AMOR E MALDIÇÃO DE MIRINDIBA - Reconto

No alto daquele monte

Do Bom Senhor do Bonfim

Há um conto, mas não conte

Sem antes ouvir de mim.

Na verdade o conto é fato,

Apesar da presunção

Dos que dizem ser boato;

Coisa da imaginação.

Ainda um tanto deserto;

Não demais pra quem tem pé,

Esse monte fica perto

Do coração de Magé.

A cidade aqui citada,

Saiba logo por inteiro,

É mais uma da baixada

Do meu Rio de Janeiro.

Mas voltemos nesse ponto,

Sem nenhuma nova emenda,

No qual vim contar um conto

Não bem conto; não bem lenda:

Lá no alto, em tempos findos,

Talvez pré-coloniais,

Habitavam índios lindos

Como dizem não ter mais...

E naquela tribo inteira,

Nem por sonho, por chilique

Tinha índia mais faceira

Que a caçula do cacique!

Mesmo assim, nenhum rumor

Ou indício de amargura...

Todos tinham grande amor

Por quem era só ternura!

Mirindiba tinha o dom

Do sorriso meigo e franco,

Exalava um cheiro bom

De jasmim com cravo branco...

Uma voz de mansidão,

Um olhar de graça e bem,

As virtudes do perdão

E da paz... de muito além!

Mas um dia, era uma vez,

Por caprichos de viagens,

Eis que um jovem português

Parou naquelas paragens.

Por maior capricho ainda,

Quem o viu, fez-se notada

Foi a índia pura e linda;

Meio anjo e meio fada.

Ela, encanto. Luz. Magia.

Ele a imagem da imponência;

Da elegância; simpatia.

Ousadia com prudência.

Um olhar... Primeira vista;

Pés perdendo-se do chão,

E nenhum dos dois despista

Os arroubos da paixão...

Incontido abraço forte,

Beijo ardente, de fogueira,

Como se a sugar sorte

Pra torná-la prisioneira!

... Entretanto, como a vida

Conspira e pede recibo,

Mirindiba é prometida

De um belo índio da tribo...

E como se fosse pouco,

Por tantos outros motivos

Combinou-se um plano louco

De mais encontros furtivos...

Fugiriam quando a hora

Fosse própria para os dois,

pois o moço iria embora

Bem pouco tempo depois.

Deveriam tê-lo feito

Bem depressa... precavidos...

Segredo é rio de leito

Na direção dos ouvidos.

Ninguém sabe de qual fenda,

Qual cipó, riacho, poça

Quem viu algo e fez contenda

Com o pai da índia moça!...

De repente a preferida,

Detentora de atenções

Não achava mais guarida

Em nenhum dos corações!

A tribo inteira ciente

Do romance proibido,

Nem queria pela frente

O rosto antes querido...

Quando ao pai, sofrendo e triste,

Com vergonha e frustração,

Diz à filha; dedo em riste,

A seguinte maldição:

Se voltasse a procurar

Seu amado português,

Morreria no lugar

Dessa derradeira vez...

Explicou que o índio moço,

Seu esposo antecipado

Tinha o peito em alvoroço,

Mas ainda apaixonado...

Mirindiba, lábio mudo,

Sem revolta nem prazer,

Com respeito ouvia tudo;

Bem sabia o que fazer...

Preparou-se a tarde inteira;

Solitária, triste, fria,

Prá partida sorrateira

Na madrugada vazia...

Seu pai caíra num sono

De segurança rochosa,

Por duvidar do abandono

Da caçula preciosa...

Porém tudo estava pronto.

O casal traçou a sina;

Partiria lá do ponto

Mais deserto da colina...

... A índia chega mais cedo

Do que o senhor do seu mundo;

Mais cansaço do que medo

Resulta um sono profundo...

... O moço chega mais tarde...

Ao ver que a moça descansa

Pisa leve; sem alarde...

Parecem passos de dança.

Entretanto é coisa urgente.

Não pode haver mais demora.

Ele a chama docemente,

Porque logo surge aurora...

Mirindiba não desperta.

Fica tenso, o português...

Em estado então de alerta,

Chama outra e outra vez...

Desespero! Angústia! Dor!

Chora, grita, geme a vulso

E confere com pavor

A respiração e o pulso...

Era o fim do mal começo;

Ingênua e triste ambição:

Não pagar um alto preço

Pelo amor de maldição...

Mas até depois da morte,

O mais puro sentimento

Vence as garras da má sorte;

Não aceita impedimento:

Corre o tempo, é quase dia,

Nem percebe o moço agora,

Uma chuva intensa e fria

Cai do céu como quem chora...

Eis que a chuva, docemente,

Naquela espécie de altar,

Transforma o corpo em semente

Já começando a brotar...

Raízes descem ao chão...

Irrompe um tronco, a folhagem

Reveste os galhos... versão

Da mais incrível miragem:

Rapidez de raio ou jato!

Mirindiba, deslumbrante,

Reina sobre a selva! O mato!

Sobre seu amado amante!

Ela o suga: Corpo. Alma.

Ele cede... quer assim.

Vai feliz, com doce calma,

Pra viver amor sem fim...

... Na manhã do dia novo,

Uma árvore formosa

Vira símbolo de um povo

Que a cultua em verso e prosa...

Sua espécie indefinida

Entre a flora do lugar

É a saga de uma vida

Castigada por amar.

Essa história rompe os véus

Das distantes, longas datas,

Porque sempre teve os céus

Como testemunhas natas...

Lavro, atesto e lhe dou fé.

Não duvide; creia em mim!

Mirindiba é de Magé...

É do morro do Bonfim.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 17/10/2011
Código do texto: T3282294
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