A vingança é um prato que se come frio
Quando Chris desembarcou em Oslo vindo da ilha-prisão de Bastoey, na qual cumprira pena por tráfico de anfetaminas, a namorada, Eirin, estava à espera dele num surrado VW Golf prata. Seguiram direto para o apartamento dela, em Brugata, onde foram recebidos com latidos irritados por um lapphund preto, adequadamente chamado de Svart.
- Você arranjou um cachorro - constatou Chris, um tanto desapontado.
- Arranjei uma companhia - replicou Eirin. - Fiquei muito solitária, sem você.
- Melhor um cachorro do que outro cara - conformou-se o rapaz, tentando ganhar a confiança do animal.
Chris e Svart finalmente acabaram chegando a bom termo, e os namorados sentaram-se no sofá da sala para ter uma conversa esclarecedora.
- O que eu lhe disse antes de você sair da prisão, está valendo - alertou Eirin, pernas cruzadas. - Para ficar morando aqui, você vai ter que se comprometer a arranjar um emprego. Um emprego de verdade, não vender drogas pelas ruas.
- Está bem - assentiu o rapaz. - Amanhã mesmo eu vou ver o Johan, ele me disse que o procurasse quando saísse da cadeia.
- Johan não é um dos caras da sua antiga turma? - Indagou Eirin, desconfiada.
- Ele foi... - admitiu Chris em tom evasivo. - Mas agora trabalha com segurança.
- Segurança? Que tipo de segurança? - Questionou Eirin, sobrolhos erguidos.
- Segurança de ativos de informação - declarou o rapaz, sem piscar. - Você sabe, eu andei estudando informática na cadeia.
Eirin relaxou a expressão, aparentemente mais tranquila.
- Ah, lembrei... então era disso que se tratava. Muito bem! Eu te levo lá amanhã... onde é?
- Em Torggata... mas não se preocupe, eu vou na sua bicicleta. Assim aproveito e volto a me exercitar.
Eirin pareceu ficar um tanto decepcionada, mas aceitou os termos do rapaz.
* * *
- E qual é o bagulho? - Indagou Chris para Johan, quando os dois se encontraram num bar próximo ao rio Akerselva.
- Nada de anfetaminas - esclareceu Johan. - A parada agora é mais alta: heroína.
Chris assoviou.
- Quem é o dono da boca?
- Um cara chamado Mikkel. Eu recomendei o teu nome, portanto, muito cuidado com o que vai fazer: o meu e o seu estão na reta!
Em seguida, a dupla atravessou o rio para o bairro oposto de Grünerløkka, onde Mikkel tinha seu pequeno escritório numa área revitalizada e frequentada por hipsters. Chris ficou com a impressão de que o cidadão à sua frente era um legítimo homem de negócios, e não um traficante de drogas.
- Então, você passou por Bastoey - indagou Mikkel em tom afável.
Chris acedeu.
- Bastoey é quase uma colônia de férias - desdenhou o traficante. - Eu estive preso em Los Angeles, EUA. Aquilo sim, é prisão de verdade; um lugar onde só os fortes resistem.
Em seguida, Mikkel explicou como era o seu modelo de negócios.
- Você vai trabalhar pra mim por indicação do seu amigo Johan... vou te encarregar de abastecer uma área da cidade, já tenho clientes certos. Você vai cumprir metas, e semanalmente vai me prestar contas. Se conseguir novos clientes, ganha bônus.
Chris teve que preencher uma ficha, quase um pedido de emprego formal. Mikkel pediu detalhes, sobre onde ele morava e com quem. Pareceu aprovar quando ouviu falar da namorada.
- A garota ficou te esperando enquanto você estava na cana? Segure essa, é pra vida toda.
Finalmente, uma recomendação de extrema importância.
- Lembre-se sempre de que o prejuízo que me causar, vai ser cobrado de você com juros e correção monetária. Eu não sujo minhas mãos cuidando de quem me dá volta, mas tomo providências para que o infeliz se arrependa amargamente dos seus atos.
Devidamente advertido, Chris foi posto para trabalhar.
* * *
Jarl, um ex-associado de Chris, havia cumprido pena por tráfico em Halden, uma penitenciária próxima à fronteira com a Suécia. Retornando a Oslo, procurou saber por onde andava o antigo parceiro de crimes. Acabou topando com ele na rua, em Torggata.
- Que coincidência! - Exclamou Chris, nada satisfeito.
- Coincidência nada, eu tava à tua procura - informou Jarl. - Cadê as 15 mil coroas que tu tá me devendo?
- Comecei a trabalhar faz pouco tempo - esquivou-se Chris. - Ainda não tenho o dinheiro todo...
- Tô sabendo - replicou Jarl. - Já me cantaram a parada: heroína. Vamos fazer o seguinte: você me dá uma parte do bagulho, e eu quito a tua dívida.
- Tá maluco? - Retrucou Chris. - Eu trabalho prum cara barra-pesada, o Mikkel... teve preso na América e tudo!
- Azar o seu - redarguiu Jarl, encostando a ponta de uma faca na barriga do rapaz. - Passa logo o bagulho.
E a entrega do dia mudou de mãos. Naturalmente, dar parte à polícia estava fora de cogitação.
* * *
Mikkel ouviu atentamente enquanto Chris lhe narrava suas desventuras. Em seguida, no seu costumeiro tom de voz calmo, informou-lhe que daria um prazo razoável para que o valor da droga roubada fosse reposto.
- Você sabe, o que foi levado valia bem mais do que 15 mil coroas - ponderou.
- Eu não tenho esse dinheiro, Mikkel - admitiu o rapaz.
O traficante abriu uma gaveta da escrivaninha, e dela retirou a "solicitação de emprego" de Chris.
- Vamos ver quanto você tem... - comentou, correndo o dedo pelo documento. - Esse Golf da sua namorada, creio que dá para pagar o prejuízo.
Chris engoliu em seco.
- O carro não é meu, Mikkel.
O traficante o encarou em silêncio, mãos entrelaçadas sobre a mesa.
- Você decide. Lembre-se do que eu lhe disse sobre arrependimento.
Mikkel deu-lhe uma semana para aparecer com o dinheiro. Ou o carro.
* * *
Uma semana e um dia depois, ao descer do apartamento pela manhã, Eirin teve a desagradável surpresa de encontrar o seu carro em chamas. Alguém passara de moto pela rua, e atirara um coquetel Molotov no veículo. Chris ficou arrasado, pois sabia que a culpa era inteiramente dele. Pouco depois, chegaram os bombeiros e a polícia. Eirin foi para a delegacia, registrar queixa. Por razões óbvias, Chris não a acompanhou. Alegou que iria aguardar no apartamento, com o cachorro. Enquanto subia as escadas do prédio velho, ia pensando amargurado no que o futuro lhe reservava. Muito provavelmente, a polícia viria atrás dele, por suas ligações com o crime organizado; não poderia ficar ali muito tempo.
Ao chegar ao apartamento, percebeu que a porta estava apenas encostada, mas não conseguiu lembrar se a deixara assim ao sair. O cachorro também não veio ao seu encontro, o que era estranho. Ao adentrar a cozinha, viu que a porta dos fundos estava aberta, e que Svart jazia junto dela, numa poça de sangue: havia levado um tiro certeiro, na cabeça.
Chris caiu de joelhos, sentindo que o chão lhe faltava sob os pés. E só então se lembrou da advertência de Mikkel.
- [19-11-2019]