Espuma da morte

Faltavam 5 minutos para a meia-noite de sexta-feira quando uma chamada surgiu na tela do terminal de Isobel Carter, operadora da central de emergência 999; ela atendeu a chamada no segundo toque. O número que estava ligando era uma linha fixa no West End, próximo ao rio Tâmisa.

- Central 999, em que posso ajudar?

Uma voz aflita de mulher do outro lado da linha, respiração ofegante.

- Raylee Murray... sou gerente do Flamingo Club, West End... temos uma emergência médica... mandem ambulâncias!

A operadora começou a digitar no terminal.

- Que tipo de emergência, Raylee? Alguém se feriu? Quantas pessoas?

- Parece ter sido alguma coisa na espuma... eu não sei quantas pessoas foram atingidas... têm muita gente vomitando, tendo convulsões... mandem ambulâncias! Rápido!

- Não entendi... espuma?

- Estávamos tendo uma "festa da espuma"... as pessoas dançam no meio de bolhas de sabão, essas coisas...

- Aguarde na linha por favor... - respondeu Isobel. - Estou acionando o Centro de Controle de Emergências.

Isobel sentiu o próprio coração acelerar. Aquilo estava parecendo um ataque terrorista!

* * *

Ellery Queen acabara de pedir um café e a conta, no restaurante onde almoçara, quando o celular tocou. Na tela, o número particular do inspetor Highsmith, seu contato na Scotland Yard.

- Inspetor? Demorou para me ligar desta vez - disse, à guisa de saudação.

A voz de Highsmith soou contrafeita.

- Pelo seu comentário, imagino que já saiba porque estou ligando, não é, sr. Queen?

- Quantos mortos até agora? Da última vez em que olhei para a televisão, a contagem estava em 37...

- Quarenta e dois óbitos... mais uns 25 em estado grave, e o dobro disso em observação.

Queen assobiou.

- Alguém já assumiu a autoria do atentado?

- Sim... um tal "Comando Supremo Elliot Rodger", do qual nunca ninguém ouviu falar. Enviaram um comunicado por SMS, de um celular descartável, aos principais jornais, rádios e emissoras de TV, o qual pedimos que não divulgassem, já que a origem e autenticidade da mensagem ainda está sendo investigada.

- E o que dizia?

- Um monte de sandices misóginas, culpando feministas, lésbicas e ateias pelos problemas do mundo. Termina, naturalmente, convocando uma rebelião contra elas e avisando que o massacre da noite passada foi somente o primeiro passo para restabelecer o domínio masculino.

O garçom aproximou-se de Queen com o café e a conta. Ele esperou que o homem se afastasse antes de continuar a conversa.

- Vocês não estão livres de atentados à bomba, mas esse ataque químico foi uma novidade... provavelmente a nível global. Imagino que a CIA vai querer saber detalhes dessa história.

- Só o que posso lhe dizer é que o MI5 já está no caso. Afinal, até prova em contrário, fomos vítimas de um ataque terrorista.

- E vítimas de um grupo que homenageia Elliot Rodger... muito suspeito.

- Quem é Elliot Rodger? - Indagou Highsmith.

- Um conterrâneo meu, da Califórnia, - suspirou Ellery Queen, colocando dois torrões de açúcar em sua xícara de café - que se autointitulava "o verdadeiro macho alfa". Em 2014, matou seis pessoas, feriu 13 e cometeu suicídio em seguida. Era um misógino, que se via como um tipo superior, mas que sempre terminava rejeitado pelas mulheres.

- Então acha que esse tal "Comando Supremo Elliot Rodger"...

- Pode ser apenas um lobo solitário - concluiu Queen, tomando um gole de café.

* * *

O detetive novairquino encontrou-se com Highsmith no St. Thomas' Hospital, o principal pronto-socorro próximo ao local do atentado, e para onde haviam sido levadas a maioria das vítimas em estado grave. A chefe da emergência, Dra. Alicia Reid, os recebeu rapidamente, entre um atendimento e outro. Parecia exausta e tinha uma máscara de gaze pendendo do pescoço, sobre o guarda-pó branco.

- Desculpem se não vou poder lhes dar muito tempo, mas estamos com muito trabalho por aqui - desculpou-se.

- O incômodo será breve, doutora. Precisamos saber se já identificaram o produto utilizado no ataque terrorista... havia uma "festa da espuma" em curso, pelo que entendi - discorreu Queen.

- Exato... uma dessas festas para jovens, onde máquinas pulverizam flocos de espuma e bolhas de sabão na pista de dança... normalmente, sempre ocorrem problemas nesse tipo de festa, o que talvez tenha retardado o pedido de socorro.

- Que tipo de problemas ocorrem? - Inquiriu Highsmith, bloco de anotações na mão.

- Oh... dor nos olhos... cegueira temporária... náusea e vômito... e traumas, em virtude de escorregões e tropeços. Normalmente, isso decorre de erros na diluição do sabão usado para gerar a espuma. Mas não foi esse o cenário com o qual as equipes de emergência se depararam... a coisa estava muito mais séria. Verificaram logo que se tratava de um caso de envenenamento em larga escala.

- Quais eram os sintomas?

- Náusea, vômito e dor abdominal em dezenas de pessoas. Se parasse por aí, poderia ser um típico caso de erro de mistura do sabão líquido... mas havia situações mais graves, pessoas apresentando confusão mental, taquicardia, hipotensão, convulsões. Alguns dos primeiros paramédicos que entraram no clube, também foram afetados, embora em menor grau, pois as máquinas já haviam sido desligadas. Desconfiaram logo que algo havia sido adicionado à água, ou ao sabão...

- E a que conclusão chegaram? - Indagou Highsmith.

- Foi um ataque com monofluoracetato de sódio.

- Um raticida, - explicou o detetive - vendido comercialmente como Composto 1080. Extremamente tóxico... e sem antídoto conhecido.

* * *

Ellery Queen olhou pela janela do gabinete do inspetor Highsmith, no qual estava, para a frente do prédio, onde havia um mastro com a bandeira britânica arvorada à meia-haste. Na noite anterior, morrera a 66ª vítima do ataque ao Flamingo Club, e, para grande revolta do público, nenhuma pista concreta fora achada sobre a identidade do assassino - ou assassinos. No momento, ele e Highsmith faziam uma tempestade de ideias.

- Por que o Flamingo Club? - Divagou Highsmith.

- Porque possibilitava um meio ideal para a difusão do veneno... a espuma, produzida pelas máquinas - replicou Queen. - Todavia, você tem razão em perguntar: o que fazia do Flamingo um alvo preferencial de ataque, além da óbvia facilidade do uso da espuma?

- O assassino... ou assassinos... invocou o nome de um assassino e suicida misógino, o tal Elliot Rodger - relembrou Highsmith. - E, de fato, havia muitas mulheres na festa...

- Alguma razão em especial? - Questionou Queen.

- Li algo nos jornais... - Highsmith franziu a testa, concentrando-se. - Havia um grupo grande... alunas da St. Agatha's University comemorando algo naquela noite... parece que só duas sobreviveram... e uma terceira disse ter tido uma premonição sobre não ir à festa e ficou em casa.

- Premonição? Acho que precisamos falar com essa garota... - determinou Queen.

* * *

Skye Roberts era uma garota ruiva, bonita e sardenta, de 19 anos de idade. Seria ainda mais bonita se não houvesse raspado a cabeça com máquina 1. Recebeu Queen e Highsmith na casa dos pais, com ar de embaraço.

- Polícia? Puxa, mas eu nem fui à tal festa...

- Justamente por isso nos chamou a atenção, senhorita Roberts... - ponderou Queen. - Você disse à imprensa que havia tido uma premonição sobre o evento... que espécie de premonição?

- Na verdade,não houve premonição alguma. Eu simplesmente não achei que havia o que comemorar... contei essa história de premonição para não ter que explicar o motivo real, e me expor ainda mais.

- Expor... ao quê? - Questionou o inspetor.

Skye mordeu os lábios.

- Bem... o que vou lhes dizer vai permanecer confidencial?

- Se não tiver nenhuma relação direta com o caso sendo investigado... sim - prometeu Highsmith.

- Eu não gostaria de ver isso nos jornais... - a jovem parecia realmente aflita.

- Por que não nos conta o que realmente houve? O que as suas colegas de universidade estavam comemorando?

Os olhos da garota encheram-se de lágrimas.

- A demissão do professor Dixon. O homem que me levou a fazer isso.

E, em prantos, apontou para a própria cabeça raspada.

* * *

Keegan Dixon, um homem alto de cerca de 50 anos, cabelos grisalhos, foi trazido ao distrito por guardas armados do SO15, a unidade de contraterrorismo da Polícia Metropolitana de Londres. Lá, ele foi confrontado por Queen e Highsmith.

- Como então o senhor perdeu o seu emprego de professor na St. Agatha's University, após uma sindicância interna? - Inquiriu Highsmith.

- Eu fui vítima de uma injustiça... - protestou Dixon. - O que não entendo é porque fui trazido aqui por policiais fortemente armados.

- Estivemos com uma de suas ex-alunas sobreviventes... Skye Roberts. Ela lhe fez acusações muito sérias - atalhou Queen.

- O que isso tem a ver com a minha condução coercitiva? - Indagou Dixon.

- Skye nos disse que raspou a cabeça numa tentativa desesperada de ficar feia... e fazer com que o senhor parasse de assediá-la - prosseguiu Queen.

- Isso é ridículo! - Exclamou o professor.

- Vimos a sindicância feita pela universidade... há relatos de outros seis casos de assédio de alunas, por parte do senhor. Mesmo sendo uma instituição renomada e tradicional, que conseguiu abafar com sucesso a veiculação destes fatos desabonadores, viram-se obrigados a tomar uma atitude drástica. Qual seja: exonerá-lo.

Dixon encarou Queen em silêncio.

- Imaginamos que teve tempo para planejar a vingança contra as suas vítimas e contra o gênero feminino em geral, já que a sindicância durou alguns meses - acrescentou Highsmith. - E, quando finalmente foi anunciada a sua exoneração, muitas jovens da universidade decidiram comemorar... numa festa de espuma. Seria como se estivessem limpando a sua presença das suas vidas...

- O que não suspeitavam é que isso lhe daria a oportunidade de eliminar um expressivo número delas... - ponderou Queen. - e de seus acompanhantes, mais jovens e bonitos que o senhor. Concorrentes a serem eliminados.

Dixon cerrou os dentes, mas nada disse.

- Por uma dessas incríveis coincidências, constatamos que um dos seus parentes possui uma empresa de desratização e controle de pestes... - disse Highsmith. - Como tal, importa legalmente o Composto 1080 fabricado pela Tull Chemical Company, dos EUA. Consta que o senhor esteve lá há uma semana, fazendo uma visita... e que uma das garrafas do veneno desapareceu do almoxarifado.

- É bom ter álibis muito fortes... pois nós vamos confrontá-los - concluiu Queen.

Dixon continuou em silêncio, mas em seus olhos bem abertos, via-se o brilho homicida de um predador acuado.

Um lobo solitário.

- [18-05-2018]