O resgate

Deixei Brasília, onde moro, e fui à cidade onde nasci, Sabará, a 25 quilômetros da capital mineira. Passei toda a minha infância entre torresmos e tutú de feijão, serras e cachoeiras, casarões e igrejas históricas. A cidade, originária de um arraial de bandeirantes, está repleta de igrejas do século XVII e isso sempre me fascinou, desde criança. O que me encantava não eram as obras de Aleijadinho — foco principal de todos os turistas — nem tampouco as austeras fachadas e os exuberantes tronos rococós. O que mais me encantava eram as histórias...

Entrei em uma das igrejas, onde havia sido celebrada uma missa e as pessoas estavam saindo. Em seu interior, restaram poucos fiéis e entre eles uma senhora que me chamou atenção. Parecia ter idade próxima dos 80 anos, ajoelhada aos pés de Nossa Senhora, rezando o terço, quiçá o rosário. Na cabeça, uma mantilha espanhola cobrindo o rosto enrugado, um pouco manchado dos muitos anos de sol. O corpo já curvado, as mãos castigadas pela artrite, os dedos rápidos, intercalando as contas de dez ave-marias e um pai nosso.

Realizei uma verdadeira peregrinação pela igreja: orei no altar, observei a nave, seus arcos sustentados por pilastras, a luz natural que atravessou seus janelões e iluminou seu interior. Parei em frente às feições fechadas de seus santos, apreciei suas pinturas fúnebres, resquício talvez de uma capela mortuária de outrora. Foi quando resolvi observar a tal senhora mais de perto. Gostei de vê-la tecer as contas do terço, ora olhando com fervor para o altar, ora desviando o olhar para um horizonte imaginário perdido... Quais seriam suas aflições? Comecei a me questionar... Ou seria apenas um hábito orar com tamanho fervor? Sentei-me no banco de trás e fiquei ali perdido em meus pensamentos, tentando adivinhar os dela. Quando dei por mim, já havia se passado uma hora. Fiz menção de me levantar e ela se virou. O seus olhos gentis me fitaram... Ela se levantou e se virou completamente em minha direção. Confesso que não esperava isso. Esperava menos ainda que seu rosto me fosse tão familiar. Não sei, algo em seu olhar, algo na maneira como seus lábios se movimentavam para balbuciar uma frase tão simples:

— Hã? Desculpe-me. O que foi mesmo que a senhora perguntou? — indaguei.

— Vamos dar uma volta pela cidade? Foi isso que eu perguntei — ela respondeu.

— Mais uma vez eu peço desculpas, conheço a senhora? — perguntei intrigado com a forma direta com que ela me abordou.

— Não gostaria de me acompanhar a um passeio pela cidade ? — disse a senhora, desconsiderando minha pergunta.

Achei que poderia ser pouco gentil de minha parte, ou até mesmo grosseiro, negar-me a dar uma volta com uma dama. Estendi o braço sinalizando que havia aceitado o convite. Saímos pelas ruelas e becos da cidade. Caminhávamos com certa dificuldade, própria de um senhor com 84 anos, acompanhando uma senhora que deveria ter certamente mais de 70, e intensificada pelas ladeiras calçadas de paralelepípedos. Quando me vi envolto em um misterioso passeio com uma desconhecida, os casarios e igrejas que eu tanto apreciava em minha infância perderam seu encanto... Fui conduzido por todo o percurso, que durou apenas dez minutos, mas que me pareceram uma eternidade. O silêncio só foi rompido quando uma criança passou por nós correndo, descuidada, e quase nos atropelou.

— Cuidado, menino! — disse a senhora. — Esses meninos são tão descuidados... — completou.

— A senhora tem razão — afirmei. E já que o silêncio entre nós havia sido rompido, arrisquei lançar a mesma pergunta — Mas me desculpe, mais uma vez pergunto, de onde mesmo a conheço?

— Por que você acha que me conhece ? — ela me devolveu a pergunta.

— Não sei... a senhora me parece conhecida. Mas realmente, deveríamos nos apresentar, sou Marcos, muito prazer — disse.

— Eu sei quem você é — respondeu a senhora.

— De onde a senhora me conhece? Realmente a sua fisionomia não me é estranha. Mas não me lembro do seu nome — insisti.

— Nome... Que diferença faz um nome?

Pensei que era besteira insistir que ela me dissesse um nome. Deixei as apresentações de lado e continuei a observá-la. O seu olhar e agora a sua voz realmente me pareciam conhecidos. Continuamos caminhando e um turbilhão de perguntas me passou pela cabeça. Percebi que a senhora não estava muito receptiva a conversas. Ela continuava me conduzindo a algum destino que só ela sabia e eu decidi acompanhá-la sem externar minhas indagações.

Chegamos a um casarão no final de uma rua. Portas e janelas estavam fechadas. Nesse momento, ela parou. Parou e, sem se dirigir a mim, bateu na porta. Como não houve resposta, ela deu um leve empurrão e a porta se abriu, não estava trancada. Entrou e eu a segui. Passamos por um longo corredor e chegamos a um amplo salão. Havia uma mesa de jantar com doze lugares, móveis antigos, baixelas de prata, um belo baú e um maravilhoso lustre de cristal. Aparentemente a casa estava vazia. A senhora apontou para um móvel antigo e dirigiu-se até ele fazendo menção de sentar-se. Eu a ajudei e me sentei confortavelmente ao seu lado. Apesar de estar com uma total estranha ao meu lado, me sentia bem. Até mesmo em relação aos objetos. Parecia realmente que eu já havia estado naquele lugar, com aquela senhora. Permaneci imerso em meus pensamentos e fui interrompido pelas badaladas de um antigo relógio carrilhão de parede. Soaram quinze badaladas. Pensei que o relógio estava maluco, impossível já serem três horas da tarde! Afinal, eu havia saído para passear pouco depois das dez da manhã. Lancei o olhar para os ponteiros e realmente marcavam três horas da tarde. Eu rompi o silêncio e perguntei:

— Onde estamos?

— Não se lembra de mim, meu bem? — ela respondeu com firmeza.

— A senhora não me é estranha... mas não consigo me lembrar com clareza. Também me sinto em um ambiente familiar, mas não consigo achar correspondência com o meu passado. Estou confuso...

A senhora pegou em minhas mãos. Uma angústia repentina me arrebatou. Fechei os olhos e comecei a acariciar suas mãos. Retroagi anos em minha vida. Vi-me novamente jovem, ao lado de Tereza, meu grande amor. Voltei no tempo e no espaço porque o cenário já não era Sabará e sim o meu apartamento, na Brasília da década de 70. Conheci Tereza em Sabará na década de 60. Casamos e, dez anos depois, mudamos para a jovem capital. E agora a via claramente, linda! Tereza era uma mulher sensual, gentil, doce... Estava cozinhando... Ela adorava cozinhar. Embora fosse muito atrapalhada — as mãos marcadas por cortes e queimaduras evidenciavam isso — , preparava pratos deliciosos: carnes, frango, peixes, massas... o que fosse. O tempero era especial... O tempero de sua comida e também o seu próprio tempero...Ela era uma mulher temperada: um pouco de pimenta nos dias calorosos, uma suave pitada de sal para os momentos insossos, um pouco de água fria quando era necessário recuar e pinceladas de mel para adoçar a vida... Essa era minha Tereza. Eu não soube valorizar sua dedicação por mim. No dia em que ela morreu, cerquei-me de justificativas para ir ao encontro da paz dos justos. Mas o tempo me mostrou que não merecia essa paz... Porque errei com ela e ponto final. Perdi o meu amor, a minha guia... Era ela quem sempre me resgatava quando eu me sentia perdido e sufocado pelas pressões da vida, pelas pressões de mim mesmo. Abri os olhos repentinamente e novamente estava em frente àquela senhora desconhecida. Novamente as mãos enrugadas envolvendo as minhas. Eu quis perguntar algo e ela levou o dedo até a boca, pedindo silêncio. Agarrou minhas mãos e mais uma vez eu embarquei naquela viagem pelo tempo e espaço. Vi meus filhos brincando, vi meus filhos crescidos... Percebi um lapso entre a infância e a vida adulta do qual eu não participei. Agarrei mais forte aquelas mãos enrugadas, — sua pele fina me remeteu ao cheiro de fraldas e óleo de bebês que não senti, a brigadeiros de festinhas de crianças e pirulitos que não dividi, a conversas que não tive, a viagens que não fiz, a pessoas que não conheci: meu próprios filhos. Abri os olhos porque comecei a não suportar aquele confronto tardio e voltei ao mesmo cenário de Sabará. Comecei a temer o que viria no próximo fechar dos olhos...

Ouvi novas badaladas no relógio, quebrando a reflexão... Percebi também um antigo oratório, talhado em madeira, cheio de santos... Quis orar... Quis acender velas, desejei voltar ao passado e construir uma nova história, uma história da qual eu estivesse presente, da qual eu pudesse ser protagonista. Fechei os olhos. Continuei a sentir o toque macio daquela senhora, sua mão a percorrer meu rosto, apalpando meus olhos, bochechas. Primeiro com a palma da mão, depois com o seu verso roçando minha barba por fazer. Voltei ao cenário de Brasília. Mas agora ao cenário atual: sem Tereza, sem meus filhos, sem a euforia dos primeiros moradores de uma capital que acabava de nascer. Somente a minha solidão. Reconheci minha quadra, andei um pouco, reconheci o porteiro do meu bloco e confesso que me senti sem forças para tentar entender o que estava acontecendo. Reconheci então, sentada em um banco da calçada, a mesma senhora de Sabará. Pensei que talvez estivesse sonhando, ou seria um surto psicótico? Eu me aproximei. Ela se virou e com um sorriso nos lábios disse a mesma frase de quando a encontrei em Sabará.

— Posso acompanhá-lo?

— Como? — eu respondi surpreso.

— O senhor não gostaria de me acompanhar a um passeio pela cidade? — ela perguntou.

Estava sem forças para dizer não. Senti meu coração apertado, sufocado, implorando por um guia. Implorando para que alguém pensasse por mim ou freiasse meus pensamentos angustiantes, exauridos neles mesmos, como um incêndio abafado pelas próprias chamas. E ela me pegou pelo braço e me guiou. Passamos em frente ao porteiro que pareceu não nos ter visto. Engraçado — pensei — ao menos um aceno ele sempre dava. Depois passamos por um casal acompanhado de duas crianças — eles passaram por mim felizes, brincando entre eles, sem notar a minha presença, sem conseguir me enxergar, eu era apenas um vulto. Lamentei ter sido apenas um vulto na vida de minha família. De Tereza e de meus filhos que hoje nem sentem vontade de me ver porque retribuem a natural ausência do pai por toda uma vida. Não me fiz notado porque vivi muito tempo sem notar os outros, nem o próximo. Sem notar a mulher surpreendente que era Tereza, sem perceber meu filhos crescendo, tornando-se adultos sem a minha participação, porque a única preocupação que tive foi comigo mesmo. Será que em algum momento eu acordaria e a vida me daria uma segunda chance de viver melhor? Ainda haveria tempo?

Continuei caminhando com a senhora, torcendo para que tudo fosse um pesadelo... Subimos pelo elevador, sem perguntar nada a acompanhei até meu apartamento. Paramos em frente à minha porta. Estava destrancada e ela a empurrou. Ela pegou novamente em minhas mãos e me conduziu ao meu quarto. Eu me deitei na cama e fixei meus olhos em um crucifixo preso na parede. Percebi que ela deitou-se ao meu lado. Segurou minhas mãos e momentos antes de eu adormecer, arrebatado pela embriaguez do sono profundo, reconheci novamente um olhar familiar. Ela me abraçou... Deu-me um abraço que me despertou do transe, senti uma descarga elétrica de emoções: paz, angústia, leveza, medo, perdão... Era ela a me resgatar, a me guiar, como antigamente... Anos sem ver Tereza e agora ela estava novamente ali... Sim... Aqueles olhos eram como os dela... Sim, só poderiam ser de Tereza.

Em um domingo, um casal folheava a parte local dos acontecimentos em Brasília e o marido comentou com a esposa.

— Querida... Olha só quem está aqui no jornal. Não é aquele senhor, nosso vizinho de bloco?

— Você tem razão amor... É ele mesmo. O que diz a notícia?

— Diz: "Encontrado morto em sua cama, Marcos Antônio Liz, 84 anos. O porteiro encontrou o corpo quando foi fazer uma entrega no sábado pela manhã e se deparou com a porta aberta." — O curioso é que o repórter diz que ele morreu sorrindo.

— Engraçado, ele sempre pareceu ser um homem muito solitário e triste.

— Parece que era mesmo. Dizem que ele teve uma esposa, casaram-se quando ainda moravam em Minas — mas ela faleceu. Faleceu aqui em Brasília, ela morou por um tempo aqui com ele e os filhos. Dos filhos ninguém sabe o paradeiro... Desde a morte da esposa, comenta-se que ele nunca mais foi o mesmo...

— Por isso eu percebia que ele nos olhava com certa tristeza no olhar... Às vezes parecia invejar nossa felicidade, não uma inveja ruim, mas aquela de querer ter para si também...

— Várias vezes eu percebi esse olhar... Mas não me parecia apenas um olhar de saudade. Havia algo mais: a tristeza dos que lamentam não ter feito a sua parte, dos que ficam no "se", dos que desejam que a vida lhes ofereça uma segunda chance.

Anoushe Duarte
Enviado por Anoushe Duarte em 20/06/2011
Código do texto: T3046597
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