A vingança do morto
Quinta-feira, nove horas da noite. Parou o carro diante da casa número 234, daquele bairro nobre. Respirou fundo, ajeitou o paletó e saiu do veículo, dirigindo-se para a residência.
Passou pelo portão pequeno, percorreu lentamente a rampa de acesso e parou diante da porta. Apertou a campainha. Minutos depois, um homem meio gordo e que tinha bigode, abriu a porta.
- Pois não? - o gordo indagou, sério.
- Liguei a pouco. - disse o homem de paletó: - O senhor se chama Haroldo Vickol?
- Sim. Sou eu mesmo. O senhor é o homem do seguro?
- Isso mesmo. Posso entrar?
- Claro, claro.
Entrou na casa e, quando o gordo ficou de costas, sacou a pistola com silenciador. No exato momento em que o gordo se virava, apertou o gatilho. A bala penetrou o peito do gordo, que desabou sobre o tapete. Não havia necessidade de verificar se estava morto.
Saiu da casa com tranquilidade, andando e entrou no carro. Não percebeu que havia uma pessoa na janela da casa da frente. Estava confiante, cheio de si, certo de que cometera o crime perfeito e não se preocupou em verificar a vizinhança.
Pisou no acelerador e abandonou o local. Não viu também, por incrível que pareça, dois garotos, que se encontravam sentados sobre um muro baixo, duas casas mais na frente.
*****
Parou o carro a cinquenta metros do condomínio onde morava. Foi ao orelhão da esquina e efetuou uma ligação.
- Alô. Sou eu. Serviço feito.
- ...
- Não deixei pistas. Pode ficar tranqüilo. Nos encontramos amanhã, no local combinado, ok?
- ...
- Isso mesmo. O serviço saiu perfeito. Sem testemunhas e sem barulho.
- ...
- Tudo bem. Até amanhã.
Desligou, deslocou o automóvel até o estacionamento do condomínio, passando pelo portão, e, minutos depois, já estava no apartamento, tomando um banho.
Depois, viu TV e dormiu.
*****
No dia seguinte, sexta-feira, encontrou-se com seu contratante e recebeu a segunda metade do pagamento.
*****
Sábado, leu a notícia no jornal.
"EMPRESÁRIO HAROLDO VICKOL ASSASSINADO EM SUA RESIDÊNCIA".
Surpreendeu-se com a matéria, pois ali estava escrito que pelo menos três pessoas viram o assassino sair do local do crime. Como?!? Ficou nervoso. Não havia ninguém nas imediações. Seria uma armadilha da polícia? Um trote? Uma pista falsa, apenas para induzi-lo ao erro? Não dormiu direito, pensando nisso.
*****
Domingo, resolveu fazer uma viagem. Afastar-se da cidade até as coisas esfriarem.
Colocou o material necessário numa mochila e saiu do apartamento. Entrou no carro, um Monza verde, e abandonou a área depois das dez horas de uma manhã de sol. Percorreu ruas e avenidas e desembocou na BR. Tinha dinheiro suficiente para passar um mês sem maiores problemas.
Dirigindo, teve a sensação de que era seguido. Fixou os olhos no retrovisor. Por qual daqueles carros? Se parasse repentinamente poderia identificá-lo? Ou estaria apenas ficando paranóico? Era impossível que descobrissem seu paradeiro tão cedo.
Acalme-se! Relaxe e curta sua viagem, pensou.
Estava suando, mas precisava manter o controle.
Respirou fundo e seguiu em frente, tentando não pensar naquelas malditas testemunhas. Conforme o caso, poderia matá-los. Verificaria isso mais tarde.
Chegou naquela cidade praiana exatamente ao meio-dia. Viu o mar, majestoso e imponente, e sorriu, satisfeito.
Conseguiu deixar de lado os problemas e preocupações.
Alugou uma suíte, num hotel duas estrelas, localizado de frente para o mar. Passou a tarde na praia, bebendo cerveja, lendo o jornal (as investigações sobre o crime avançavam) e apreciando as mulheres sensuais, em seus biquínis provocantes. Que vida, que vida!
No final da tarde, cochilou um pouco na suíte, preparando-se para ir a uma festa.
Às dez horas da noite, ouviu o som da campainha.
Ficou tenso! Quem seria?
Colocou a pistola no cós da calça, por trás, e aproximou-se da porta. Respirou fundo e abriu a porta.
Quase desmaiou de susto!
*****
Não era possível!
O morto! O gordo, de bigode, estava ali, vivo, diante dele! Mas... tinha certeza absoluta de que o havia assassinado na quinta-feira!
Trêmulo, entrou em choque!
Não conseguiu sacar a pistola!
Viu diante dele o cano sinistro de outra pistola.
Conseguiu balbuciar, já apavorado:
- Mas... eu m-matei você!... C-como c-conseguiu sobreviver? Como???
- Só quero saber uma coisa: quem o contratou?
O morto falava! Seria um fantasma?
- N-Não posso falar... n-não posso... - disse, assustado.
- Vai falar sim...
O primeiro soco veio forte, recheado de ódio. Foi jogado no chão. Dois dentes quebrados... sangue... dor!... Sabia que estava perdido... e nem conseguiu gritar...
A tortura continuou... novos socos... chutes... agressões... As dores eram cruciantes, espalhadas por seu corpo... agonia... terror...
Em desespero, resolveu contar tudo.
Murmurou, minutos depois, todo ensangüentado, quebrado, estraçalhado e paranóico, porém... curioso... morbidamente curioso:
- D-Diga-me. - tossiu, o sangue saindo da boca - Como conseguiu s-sobreviver? Diga-me! P-Por f-favor... E-Eu preciso s-saber...
Ouviu-se o tiro, abafado pelo silenciador... à queima-roupa...
Morreu sem obter a resposta.
*****
O corpo foi encontrado às nove horas da manhã da segunda-feira, por um dos empregados hotel.
Meio-dia, o investigador Luís Marçal, após tomar ciência da morte, conversava com seu amigo e colega, investigador Pedro.
- Não há dúvidas de que é o assassino do empresário Haroldo Vickol. - dizia o investigador Luís Marçal: - O velho viu ele saindo da casa e os garotos anotaram o número da placa do Monza verde.
- Pois é.
- Pela placa descobri o endereço do sujeito. Sua prisão seria uma questão de tempo. E faço as perguntas: quem o matou? E por que ele usou o próprio carro para matar? Por que não utilizou um carro roubado? Seria excesso de confiança? Burrice? Ironia com nosso sistema?
- Pode ser. Um cara cheio de si, com certeza. Bem, quem o matou levou sua carteira, juntamente com o relógio. E aí? Seria um assalto seguido de morte? Vingança? Acerto de constas? Queima de arquivo?
- Talvez... todas as hipóteses são possíveis. Provavelmente foi apenas coincidência. Um assalto seguido de morte e nada mais que isso. Afinal, aquela região é muito violenta. - sorriu, e completou, de modo maroto: - Não espalhe por aí, Pedro, mas não estou muito empenhado em descobrir que matou esse canalha. - deu uma piscadela para o parceiro - E você?
- Confesso que também não. Bem, pelo menos precisamos informar à família que o assassino do empresário foi morto, né?
- Faça isso, Pedro. Faça isso. E informe a imprensa também. Na verdade, quem quer que tenha assassinado esse crápula, fez um ótimo favor à sociedade. Acho que esse assunto está encerrado.
*****
Segunda-feira, oito horas da noite.
Victor Hermman Lins, moreno, baixo, 45 anos, estava em casa, vendo TV com a esposa. Os filhos estavam na faculdade e os dois viam um filme, em silêncio. De repente, o telefone tocou. Preguiçosamente, Victor levantou-se e pegou o fone:
- Alô.
- ...
- Você tem certeza disso? - disse, baixinho, disfarçando a preocupação, para não despertar a curiosidade da esposa.
- ...
- Acalme-se. Iremos conversar e encontrar a solução para o caso.
- ...
- Agora? Mas...
- ...
- Tudo bem. Tudo bem. Fique frio. Estou indo.
Desligou o telefone e pegou carteira e as chaves do carro. Beijou a esposa.
- Amor, preciso dar uma saída. O Haroldo quer falar comigo, sobre um problema que surgiu na empresa. - mentiu - Volto em uma hora.
A esposa fingiu que acreditava. O casamento deles já não ia muito bem mesmo. Além disso, ela estava ciente das excentricidades do marido e de seu vício por jogatina.
- Tchau. - disse, evitando encará-lo, já sabendo que ele iria sair para jogar com os amigos viciados.
Saiu da casa, de bermuda e camisa meia manga e nem se preocupou em colocar calça. A chata da esposa com certeza pensaria que ele estaria indo jogar baralho. Tudo bem. Um dia iria livrar-se dela de uma vez por todas.
Parou o carro na frente do imenso estádio de futebol, vazio àquela hora.
Saiu do veículo, encostou-se e esperou.
- Victor. - Uma voz se fez ouvir, oriunda da parte escura do estádio. - Aqui.
Seguiu para lá, mas não conseguiu identificar seu interlocutor. Parou a seis metros dele.
- O que houve? - Victor perguntou, ansioso: - O que aconteceu de errado no negócio?
- Você mandou matar seu sócio, Haroldo Vickol, certo?
Assustou-se. Sentiu, de imediato, que algo estava errado. Alguma coisa estranha estava acontecendo. O homem diante dele (imerso nas sombras do estádio) era gordo, completamente diferente de quem ele, a princípio, pensou que fosse. Parecia com...
- Quem é você? O que quer comigo?
De repente, Victor logrou conhecê-lo. E lembrou-se de algo! Sim. Claro! Como não havia pensado nisso?
- Escute, eu...
Ouviu-se o tiro, abafado pelo silenciador.
Desabou, sem soltar um gemido.
*****
Terça-feira, nove horas da noite.
O velho estava na janela e viu aquele carro parar na frente de sua casa. Morava só, mas tranqüilizou-se, ao ver quem se aproximava de sua janela.
- Boa noite, seu Nestor. - disse o homem.
- Boa noite, filho. - respondeu o velho.
O homem acercou-se da janela.
- Quer entrar? - o velho convidou, solícito.
- Não, obrigado. Estou com pressa e vim somente para agradecer ao senhor pelas informações que me prestou. Elas foram muito úteis. Também conversei com os garotos e eles colaboraram bastante.
- De nada, filho. Não gostei de saber que aquele homem mal-encarado, que usava um terno tão feio, havia assassinado seu irmão. Não era justo.
- Meu irmão gêmeo, seu Nestor. - disse o homem gordo, triste, alisando o bigode: - Meu irmão gêmeo... Justamente o mais querido de todos os meus irmãos...
FIM
Joderyma Torres
Enviado por Joderyma Torres em 22/11/2005
Reeditado em 08/05/2006
Código do texto: T75076
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