Ita Blue de Jagunço a Coronel

O coronel Licunha Pantaleão estava deitado no terreiro, seus olhos ainda abertos demonstrava o pavor dos ultimos minutos. A velha Severina urrava fazendo eco, pedindo que o velho não a deixasse, ao mesmo tempo exigia uma vingança lenta e cruel ao Jagunço Ita Blue, considerado um dos homens de confiança do defunto.

— Por essa luz que alumeia! Aquel’ desgraçado vai pagar caro pelo que fez! Quero a cabeça dele aqui na minha frente no máximo em vinte e quato hora! – Berrou a viúva enxugando ás lágrimas dos olhos. — Benevide! – Chamou um dos empregados que fumava a certa distância.

— Pois não patroa! – Falou o homem apagando o cigarro com o solado da bota.

— Vai na cidade e providencia o caixão e as fulô! Passa na delegacia e dá parte do criminoso!É só pro resguardo, avisa o delegado Pantoja que num carece de vim caçá ninguém não, já deixei nas mão de Deus!

O sol ia se escondendo, uma passarinhada em algazarra se infiltrava no meio de um imenso Jatobá. Ita Blue respirava o ar puro da mata sentindo um leve conforto dentro de si, da capanga cruzada no peito retirou a garrafa de aguardente e virou na boca, um longo gole e um assopro seguido para expulsar o queimor. Picou absorto na solidão da estrada, uma tora de fumo dada pelo Tio Nenego, o velho Espiridião que era o seu grande conselheiro. Baforando a fumaça branca naquele negror da chegada da noite, lembrou-se com sorriso de uma das excentricidades do tio querido. Era terça feira e havia um receio de que pudesse estourar a terceira guerra mundial, Estados Unidos acusava a União Sovietica de fabricar armas nucleares, Os Sovieticos desmentiam e diziam estar preparados para um confronto. O ouvido colado no radio antigo de Seis faixas, esperava alguma novidade no programa “A voz do Brasil”, mas as pilhas fracas provocavam interrupções, o volume diminuía de repente, um zumbido se misturava a voz do locutor, isso tudo e mais as latidas ininterruptas do cachorro Capitão, o caçador de Tatu. Nenego sem tirar o radio velho do ouvido gritava para que o cão se calasse, mas o gado pastava próximo a cerca da casa, o tatuzeiro no instinto de proteção latia sem ouvir as reclamações do dono. Até que possesso atirou o rádio chiando sobre a mesa que tinha um lamparina de querosene, foi até Capitão andando de quatro pés, para se manter em igualdade com o bicho, a feroz dentada seria no pescoço, mas o cão virou-se para entender a contenda e fora atingido na orelha, aquele aranzé foi assombroso para Capitão, que não conseguiu identificar aquela entidade humanoide com postura de quadrupede, saindo gritando mato a fora com um pedaço da orelha dependurado. A risada ecoou, Ita Blue por hora se esquecia do cansaço, deu outro gole na pinga e tirou o chapéu passando a mão nos cabelos emplastados. A Coruja buraqueira estava imóvel sobre uma casa de Cupim, seus grandes olhos brilhavam observando os movimentos, A lua começava a aparecer com seu luar robusto, projetando as sombras do Jagunço e seu cavalo. A velha Severina se vestia de preto e tinha os olhos secos, um constante cacoete lhe fazia mexer a boca de forma caricata sem mostrar os dentes, parecia visivelmente ansiosa. Ao lado do caixão saia apenas para extremas necessidades, o velho estava numa urna marrom com detalhes em filetes dourados, as coroas de flores traziam dedicatórias parecidas “Licunha Pantaleão, Saudades Eternas”. O Coronel Epaminondas Carneiro entrou com seu traje branco e chapéu na mão direita, apertado contra o peito esquerdo, com a outra mão alisava o bigode, cumprimentou os presentes com sutis acenos de cabeça. Olhou para o morto em toda a sua extensão, fez o sinal da cruz para a imagem de Jesus Cristo e foi até a viúva estender a mão, se olharam por meros segundos. Sá Ana e dona Eva, rezadeiras do povoado de Barrocão foram trazidas pelo preto Zé Mario a pedido da viúva. Quem estava no terreiro em volta da fogueira ocupou os últimos espaços que tinha dentro da sala.

— Deus dos espíritos e de toda carne, Que pisoteou a morte, Que reduziu o diabo ao nada e que deu tua vida ao mundo, Dá tu mesmo, Senhor, À alma de teu servidor Licunha Pantaleão da Silva Prachedes! O repouso num lugar luminoso, Verdejante e fresco, longe do sofrimento, da dor e dos gemidos! – Varias vozes seguiam em coro acompanhando Sá Ana e dona Eva. Vicente de Lia Preta, Beto de Filomeno, Zeca Jitirana e Hugo Catapora foram os escolhidos por Benevides “mãe da lua” para cumprir a determinação de caça ao Jagunço Ita Blue, assim que as rezadeiras fizeram o sinal da cruz, encerrando a primeira parte da oração, os cinco partiram em disparada, alforjes abarrotados de munição, rapadura, farinha e água, nas costas Rifles Winchester e na cinta revolveres Trinta e Oito carregados até a boca. Alguns deles ainda portavam facões se antecipando no caso de precisarem abrir picadas na mata. A noite estava clara, a lua se movimentava no céu fazendo ruas de luzes entre as nuvens escuras, em volta da fogueira no velório do Coronel Pantaleão, Dé de Maria Terra abriu o fole da sanfona, Pedro rico e Tiziu acompanharam com zabumba e triangulo, quem quisesse dançar que dançasse, a viúva saiu de perto do defunto ajeitando o cabelo o cabelo e ficou espiando na porta, de dentro da cozinha surgiam os empregados com os tachos de comida, litros de bebidas e uma grande mesa. Sá Ana que no inicio resistia as tentações da Curraleira, esticou o copo quando o litro passava e tomou sem fazer cara feia, dona Eva censurou a parceira, mas quando o sanfoneiro rasgou “Asa Branca” o jeito foi mandar uma direto no peito e chamar Manoel Bufão para arrastar o pé. Ita Blue tinha ciência de que Benevides desconfiava da missão. Por isso ao invés da estrada dos Bandeiras, seguiu rumo ao Mulungú, numa estreita picada que dava direto no Kilombo dos Machados. Em alguns trechos, era preciso descer do cavalo e pisar com cuidado para não despencar nos Canions da Serra do Gibão, além da dificuldade de andar, também quase não se via nada, já que os arvoredos obstruíam a passagem do luar. Após trinta longos minutos de caminhada insalubre, viu surgir a robusta luz da lua, a clarear o caminho que começava a mostrar alternativas para afastar-se da pirambeira. Seguiu a direita em uma bifurcação que surgia repentina, lá embaixo em meio a densidade da floresta se destacava um pequeno ponto de luz que fez o coração do Jagunço, bater acelerado de felicidade. Não tinha noção de quanto tempo havia andando, mas tinha certeza que havia chegado a casa do remanescente do Kilombo dos Machado, os cachorros estavam amarrados, a porta uma pequena janela estava aberta com uma luz de lamparina fraca, tremida pelas lufadas de vento, antes que apeasse do cavalo a porta se abriu e um negro alto vestido de branco deu as boas vindas.

— Axé, cumba Ita Blue!

— Axé cumba Nego Galalau!

A mesa de madeira estava coberta por uma toalha branca. Uma garrafa de café e uma cesta estavam próximas, o Jagunço esboçou abrir a boca, mas o dono da casa fez psiu com o dedo indicador em vertical na boca, apontando para a comida. Enquanto comia vorazmente os biscoitos empurrados pelo café, Ita Blue se lembrava de dona Laurinda, dos misticismos que a cercavam e das situações hilárias que proporcionara, ria mastigando um grande pedaço de queijo seco, recordando o dia em que a mãe comprara um revolver, não se lembrava do motivo, mas não se esquecera da reação conflituosa do pai. Também vinha a memoria aquele dia em que a mãe estando sozinha no quintal, observando a infinitude de estrelas, avistara um disco voador, sem saber o que era, passara a gritar aos filhos que viessem ver uma bacia cheia de luzes voando no céu, Ita Blue se lembra que observara os movimentos estranhos daquele objeto, até que ele desaparecera, enquanto alguns dos irmãos se meteram em baixo da cama. O dia estava amanhecendo, os pássaros retornavam as algazarras, pareciam agradecer ao dom da vida, um vento gelado vinha das bandas do norte, para onde seguiam os cinco cavaleiros silenciosos. Benevides olhava minuciosamente para a estrada em busca de sinais do Jagunço, tirava o binoculo do alforje e olhava em vão para todas as distancias, na ilusão de que haviam ganhado algum tempo sem descansar a noite por ordem do líder, resolveram descansar. Em um recuo da estrada avistaram uma frondosa Brauna-do-Sertão, próximo a um pequeno riacho. Comeram farinha com rapadura, tomaram água fresca e adormeceram. As quatorze horas o corpo do Coronel Licunha descia para a sepultura, um sepultamento de pouca comoção, a viúva com seu traje negro escondia os olhos com os óculos escuros, o Coronel Epaminondas penteava os bigodes com uma das mãos e com a outra acariciou a cabeça da velha Severina que esquivou-se ao ser flagrada pelo filho. O dia que havia começado com sol forte, transformava-se e nuvens pesadas indicavam que uma tempestade não demoraria, um vento forte passou a soprar as arvores como se fosse arrancá-las, e trovões urravam em todo firmamento.

— Acho que essa chuva vai atrasar a minha volta! – Falou Ita Blue de olho no céu.

— Não há do que se preocupar Cumba Ita Blue! Isso é chuva passageira, vem forte, mas passa logo! Mas Diga ao Coronel Licunha, que Galalau e o povo do Kilombo dos Machado fica eternamente grato, com o dinheiro das pedras vamos refazer as moradias que o demônio Epaminondas destruiu!

— Estou com um pressentimento ruim! – Falou Ita Blue apertando o peito.

— Medo do temporal?

— Não, o Coronel me disse que vinha sonhando que seria traído e morto!

Galalau levantou-se com ar pensativo, vendo o vento retorcer as bananeiras e andou em direção ao interior da casa, acompanhado pelo amigo e pela mulher. Zeca Jitirana era filho de dona Lucia parteira e Ernestino da venda, vinha tentando montar o quebrar cabeças, desde que recebera a oferta de dez mil cruzados, para integrar o grupo de caça ao assassino. “O Coronel havia sido encontrado pela viúva no quintal da fazenda, que dizia ter sido Ita Blue o autor, mas porque será que ela não havia gritado por socorro?” Pensava quase em voz alta, atrás dos outros, que iam feito cães farejando a estrada. De repente um soco no seu interior, voltando a dias atrás se lembrou de ver Jagunço comentar na venda do pai, que visitaria o Kilombo dos Machados a pedido do Coronel Licunha, estava claro, não tinha como ser ele o assassino não estando na fazenda, “Estão armando” Pensou com um gosto amargo na boca. Olhou para Benevides recordou a conversa demorada dele com a viúva, falaram sozinhos em um quarto fechado por muito tempo. A ordem dela era matar o jagunço. Zeca Jitirana colocou a mão na barriga e começou a gemer, os outros pararam, Benevides vociferou que não havia tempo para frescuras, Zeca argumentou que sentia cólicas e precisava descansar, Benevides apontou o Rifle para obriga-lo seguir, mas os outros intervieram. Zeca desceu do cavalo e deitou-se a beira da estrada com gemidos altos. O tempo ainda estava escuro e a chuva ameaçava cair, Benevides voltou e assistiu seus lamentos por alguns minutos, virou as rédeas e seguiu.

— Deixa esse miserável morrer e ser comido pelos urubus! Maldita hora que chamei essa desgraça pra andar comigo! – Esbravejou Benevides esporando o cavalo! – O próximo que quiser ficar pelo caminho, pode ficar, mas vai ser com a boca cheia de chumbo!

Zeca assuntou com o ouvido no solo, além dos trovões que rugia no céu, não havia mais ruídos de tropel dos cavalos, levantou-se imediatamente pegando a direção contrária. O vento cantava nos ouvidos empurrava o cavalo que corria sob a dor das esporadas, uma hora depois em baixo da forte chuva misturada a pedras de granizo, batia palmas insistentes na casa do guardião do Kilombo dos Machados.

— Axe, chegante! Se apeie. – Falou Galalau em tom de receptividade.

Ofegante, Zeca contou a história por duas vezes, até que o dono da casa e o Jagunço pudessem entender. Ita Blue levantou-se assombrado, coçou a cabeça por diversas vezes sob o olhar perscrutador de Galalau, Zeca temendo uma ainda desconfiança na sua verdade, contou fatos que o fizeram fazer a ligação dos pontos, Ita Blue cai em si. E também passou a fazer conexão das coisas que ouvia do Coronel e da viúva, ressaltou que Benevides sabia muito bem que estaria em missão de três dias a mando do Coronel, só não sabia para onde.

— Ele desconfia que você tenha ido a Tocandira! Pelo tempo, daqui a meia hora estarão lá! E duas e meia depois baterão aqui! – Falou Zeca Jitirana.

— Então vamos contar com três horas, por causa da chuva! – Completou Ita Blue.

—Não conte com isso! A chuva é passageira e pode ser que não tenha a mesma força para aqueles lados! Vamos montar uma tocaia! – Disse Galalau.

Minutos depois a chuva era só uma fraca neblina. Galalau levou um tambor até o terreiro e começou a repicar alto, com gritos que eles não entendiam o que era, breve saindo de diversos cantos, homens negros pintados de branco, com lanças e armas de fogo nas mãos ia chegando. O tambor marcava sob uma cantiga triste saudando a alma do Coronel, a seguir todos pularam amassando aquele barro feito pelas águas da chuva, Galalau vestiu uma espécie de túnica de palha e também pintou o rosto, passando a correr em circulo seguido pelos outros. Após o ritual subiram e foram esperar os inimigos na entrada da Gruta do Gibão, Ita Blue tinha a espingarda cartucheira de dois canos socada de chumbo e pólvora, o coração palpitava e as mãos estavam úmidas. Os homens do Kilombo pareciam estar em transe inertes naquele canto escuro, Zeca Jitirana fez um sinal para fora.

— Estão chegando! – Sussurrou.

Benevides vinha na frente berrando com impafia.

— Maldito! Agora eu mataria aquele filho de uma égua até de graça!

O jagunço Ita Blue pôs a cabeça do algoz na mira, mas atirou no braço direito, partes de carne, osso e pedaços de roupas, acertaram Beto de Filomeno que vinha atrás, este não tivera a mesma sorte. Zeca Jitirana lhe fez um buraco na testa, Vicente de Lia preta e Hugo Catapora foram poupados por terem sido enganados como fora Zeca Jitirana. Com o braço mutilado e a um cano de Rifle apontado para a cabeça, Benevides “mãe da lua” contou em pormenores toda a trama, arquitetada pela velha Severina com ajuda do Coronel Epaminondas. Tudo se deu quando Licunha Pantaleão descobriu que era irmão legitimo do Vaqueiro Centenário, assim o mais confiável dos seus Jagunços passa também seu sangue, coisa que o Coronel contou com alegria para a esposa, dizendo que tinha intenção de coloca-lo no testamento. A velha que era amante do Epaminondas juntou-se a ele e passaram a monitorar Ita Blue, mas a idéia de fazê-lo de assassino e depois mata-lo para ter um álibi, foi do delegado Pantoja que sobrinho neto do Coronel Epaminondas. Benevides ganharia quinze mil cruzados, além um pedaço de terra na nova fazenda e o cargo de gerente dos capatazes. Uma semana depois os grandes jornais do país, estampavam a cara do Delegado Pantoja sendo preso ao lado da viúva e do Coronel Epaminondas. Benevides morreu por complicações nos ferimentos em um hospital da cidade de Montes Claros, a justiça fez cumprir a vontade do velho Licunha Pantaleão, e o antigo Jagunço hoje é o Coronel Lidio Ita Blue, um dos maiores produtores de gado leiteiro da região. Dizem as más línguas que ele é parente do Bicho da Carneira ou Bicho de Pedra Azul. Mas essa é outra história.