucos se foram tornando delineados. Não reconheceu o local, porém tinha certeza que ali quase tudo era branco. Branco! Estremeceu. Pareceu entender que poderia estar em um hospital. Só então sentiu que estava deitado em uma cama. Concluiu, por fim, que era realmente um hospital. Forçou os olhos, abrindo-os ainda mais com dificuldade. Observou, pela movimentação dos lábios, que as pessoas falavam, mas não ouvia nada. Estava começando a visualizar melhor o ambiente, contudo um torpor foi tomando conta do corpo e um poucos segundos desfaleceu.

Quando voltou a si, agora vendo tudo com perfeição, a primeira frase que disse foi:

- Estou com fome!

Aquilo provocou gargalhadas nos presentes e muitos comentários. Cláudio, então, deu-se conta de que não estava só. Olhou espantado para os lados, examinou o ambiente, e só então parou nas pessoas que ali se encontravam. Conhecia algumas, mas se deteve ao ver médico e enfermeiras que lhe olhavam sorridentes. Olhou para si e viu que estava deitado numa cama de hospital sendo medicado. Fixou o olhar em Augusto, como se exigisse uma explicação. Entretanto, algumas coisas ele não conseguia entender. Muitas perguntas tomaram conta da cabeça, naquele momento. O que o levara ao hospital? Por que Lúcia não estava ali ao seu lado? O que fazia o delegado junto à sua cama? Estaria preso? Mas, se estivesse, por que tanta alegria no rosto dos presentes? Eram tantas perguntas que o amigo, que não tirava os olhos dele, com certeza, iria respondê-las. Era um olhar inquisitivo que em nenhum momento poderia ficar sem resposta.

Em poucos minutos a enfermeira trouxe uma bandeja com a refeição para o paciente. Ele virou-se na cama, fez uma cara de reprovação e olhou para o amigo. Todos estavam calados esperando vê-lo comer, tamanha era a expectativa.

- Não quero comida de hospital! Quero é comida caseira! – disse, empurrando a bandeja para a ponta da mesa.

- Por ora o senhor vai comer isso aqui – disse a enfermeira, colocando a bandeja a seu alcance.

- Calma, Cláudio, o pior já passou. O médico me disse que está esperando apenas que você restabeleça as forças para dar alta – disse Augusto. – Olha ao menos o que está sendo servido.

- Comida de hospital é tudo igual – falou o paciente, já sem esperança de comer o que estava desejando.

A enfermeira levantou a tampa da travessa e o que ele viu fê-lo mudar de ideia. Muito bem dispostos estavam uma porção de arroz, carne, legume, purê de batatas, salada, suco e melão. De um salto, sentou-se na cama e em poucos minutos devorou tudo, ao som das gargalhadas dos presentes.

Mais tarde, após umas horas de repouso, Cláudio viu-se sentado no gabinete do delegado, ao lado do amigo e advogado. Estava atônito, não queria acreditar no que estava ouvindo.

- O senhor tem certeza da acusação que está fazendo? – indagou, ainda incrédulo.

Antes que o delegado respondesse, foi Augusto quem falou:

- Eu também fiquei espantado. No princípio julguei que se tratava de uma brincadeira do Pedro. Sinceramente, eu jamais julguei que esse seria o desfecho. Em nenhum momento suspeitei... – parou de repente e em seguida continuou: - É melhor o delegado explicar direito.

Pedro Cintra girou a cadeira e encarou Cláudio de frente. Antes de falar, tirou os óculos de grau que usava no escritório e em seu lugar colocou um esportivo, lentes escuras com armação larga de tartaruga. Talvez quisesse reforçar a representação do policial dos filmes de Hollywood, com a pose de austero e enigmático. Talvez não tenha conseguido atingir os seus objetivos, mas despertou a atenção dos seus ouvintes.

- Nas delegacias por onde passo, eu costumo investigar os meus auxiliares. Não é por nada. Apenas quero saber com quem estou trabalhando, se posso confiar... coisa deste estilo. De todos os policiais aqui lotados, o que me chamou atenção logo de início foi Chicão. Ganha praticamente igual aos outros, é casado, como os outros gosta de farra, mas veste-se bem, tem carro do ano... – tomou um gole d’água e continuou: - No início, pensei que ele estava recebendo suborno e procurei colocá-lo em investigações sem importância. Ele não mostrou nenhuma reação de descontentamento, ao contrário: continuou com sua vida normal, sem nenhuma modificação. Tempos depois, verifiquei que ele estava passando informações sigilosas para o meu amigo aqui – e apontou para Augusto. – Fiz um teste, deixando informações de um caso em que Augusto estava patrocinando, e não era ele Chicão o responsável pelas investigações, e vi que o advogado de defesa estava com os dados antes da conclusão do inquérito...

O telefone tocou e o delegado fez uma pausa.

- Por favor, não estou para ninguém. Vou deixar o telefone fora do gancho. Estou muito ocupado – disse, desligando o aparelho e colocando ao lado para não receber ligação. Pegou o celular no bolso, desligou-o, pondo-o sobre a mesa.

- Como eu dizia, mesmo sabendo que ele estava repassando informações para Augusto, e devia repassar para outros advogados em troca de dinheiro, eu deixei a coisa acontecer, acompanhando-o de perto para ver até onde ia. Com a morte do marchand, ele agiu de forma tão bem planejada que acabei deixando o caso com ele, pois era o mais bem informado. Chegara primeiro ao local do crime, tinha muitas informações e vários contatos que eu julguei que pudessem agilizar a solução do problema. Por isso, ficou com ele. Contudo, durante as investigações eu ia acompanhando de forma mais cuidadosa e aqui e ali eu apanhava alguma coisa esquisita que no final dava para montar um quebra-cabeça.

Levantou-se para pegar uma xícara com café. Perguntou se os dois queriam e antes que respondessem, preparou uma xícara para cada um.

- O Augusto eu sei que gosta com bastante açúcar, e você – indagou, olhando para Cláudio.

- Só um pouco. Prefiro o café pelo amargo.

- Eu também. Na verdade, estou a cada dia diminuindo a quantidade de açúcar. Quero chegar a tomá-lo puro, forte e amargo.

Depois do cafezinho, continuou o relato:

- Quando eu vi que ele estava trabalhando mais para os advogados que para o distrito, tive uma conversa com Augusto. Como estávamos com o problema dos seguros mexendo com nossas cabeças, combinamos pedir que o Chicão fosse à Seguradora pegar algumas informações. Eu sei que ele tem informantes lá e o que pedimos era muito fácil conseguir...

- Ele botou a maior banca, disse que não estava no caso e eu sabia muito bem que o caso era dele. Não disse nada pois sabia que estávamos com ele sob suspeita – interrompeu Augusto, confirmando as palavras de Pedro.

Nisso, bateram levemente na porta e um policial apareceu com um ar de receio.

- Doutor, tão ligando da Delegacia Geral procurando pelo senhor.

- O que foi que eu disse prá vocês? Eu não estou aqui para ninguém! Ouviu! Nem para o governador! O que foi que vocês disseram?

Pálido, gaguejando, ele respondeu:

- Disse que não sabia se o senhor estava e ia ver.

- Pois diga que não me encontrou e que ninguém sabe para onde fui. E não me interrompam mais.

Levantou-se e trancou a porta por dentro.

- Combinei com Augusto e ele contratou um detetive particular para seguir o Chicão. – Fez uma pausa e olhou para Cláudio. – Sinto muito, mas essa despesa é sua, meu caro.

- Tudo bem - respondeu. - Mas quero saber como vocês chegaram a essas conclusões.

- Foi simples e graças a Deus, rápido. Se não, a estas horas você seria um homem morto.

Augusto olhou o relógio de pulso, levantou-se e foi até a mesinha onde estavam as garrafas com água e café. Colocou água num copo até a metade e o trouxe para Cláudio.

- É hora do remédio. São dezessete horas. Olha o que o médico disse: não perder o horário dos remédios. Principalmente deste.

O delegado esperou o outro ser medicado e em seguida prosseguiu:

- Agora vem a parte mais difícil. O detetive trouxe-nos várias fotos de Chicão acompanhado de uma loura. O que me intrigou é que não se encontravam em locais públicos. A última foto foi mesmo uma obra de arte. Ele conseguiu, com toda lucidez, a imagem dos dois através do pára-brisa do carro da mulher. Quando vi a fotografia, tive um pressentimento sem nenhuma justificativa. Imediatamente liguei para Augusto.

- Sinceramente, foi um choque que me deixou num beco sem saída. – Interferiu na conversa Augusto. – Tinha que acompanhar todas as investigações, vendo fotos e ouvindo relatos, sem poder te contar nada. E o pior de tudo foi ter que continuar pedindo favores pra ele, para não levantar suspeitas.

Cláudio estava estupefato. Lívido na cadeira, parecia uma estátua. Não se movia. Ouvia tudo calado com a expressão de quem sofria um turbilhão de pensamentos atormentando-lhe o cérebro.

- Quando Augusto confirmou que a loura das fotos era sua mulher eu fui até a seguradora e se negaram e me dar informações. Consegui um mandado judicial e as portas se abriram com rapidez. Soube que o seguro feito em nome de Gilbert Roland teria sido através de um procurador. Só que essa procuração não foi localizada no dossiê. A pessoa que atendeu disse que se tratava de um homem e as descrições feitas casaram com Chicão.

- Verificamos que ele procurava desviar as investigações, dificultando o trabalho da polícia. Ele queria que os nomes relacionados na caderneta do marchand fossem considerados suspeitos – falou Augusto, lembrando-se do encontro na Lagosta Dourada.

- Já a apólice em que você aparece com segurado, tendo como beneficiária sua mulher, foi feita nos mesmos moldes da apólice do marchand. Mas nesse caso, foi uma mulher a procuradora. A sua mulher. Quando Tião apertou os dois presos eles confessaram que tinham ido ao apartamento do marchand contratados por Chicão que lhes prometeu favorecer fuga, caso fossem presos, e podiam levar o que conseguissem do apartamento. Foram contratados para matar. Não foi caso de roubo seguido de morte. A partir daí, reforçamos a vigilância com detetives particulares, pois eu não confiava em mais ninguém no distrito. E foi seguindo o Chicão que conseguimos prendê-lo quando ele estava para lhe encontrar imprensado entre o armário e a parede.

- Não estou entendendo como o crime foi acontecer exatamente no momento em que eu estava indo para o apartamento – disse Cláudio.

- Muito simples – falou o delegado. – A morte dele já estava programada. Eles sabiam que você ia ver o imóvel e era só uma questão de tempo. Quando você avisou para Lúcia que ia ter com o proprietário, ela ligou para Chicão, que foi para o local e matou o marchand. Para evitar que alguém o visse no ato do crime, enviou os seus dois lacaios assaltar o corretor, que também estava sendo vigiado por eles.

- E Lúcia? O que é feito dela, agora? – perguntou Cláudio, com um fio de voz.

Pedro olhou para Augusto, como se pedisse que concluísse o relato. E foi o que ele fez.

- Está presa. No início negou tudo, mas quando juntamos as fotos e fizemos a acareação, não tiveram como ocultar a verdade. Eles tinham um caso há dois anos e planejaram tudo com muito cuidado. Escolheram o marchand porque ele era estrangeiro, não tinha ninguém no Brasil. Depois de morto, planejavam pagar alguém para aparecer com documentos falsos dizendo-se parente dele para abrir o inventário. Aí a apólice apareceria e tu serias chamado para receber o prêmio. Planejavam passar uma temporada se encontrando às escondidas e em seguida seria tua vez de morrer para ela herdar. Como a ambição foi maior que o que se podia esperar, fizeram a apólice em teu nome onde ela era a beneficiária. Seria prêmio dobrado.

Cláudio, que ouvia tudo calado, levantou a mão pedindo uma pausa.

- Se tudo estava indo de acordo com o planejado, por que tentaram me eliminar tão depressa? E os dois homens que me perseguiram? Quem eram eles?

Pedro tomou a palavra.

- Os dois que lhe perseguiram, tanto na cidade como no mato, são os dois que foram presos pelo Tião e abriram o jogo. E como viram que começava a dar errado, eles tentaram eliminá-lo, na esperança de conseguir algum dinheiro antes do desfecho final e fugirem.

Cláudio levantou-se. Parecia muito mais abatido do que quando saíra do hospital. Deu dois passos e encostou-se à mesa. Augusto aproximou-se do amigo e pegou-o pelo braço.

- Vamos. Enquanto esperamos as águas baixarem, tu ficas lá em casa. Já tem um quarto te esperando.

Saíram.