Para todo mal, a cura

- Clarita!

O grito quase pegou desprevenida a interpelada, que havia acabado de abrir a porta do quarto da patroa empurrando um carrinho com o café da manhã. Ao entrar, percebeu que Laura Sunderland, ainda de camisola, estava sentada em sua cama Queen Size com uma toalha cobrindo a cabeça - por isso, não a vira.

- Estou aqui, señora. Trouxe o café - alertou, tentando aparentar naturalidade.

- Deixe ao lado do criado-mudo - replicou a patroa, sem dar qualquer explicação para a cabeça coberta. - E depois me traga aquele véu preto de renda, que usei no Vaticano ano passado.

- Sim, señora - acedeu a empregada.

Quando retornou, dez minutos depois, a bandeja com o desjejum continuava intocada sobre o carrinho, e Sunderland havia apanhado o telefone que mantinha ao lado da cama - sem descobrir a cabeça. Clarita anunciou sua presença.

- Trouxe o véu, señora.

- Deixe sobre o criado-mudo - retrucou Sunderland, aparelho telefônico ao colo - e me prepare o vestido que usei no funeral de Lord Edmonton.

- Morreu alguém que eu conheça, señora? - Arriscou-se a indagar a empregada.

- Ainda não, Clarita - foi a resposta irritada. - Mas se eu o encontrar, é bom que a família tenha dinheiro para providenciar o enterro...

Clarita decidiu que não era um bom momento para perguntas.

- Com sua licença, señora. - E saiu, fechando a porta atrás de si.

Ao notar que estava só, Laura Sunderland retirou o fone do gancho e discou um número. Do outro lado, apenas o som da campainha, tocando, tocando, sem que ninguém lhe desse atenção.

* * *

- Como aconteceu? - Indagou Ellery Queen, limpando a boca com um guardanapo de linho, ao receber uma ligação do inspetor Pembroke. O detetive nova-iorquino estava no meio do almoço, mas fizera uma pausa ao ser informado sobre quem estava lhe telefonando.

- Três tiros na cara - declarou a voz no receptor.

- Alguém estava com muita raiva - analisou o detetive. - Testemunhas?

- Várias. Todas viram uma mulher elegante, vestida de preto e com um véu sobre o rosto, invadir o consultório do Dr. James Floyd, em Kensington. Ela sacou uma arma da bolsa e efetuou os disparos, sem dizer uma palavra. Saiu de arma em punho e nenhum dos presentes, mulheres e idosos, em sua maioria, atreveu-se a colocar-se em seu caminho. O Dr. Floyd teve morte imediata.

- Fale-me sobre esse Floyd, Pembroke.

- Um desses cirurgiões plásticos de celebridades... consta que fez muito sucesso em Beverly Hills, até alguns anos atrás. Daí, começou a ser processado por várias pacientes e resolveu mudar-se para Londres.

- As clientes não ficaram satisfeitas com o resultado das cirurgias?

- A princípio, sim... o problema foi o método empregado por ele: injeções de silicone. Com o passar dos anos, o silicone começou a sair do lugar, desfigurando as pacientes... e aparentemente, Floyd recusou-se a consertar seus erros. Ao menos, não sem um pagamento adicional, se me entende.

- Dependendo da quantidade de prejudicados, pressinto que teremos problemas para solucionar este caso - declarou Queen. - Prepare uma lista de suspeitos potenciais e verifique quando será o enterro.

- Acredita que a assassina irá aparecer por lá?

- Tenho quase certeza disso - retrucou o detetive.

* * *

Apesar de que sua popularidade não estivesse exatamente em alta, o enterro de James Floyd foi bastante concorrido. Certamente, o dia ensolarado, algo raro em Londres, contribuiu para isso. Queen chegou ao cemitério de táxi, comendo um sanduíche de pepino. Não precisou andar muito para encontrar Pembroke, encostado numa viatura com ar infeliz.

- Que cara é essa, inspetor? - Indagou Queen.

- Avalie por si próprio - sugeriu Pembroke, indicando o ponto onde se aglomerava a pequena multidão que viera ao sepultamento.

E foi então que Queen percebeu algo extraordinário: havia ali pelo menos trinta mulheres, todas usando o mesmo tipo de vestido preto, mangas longas, cabeças cobertas por véus de renda, igualmente pretos, óculos escuros.

- Maldição! - Resmungou Queen. - Foi um complô!

- Ninguém vai testemunhar contra a assassina, pode apostar - declarou desanimado Pembroke.

- E os pacientes que a viram invadir o consultório?

- Boa parte deles tinha queixas graves contra Floyd. Creio que estavam ali para garantir que ele não escapasse... e vê-lo morrer - redarguiu o inspetor.

- Vamos permitir que a assassina fique impune? - Questionou o detetive.

- Faremos a nossa parte; vamos interrogar todo mundo, verificar os álibis... - declarou Pembroke, sem grande convicção.

* * *

Uma semana depois, sem que as investigações houvessem avançado um milímetro na identificação da assassina, Queen telefonou para Pembroke e lhe comunicou suas descobertas.

- Talvez nunca consigamos colocar as mãos em quem apertou o gatilho, mas posso declarar agora que sei quem armou o complô, e porquê.

- Mas se descobriu o mandante, poderemos interrogá-lo ou emitir uma ordem de prisão! - Espantou-se Pembroke.

- Lamentavelmente, não - arguiu Queen. - Ele está morto: foi o próprio Floyd.

- Por que ele faria isso?

- Floyd enfrentava uma série de ações judiciais, no Reino Unido e nos EUA, e mais cedo ou mais tarde acabaria preso. Sua clientela estava debandando ou pressionando-o, e ele contraíra muitas dívidas, inclusive pela aparência de luxo que tinha que manter para tentar atrair novos incautos para seu método fajuto de rejuvenescimento. Há dois anos, contratou um seguro de vida, com um prêmio vultoso em caso de morte violenta; as seguradoras também pagam o prêmio em caso de suicídio, desde que um prazo contratual mínimo seja ultrapassado, mas Floyd decidiu não arriscar e tramou seu próprio assassinato pelas mãos de uma cliente insatisfeita. Eu arriscaria dizer que, quem puxou o gatilho, não possui qualquer relação com a beneficiária da apólice.

A beneficiária, como Pembroke descobriu em seguida, era a ex-mulher de Floyd, que residia nos EUA e estava enfrentando dificuldades para pagar um caríssimo tratamento de câncer. Pelo visto, o cirurgião decidira transformar sua morte numa improvável boa ação - sem falar na catarse proporcionada aos que havia feito sofrer, e o viram morrer bem à sua frente.

- [01-12-2018]