ESMALTE VERMELHO

ESMALTE VERMELHO

O vidro era daqueles quadradinho. Um vermelho aberto, brilhante, charmoso, sensual, uma cor que transmitia vida.

O nome do esmalte era "balada" a marca não lembro.

Bem empregado esse nome...pois a cor era perfeita para o dia e para uma boa balada. Cada vez que pegava no copo e levava até a boca via aquele vermelho lindo.

Era sexta. Saí do trabalho tão cansada, toda sexta-feira era a mesma resenha, para todo lado que olhava havia alguma complicação.Começava com a cobradora do ônibus que nunca tinha troco até a minha chefe que não dava paz, essa atazanava a vida de todos os funcionários, eu tenho certeza que ela tinha pacto com o tinhoso, provavelmente nem dormia pensando no mal que iria causar no dia seguinte.

Estava fazendo terapia a alguns meses, era a última tentativa de lidar melhor com os problemas, e com os outros seres desumanos.

Foi sugerido que saísse um pouco, colocar mais lazer na rotina, e foi tentando seguir esse conselho que na noite anterior, na quinta, tirei a noite para cuidar de mim.

Comecei pelo cabelo com uma boa lavagem, massagem, um banho demorado...após o banho deixei um filme rodando sozinho e fui fazer as unhas.

Diante daqueles esmaltes de cores variadas eu achei o vermelho "balada" outro vidro novo e lacrado.

É esse. Pensei.

Fiz a unha, a cor constratava com a minha pele, bem chamativo.

Esperei a unha secar e preparei a bolsa para o dia seguinte. Coloquei umas laranjas na bolsa junto com outros lanchinhos e fui dormir.

No dia seguinte ao sair para o trabalho lembrei que precisaria descascar as laranjas, não daria tempo de descascá-las, então corri e peguei a faca de cortar carne e joguei na bolsa e saí.

Chegando no trabalho, a mesma situação, problemas, humilhações, e etc.

De repente a energia vai embora e com ela vai a pouca educação dos clientes que começaram a levantar, gritar e reclamar.

-Gente, eu não trabalho na companhia de energia. - Eu disse.

Disse em pensamento né, porque caso soprasse isso ao vento, correria o risco de levar um tapa na cara.

Enfim, depois de toda a resiliência do planeta que eu vinha praticando olhei de relance para a parede e vi que já se passavam dez minutos do meu horário.

Levantei da cadeira cheia de esperança.

-Quer saber, vou no cinema! Dar uma espairecida. Eu mereço.- Disse à mim mesma.

Fui no cinema e depois tomei um chopp, grande e gelado. Ali parada, olhando para a minha unha... O esmalte descascado, ri sozinha.

Por dentro, eu estava como ele, eu era nova, jovem, porém descascada, me acabando, todo dia eu renovaria o esmalte, passando uma camada em cima da outra e no final do dia olharia e veria que nada mudou, porque debaixo daquelas camadas havia muitas camadas antigas, sem brilho e faltando pedaço, talvez fosse mais fácil, sábio ou só mesmo inteligente se eu trocasse o esmalte, uma cor clara ou se eu sequer pintasse as unhas.

Talvez esteja na hora de trocar de profissão, de cobradora...

-Sra?

-Sra? Posso trazer outra bebida? - Interrompeu o garçom com um sorriso de canto de boca com a barba por fazer, provavelmente estava ali em pé a algum tempo.

Ele pode comprovar a minha presença ao Sr.

Fiz que não com a cabeça e pedi a conta, era por volta das dez da noite.

Saí de lá mais leve, foi quando desci em direção a parada de ônibus. Abri a bolsa e lá estavam as laranjas. Nem tive tempo de comê-las devido a correria do trabalho, ainda devem estar na bolsa...Então, chegou um rapaz na parada, com a mão no bolso e andando devagar. Era alto e de corpo mediano, careca o que evidenciava suas orelhas, usava jeans e um tênis branco com a camisa combinando, podia dizer que era bonito até. Ah! Tinha uma tatuagem no pulso.

Só havia nós dois na parada, na pista poucos carros passavam, porém rápidos demais para perceber algo.

Ele me perguntou as horas, eu abri a bolsa pra ver no celular. Quando abaixei a cabeça ele me atacou, me segurou pelo pescoço e disse para ficar quieta, para subir o vestido devagar, me empurrando para o banco da parada.

Eu olhei dentro dos olhos dele, olhei bem para o seu rosto. A minha mão já estava dentro da bolsa, eu senti a faca, as laranjas e o celular.

Não pensei em nada. Segurei na faca, puxei rapidamente e a bolsa caiu no chão.

Eu enfiei a faca na barriga dele, senti a facilidade e maciez da sua pele.

Ele não gritou, soltou meu pescoço e colocou as mãos no local ferido.

Eu olhei para ele, ali abaixando-se, procurei o pavor, o horror em mim e não encontrei, foi rápido demais, nem mesmo gritei.

De vítima passei a agressora, porque não apenas me defendi do seu ataque, fiz mais. Despertou o lado amargo. Foi um prazer indiscritível. Então eu o furei, golpiei-o uma, duas, três, quatro vezes em lugares diversos, ali eu já não estava me defendendo, estava matando.

Cada vez que a mão fazia o movimento ia junto com ela o alívio de tudo o que estava guardado, de toda resiliência velada.

Com as mãos vermelhas, minhas unhas molhadas com o sangue dele, o esmalte vermelho misturado ao vermelho do sangue...olhei novamente para ele, caído no chão.

Era o meu destino, era o destino dele.

E assim eu compreendi que já nascemos com disposição para o mal, que olho por olho e os dois acabam cegos. Não havia bondade em mim, nem nele. Eu o deixei lá, andei algumas quadras quando vi um taxista parado ao telefone e paguei para ele me deixar na entrada da minha cidade.

Na sala estavam o delegado, dois policiais e o escrivão, há tempos que não se ouvia o teclar do computador, nem mesmo a respiração dos coadjuvantes, todos em silêncio, olhando fixamente para aquela garota, um depoimento desconcertante, detalhista e não menos impressionante.

Ela era linda, emocionalmente forte, porém imprevisível.

Assim o delegado recostou-se na cadeira, apoiou as mão na mesa e disse:

-Moça...sabemos que esse foi o seu primeiro ataque, sei que não foi iniciado por você, mas como disse, os passos seguintes foram. Me explique como se deu os outros 10 assassinatos, já sabemos que foi você, por isso está aqui, as provas levaram até você. Inclusive a Sra. usou a mesma faca para os crimes. Vamos começar pela cobradora de ônibus.

Assim ele abriu uma pasta e colocou fotos dos crimes sobre a mesa.

Ela respirou bem fundo, pediu água e muito segura explicou cada crime e tentou justificar o injustificável, no que se transformou ou no que ela sempre foi, uma psicopata que a sociedade trouxe à tona.

Priscila Ferrer
Enviado por Priscila Ferrer em 17/05/2018
Código do texto: T6338997
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