A GAVETA DAS MEIAS (IV Desafio Recantista/2009)

A GAVETA DAS MEIAS

Meio dia, o sol na cabeça e a cena terrível bailando frente aos olhos. Distraída, pulou e tentou alcançar a miragem. Pisou no limo de uma poça. O galo doendo na cabeça.

Marina tomou a sopa com gosto e cheiro de naftalina. O pedaço de carne lhe pareceu uma velha e cascuda barata que corria na sua direção sempre que se aproximava da cômoda.

Tinha dez anos de idade quando a mãe contou que o velho móvel era uma herança da bisavó. Todo santo dia Marina recebia avisos sobre a sacralidade do objeto antigo. Nada de tentar abri-lo.

_Que tem nas gavetas, mamãe?

_Nada que interesse a você.

_Diga de uma vez só e não pergunto mais, mamãe.

_Nem eu mesma sei, se soubesse não diria. É segredo das mulheres da família. Cada uma recebe a chave da anterior e tem que escondê-la e esquecer.

_Minha avó esqueceu?

_Sim, eu também. Nem precisa perguntar, já dei a resposta.

_Mas...

_Nem mas, nem porém, nem todavia.

Marina procurava pelos mais impossíveis cantos da casa. A chave era o maior desejo de sua curiosidade. Sonhava, falava durante o sono, gritava:

_ A chave, achei a chave!

A mãe no outro quarto gritava:

_Nãooooooooooooooooooooooooooooooo. A chave nãoooooooooooooooooooooooooooo!

Quinze anos, um festão de dar inveja nas amigas e Marina só pensava em descobrir o que havia naquele móvel escuro e sofisticado. Um belo dia, varrendo a casa, viu por baixo da última gaveta uma meia com a ponta pendurada lá no fim, perto da parede. Puxou com muita força. Que susto! A meia gemeu!

Marina teve o primeiro namorado, noivou, casou, engravidou e não parava de pensar na gaveta e no gemido da meia. Como, meu Deus, resolver de vez essa consumição?

Quando levava o filho nos fins de semana para visitar a avó, Marina aproveitava para observar se algo novo havia acontecido no reino da cômoda misteriosa. Carlinhos entrava direto para o quarto e ficava chutando as fechaduras. Pensou avistar a gaveta levemente entreaberta. Impressão. A única novidade era um monte de baratinhas francesas passeando nas bordas superiores e estragadas da mobília. Não sabe o que são baratinhas francesas? São aquelas até engraçadinhas, loirinhas. A gente nem sente nojo dessas. Parecem cheias da luz do sol.

Aproveitou a mãe fazendo a quiabada e se abaixou para ver se a meia continuava lá. O susto foi maior ainda. A meia sumira. Lá, pendurado no lugar, da meia estava o dedão de um pé cruzando e coçando sobre o segundo dedo. Pegou o menino, inventou uma coisa qualquer e não ficou para o almoço. Viu as caras da avó e da bisavó no reflexo da poça cheia de limo.