O Enterro

Participar de um enterro é uma das inúmeras situações impostas pela vida. Mesmo que você fuja dos “obrigatórios”, de parentes ou amigos, do seu não dá para fugir. A não ser que opte por ser cremado... Mas de qualquer maneira sempre há um ritual, só que ao invés de ir parar embaixo da terra, o vento te leva pra algum lugar. Nunca tinha visto alguém ir a um enterro por curiosidade ou até mesmo por falta do que fazer, até conhecer Astrogildo. O que importa aqui não é saber quem é Astrogildo, mas sim o que ele presenciou.

Ele estava em mais uma das suas diversões mensais, o enterro de uma autoridade local. A viúva chorava ao lado do caixão e de meia em meia hora chegava alguém vestindo um terno preto e formal e a cumprimentava. Pela quantidade de pessoas que se aglomeravam, devia ser alguém muito ativo politicamente falando. Fizeram até um discurso, complementando as palavras do padre que encomendou a alma. Depois de um longo velório, seguiram para o local onde seria enterrada a figura pública. Que o homem a ser enterrado era uma autoridade foi uma conclusão de Astrogildo após longas conversas com as pessoas do velório. Essa era a diversão dele. Ouvir sobre o quanto a pessoa era querida, o quanto faria falta, todos os seus feitos, a situação da morte...Ele se interessava particularmente por casos criminais não resolvidos, mas esse não era o motivo da morte nesse velório em questão: a autoridade tinha apenas infartado durante uma noite de sono. Morte muito tranquila para o nível de interesse de Astrogildo. Foi então que, perdido no “tédio” desse enterro, Astrogildo começou a observar o que acontecia ao seu lado, mais precisamente no enterro ao lado.

No início, parecia um enterro normal, as pessoas choravam, rezavam, jogavam flores e, depois de enterrado o “defunto”, partiam. Quase todos partiram quando foi finalizado esse ritual, exceto três homens. Eles permaneceram em silêncio, olhando para a lápide durante muito tempo. Tanto tempo que o enterro que Astrogildo acompanhava acabou, todos foram embora, e ficou só ele, observando os outros três em pé, junto à lápide. Isso despertou uma curiosidade sem tamanho em Astrogildo. De longe, ele não poderia ouvir nada... Mas quando pensava em ir embora, sentia uma comichão nos dedos insuportável e mudava de ideia. Ia se aproximando pouco a pouco. Mas a vontade era se juntar aos três. Foi se aproximando até chegar ao lado de uma lápide que, de tão perto dos três, dava para ouvir a conversa. Astrogildo ficou então lá parado, como se estivesse rezando e lamentando a partida de alguém e estrategicamente ouvindo toda a conversa.

Um dos três estava com um terno muito elegante cinza escuro, era um pouco grisalho, aparentando idade próxima aos cinquenta anos. Outro estava vestido de forma descontraída, nada adequada para a ocasião: calça jeans, tênis e camiseta branca. Astrogildo imediatamente pensou na indelicadeza e falta de polidez desse rapaz em não separar uma vestimenta adequada, afinal ele participava em média de uns cinco ou seis enterros por mês e mesmo sendo de pessoas desconhecias, reservava uma parte inteira do seu guarda-roupa com modelos apropriados, em tonalidades escuras e sóbrias. O tal homem despojado aparentava ter um pouco menos idade, talvez uns quarenta anos. O terceiro estava com um sobretudo preto, fechado, e tinha uma longa barba. Estava mais difícil de descobrir a idade dele, então Astrogildo chutou uns sessenta. Por mais meia hora os três permaneceram em silêncio. E Astrogildo se manteve lá, em pé, na expectativa de desvendar porque aqueles três continuavam idolatrando o morto, ou morta, afinal nem isso ele sabia. Até que o silêncio finalmente se rompeu:

– Que mulher linda Sofia foi, não é verdade? Quando era jovem não havia quem não se virasse para observá-la cada vez que passava. Arrumada, imponente, uma mulher de personalidade – disse o homem de sobretudo, o que aparentava ser o mais velho de todos.

– Caso tivesse sobrevivido ela ficaria bonita, estava ficando encorpada, os cabelos começando a crescer... - finalizou o mais jovem de todos, de roupa descontraída.

O grisalho elegante assentiu com a cabeça concordando, mas permaneceu calado. Astrogildo foi ficando cada vez mais curioso. Tentava se aproximar para ouvir com precisão o conteúdo da conversa.

– Agora que ela se foi, percebo que nunca a entendi, nunca descobri como ela foi verdadeiramente. Nunca prestei atenção em suas vontades, nunca a escutei com o coração. Acabava concordando, fingindo que prestava atenção, mas a verdade é que sempre pensei em meus problemas, estava sempre voltado para mim – falou o homem mais velho.

–Ela seria ainda mais culta e sábia se tivesse sobrevivido. Quantas coisas ela tinha em mente e não conseguiu realizar... Quantas viagens, aquela exposição de pintura que ela não fez, o livro que escreveu mas não publicou, o sonho de morar numa casa que também não realizou – completou o mais jovem.

Astrogildo ficou na expectativa de ouvir algo do grisalho elegante, mas em vão... Ele permaneceu em silêncio, como se não tivesse nada a dizer ou como se nada tivesse vivido. E isso deixou Astrogildo ainda mais intrigado. Por que ele estaria ali se não tivesse vivido nada com ela? Como ter uma página em branco com uma pessoa tão intensa, assim como os outros dois a descreviam? Afinal, Sofia parecia ter sido uma mulher muito especial. Bela, com certeza, culta, o tipo que sabe o que diz e a hora de dizer. Quantos anos teria essa mulher? – se perguntou – e quem seriam esses três homens na vida de Sofia, tão dedicados, parados em sua lápide, mesmo depois do seu enterro?

Astrogildo tentou deduzir o que estaria acontecendo e logo pensou que o mais velho seria o pai, o cinquentão o marido, companheiro, namorado... E o mais jovem dos três, quem sabe um irmão, um amigo. De tudo que ele havia escutado, ainda não dava para ter uma pista de quem seria Sofia, sua idade, se era casada ou não... Mas tinha escutado o suficiente para aguçar sua curiosidade e interesse. Seguiu-se mais um tempo silencioso e logo recomeçaram.

– Eu queria sinceramente uma chance de voltar ao passado e poder fazer Sofia feliz. Se Deus me desse uma única chance, eu faria tudo diferente. Prestaria atenção na mulher que ela foi, tentaria ouvi-la, ser mais paciente, daria mais valor ao que eu tinha – disse o mais velho.

–Eu não tive essa oportunidade. Acho que seríamos sim um belo casal, mas acabava empurrando pra depois. Nunca imaginei que o tempo fosse ser tão ingrato, gostaria de ter vivido muitas coisas com ela, sonhava em viver, mas nunca vivi – disse o mais jovem.

Esse foi o último diálogo que Astrogildo conseguiu ouvir. O grisalho permaneceu calado: sem ter nada a dizer, sem conseguir se expressar, olhando para o nada. Como se não houvesse presenciado o mesmo tempo dos outros dois, a mesma Sofia. Um negligenciou o passado, lamentou o que não viveu. O outro vivenciou uma expectativa de Sofia, algo que seria, lamentou o que poderia ter vivido, mas igualmente não viveu... E o homem da faixa-etária em torno dos quarenta simplesmente se calou...

Começou então a ventar muito forte, anunciando uma grande tempestade pela frente. Astrogildo olhou para o céu, certificando-se do tempo que ainda poderia ficar ali, antes da tempestade começar. E quando olhou novamente para o lado, não havia mais ninguém junto à lápide de Sofia. Nenhum dos três. Ele ficou triste, pois não conseguiu obter muita informação. Mas ao mesmo tempo, agora, poderia se aproximar da lápide. E foi o que ele fez, com passos de quem está prestes a desvendar um dos mais complexos mistérios do mundo, foi se aproximando e finalmente conseguiu estar cara a cara com a lápide de Sofia. Simples, com poucos dizeres... Astrogildo apertou bem os olhos, na tentativa de obter uma lubrificação milagrosa que fizesse com que ele lesse aquelas letras minúsculas. Em vão... Então se ajoelhou e foi se aproximando até que seus olhos e mente conseguiram ler os dizeres:

“Aqui jaz Astrogildo, homem que vive no passado, esquece do presente e por isso nunca realiza o futuro”.

Anoushe Duarte
Enviado por Anoushe Duarte em 24/05/2011
Reeditado em 24/05/2011
Código do texto: T2989955
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