Pisando em Gelo (2084)

2084 d.C., distrito de Pedra Negra, Bahia.

Dentro da delegacia minúscula havia três homens.

Eles eram todo o contingente policial responsável pela segurança do distrito de Pedra Negra. Amael, o delegado metido num uniforme preto muito pequeno que deixava a mostra sua barriga flácida um pouco acima da calça. Geraldo, negro, de ar sério e calado a maior parte do tempo, mas um homem de coragem e atitude quando necessárias. Inúmeras vezes sozinho arrastou arruaceiros por longos quarteirões e sem algemas até a delegacia. Amarrava suas mãos com trapos encontrados no lixo ou simplesmente torcia-lhes o pulso a ponto de parti-lo e apertava o revolver em suas nucas com tanto força que a marca roxo-arredondada se fixava ali por dias.

Tanto o delegado, Amael, que servia naquele cargo há pouco mais de doze anos quanto seus dois homens jogavam cartas de um baralho arranhado e gorduroso em silêncio, quebrado somente pelo barulho regular do ventilador no teto e a algazarra vinda de fora.

Era dia da Independência Mundial e nesse dia as pessoas tinham liberdade sobre suas ações. Policiais ou quaisquer autoridades deveriam estar na sede de seus distritos ou em casa. Trancados.

A multidão lá fora se dispersava às vezes quando grandes caminhões passavam voando rentes ao chão. Rugindo sobre barulhentos propulsores.

O outro jogador era Milton, tinha marcas de espinhas no rosto, um leve sinal de pelos ralos crescendo entre o nariz e a boca e ingressara no serviço há pouco mais de dois anos. Era magricelo e um tanto desajeitado, o uniforme se adequava a ele como um macacão de operário numa criança e era visível seu desconforto ao andar – normalmente segurava o cinto disfarçadamente com um das mãos enquanto a outra erguia um dedo no ar quando gritava com algum vagabundo punk retrô ou empunhava o revólver. Ainda assim o rapaz tinha um latente senso de justiça e vontade agir. Não que isso fosse lhe garantir uma vida longa, mas talvez lhe trouxesse alguns louros e recompensas.

Se chegasse até os quarenta anos.

Quando pensava nisso Amael suspirava desconsolado: E daí ser um quarentão com uma papada de gordo, um grande bigode a lhe emprestar um ar de leão-marinho principalmente quando estava furioso e um corpanzil de 1,90 de altura? Nada disso tinha serventia quando precisava intimidar arruaceiros naqueles dias. A polícia perdera todo o respeito assim como os grandes líderes religiosos extintos juntamente com seus templos e ele presumia que em breve talvez não fossem mais necessários homens na segurança das cidades como foram descartados tempos atrás padres e pastores após o governo decretar a definitiva inexistência dos deuses e a ilegalidade das religiões.

Que época... Ele era cristão temente a Deus todo poderoso e uma vez por mês, nas noites de quinta-feira esgueirava-se por becos escuros até um minúsculo templo que funcionava às escondidas nos fundos de um bar. Ali oravam em voz baixa, confessavam-se e consolavam-se. Inúmeras vezes eles se viu desabando sobre o colo de pessoas enquanto um rio escorria de seus olhos e soluços gritavam da garganta. Naqueles momentos ele era Amael, o homem casado há dezenove anos com Benzila com quem tivera dois filhos gêmeos (ambos mortos há três anos num acidente com um veículo quando os propulsores falharam e despencou de uma altura de sessenta metros) Mas também era o policial convicto que ingressara anos atrás naquela carreira com ambições de mudar o mundo ou pelo menos melhorar sua cidade e a gente que ali vivia e que no fim viu-se preso numa tarefa inútil: era Sísifo, personagem de uma história antiga que leu durante a faculdade, carregando uma pesada pedra montanha acima e depois a vendo despencar até o sopé, obrigando-o a recomeçar a tarefa.

Em breve teriam a mesma utilidade que uma peneira tinha como quebra-sol.

Não que viessem a ser substituídos por androides.

A tecnologia por mais que tivesse avançado nos últimos anos permitindo proezas inimagináveis como veículos voadores, doenças mortais curadas facilmente – desde que se tivesse como pagar pelos caros tratamentos - tele transporte e viagens a planetas distantes, ainda não tinha permissão do governo para tais incursões.

Muitos dos grandes líderes mundiais que agora administravam o planeta como um todo sob a bandeira das “Nações Mundialmente Unidas em Prol de um futuro melhor” ou abreviadamente NMU temiam o descontrole sobre essas máquinas e o extermínio precoce dos homens e principalmente a perda de seu poder.

E sim pelo avanço descontrolado da violência tanto nas grandes cidades como em pequenas vilas longínquas. Os jornais esfregavam em suas caras notícias semelhantes todos os dias. A média de assassinatos oscilava diariamente entre 11 a 13 mortes por dia só nas redondezas de Pedra Negra. E eles, a força policial estava desgastada, agindo mais como um paliativo, aliviando a dor ou disfarçando a aparência de um corpo que gangrenara e cheirava a morte por dentro. O tipo certo de homens numa época e mundo errados e ah não ser que Deus todo poderoso descesse ali com um controle com botão de RESET na mão, nada mudaria. As cidades e pessoas só se deteriorariam e em menos de cem anos só haveria edifícios gigantescos vazios e veículos autônomos vagando sozinhos entre prédios até lhes faltar o combustível e despencarem como mosquitos abatidos com inseticida.

Lá fora um novo som lhes atraiu a atenção: latidos desesperados de um cão constantemente abafados pelos gritos, risos e estouro de rojões. Milton abaixou as cartas e fez menção de se levantar, mas o olhar preocupado do delegado o fez parar um instante. Geraldo retribuída a preocupação do chefe e repassava o mesmo olhar ao jovem à sua frente:

- eu só iria...

- não! – disse por fim o delegado num tom intimidador – você senta. Eu sei bem o que você iria se tivesse oportunidade.

Ele manteve as mãos nas beiradas da mesa buscando apoio para ficar de pé. Seus olhos claramente anunciavam a desobediência que cometeria. Geraldo suspirou e preparava-se para falar algo quando Milton tomou impulso e pôs-se de pé. Amael largou as cartas que caíram viradas na mesa e levantou-se de imediato. Sua barriga protuberante bateu com força nas laterais empurrando-a sobre o peito do negro do outro lado. Meio atrapalhado e tomando cuidado de esconder seu jogo Geraldo levantou-se em seguida no que pareceu uma pouco convidativa brincadeira de siga o mestre.

- você senta Milton. É uma ordem! – esbravejou Amael. Não há nada lá fora que já não tenha visto nos anos que se passaram.

- sabe o que significa esses latidos senhor? Estou pouco me importando com essas festas loucas regadas a pó e a álcool ou com essa barulheira infernal, mas isso – apontou para o lado de fora onde através das frestas das persianas sombras dançavam – isso é inaceitável porra! Sabe o que estão fazendo senhor?

- sim, sei... Estão torturando outra porra de cão lá fora. Comemorando um dia da independência na qual não tivemos nenhuma participação e que em nada mudou nossas vidas. Mas que pra esses apoiadores do ditador desse país deve valer tanto quanto o sábado sagrado. E sabe de mais uma coisa? Nada posso fazer em relação a isso. Ah não ser que se entediem do pobre animal e passem a esquartejar uma pessoa ou a quebrar as vidraças de lojas ou qualquer ato de vandalismo... Diferente disso, não pode interferir assim como eu não posso e muito menos Geraldo ou qualquer outro policial nos distritos. É só mais um cão sarnento das ruas. Se olhar bem estão fazendo um favor para nós. Podem muito bem estar dando fim a um bicho raivoso e doente – e...

...por Deus, um cristão fervoroso não veria tal ato como bondade, mas o padre lhes explicara várias vezes que os cães ou quaisquer animais não iriam para o céu por não portar uma alma, diferente do ser humano. E além do mais, cães doentes vagando pelas ruas portavam todo tipo de doenças.

- Milton – disse Geraldo em tom apaziguador – senta. Há coisas maiores a se preocupar. Já teremos uma grande bagunça para arrumar quando essa comemoração acabar. Assinamos um regulamento quando iniciamos esse serviço lembra? Há certos dias aqui que não podemos realizar rondas e hoje não podemos intervir nas comemorações do lado de fora ah não ser, como disse o chefe que cometam crimes sérios. E o não cumprimento desse regulamento não vai resultar em uma multa na sua casa ou um desconto no seu salário. Vão pegar sua cabeça como pagamento e não seria uma cena agradável.

O olhar do rapaz ainda era um pouco implacável e Geraldo temia que ele não estivesse escutando-o, mas estava errado, apesar da teimosia, Milton cedia facilmente após algumas palavras firmes e por mais que Amael estivesse cansado daquela rebeldia explodindo hora ou outra como as acnes no rosto jovem Geraldo o via como um filho que ainda tinham muito aprender. E ele gostaria muito de ensinar-lhe sobre os tempos que ainda estavam por vir, bons ou não. Notou o rapaz relaxar as mãos nos cantos da mesa. Os gritos do cão cessaram.

- desculpem – disse por fim. Baixou os olhos e deixou as mãos penduradas na frente do corpo – me esqueci desses pequenos... detalhes. Afastou-se da mesa: - irei deitar nos fundos um pouco, tudo bem? Minha cabeça começou a doer.

Geraldo assentiu.

- tenho aspirinas no armário do banheiro – disse Amael se acomodando de novo na cadeira, seu olhar transmitia alívio. O dia findava e estar dentro daquela delegacia com um bando de loucos depravados lá fora era como caminhar em gelo fino: Um passo em falso e...

Os homens voltaram ao jogo sem dizer nada e seguiram por duas rodadas inteiras em silêncio quando um estampido soou no cubículo: a cabeça de Amael foi jogada para frente com violência, cartas voaram e uma cratera surgiu na parte de trás do seu crânio, rodeada de sangue e massa encefálica. Geraldo levantou o olhar assustado.

Da porta do banheiro Milton apontava um revólver 38. O cano fumegava:

- como um cão – sussurrou.

Havia pó branco nas suas narinas e um sorriso perverso estampava seu rosto.

Em pânico, Geraldo viu o cano da arma apontado para ele.

Wenderson M
Enviado por Wenderson M em 29/05/2018
Código do texto: T6349765
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