Sonho

Nós temos aquele tipo de sonho que não sabemos como começou e como fomos parar naquele local debaixo de um poste de luz solitário em uma esquina vazia de um cruzamento e em uma noite tão escura que não se sabe aonde as ruas vão parar. A escuridão ao redor era como uma parede que não me permitia me movimentar, mas o cheiro de mijo no muro atrás de mim me dava náuseas e eu quis atravessar a rua. Quando meu pé atingiu o asfalto, ele estava molhado, na verdade, o asfalto era água ou poderia ser água. Era um líquido viscoso e negro que pregou no meu pé e dificultou minha travessia.

A outra esquina era negra com uma placa de pare alvejada diversas vezes por balas. Aqui a luz era tão pouca que até dificultava a respiração. Era como se, ao me distanciar da luz, saísse da própria vida de me corpo. E aquela escuridão que se engrossava a medida que as ruas seguiam para longe eram, ao mesmo tempo, chamativas e aterradoras. Estava incomodado com aquele sonho e queria acordar, mas como acordaria de um sonho? A televisão mostra diversas formas, mas nenhuma realmente funciona, pois nunca se sabe se se sonha ou se está acordado. Nem se pensa nisso, aliás, nem se dá tempo de pensar em um sonho, pois o pensamento cria, no sonho, mais o que sonhar.

Uma menina, devia ter uns 10 anos, de cabelos negros em maria-chiquinha, amarrados com laços rosas, de repente, apareceu do meu lado. Mas não me assustei, pois a aparição não foi surpresa para mim, era como se estivesse ali o tempo todo. Ela me olhou e não tinha rosto e se tivesse, talvez, não a reconheceria, mas a ausência de rosto me perturbou, pois me sugava para a cara dela que parecia uma imagem borrada. Ela me disse que aquela era a esquina dela e apontou para a placa de pare. Lá estava escrito pare, mas ao ler eu entendi que era a esquina dela e fui para a próxima esquina, a mais distante da luz. Cada passo no asfalto pegajoso me enojava e então corri, mas ao correr eu senti que somente empurrava o asfalto para trás sem sair do lugar e então pulei.

Não usei muita força no pulo e soube que não pulara alto, mas demorei para cair por quase dez minutos. Sem sentir quando o chão tocou meus pés, estava em pé em uma sala com apenas uma revista no chão. A sala tinha o chão vermelho, mas não tinha paredes, ou tinha, mas não as conseguia ver. Apenas sabia que era um lugar fechado e iluminado por nada, mas tão claro que ofuscou minha visão. A revista era uma Times com a foto do Lula abraçado ao Obama em um show qualquer. O primeiro estava com a gravata amarrada na cabeça, de olhos fechados e com a língua para fora como se estivesse drogado. O segundo estava usando um terno e tinha a cara de sério como no dia que anunciara a morte de Osama Bin Laden. Eu soube automaticamente que a revista tinha um conteúdo bastante interessante e podia ler todo seu conteúdo, mas sem realmente saber o que estava ali escrito.

Um gato de turbante e barbado como o terrorista me falou que era mentira e, novamente, não me surpreendi com seu aparecimento, pois me parecera natural que sempre estivera ali. Perguntei o que era mentira e, dessa vez o próprio Osama respondeu que ele não tinha morrido tomando lugar do gato. Perguntei a ele o que acontecera então e ele simplesmente pegou uma AK-47 e falou que todos tinham comemorado naquela noite. Voltei minha atenção à revista e a capa era outra. O presidente Obama estava rindo vestido uma fantasia barata de diabo. Quando comentei o quanto malfeita era a fantasia, o terrorista já tinha a face de um velho amigo meu da escola e riu abertamente.

Virei-me e estava novamente no cruzamento olhando o poste da esquina mais escura. Estava comigo um índio vestindo plantas e penas e soube que era maia. Perguntei para ele se o mundo realmente iria acabar e ele respondeu que sim, mas somente durante o carnaval, depois tudo iria ficar bem. Então me deu uma espada de pedra negra mal esculpida e pediu para dançar. Eu ri da cara dele por algum motivo. Ele, de repente, parecia ser muito engraçado e eu não pude parar de rir. Foi quando caí no asfalto e mergulhei na negridão pegajosa.

Tentando me erguer para fora, subi para a última esquina e meu professor de química estava lá. Perguntou-me por que eu estava coberto de sangue e só então percebi que a rua pegajosa era feita de sangue. Um cheiro de ferro, na verdade de sangue, que me lembrou o seu gosto, tomou conta do ar e eu até que gostei de estar ali. Sentei-me em uma carteira e tentei fazer uma prova que o professor me dera. Tentei decifrar códigos baseados em fórmulas químicas que me dariam o segredo das bombas nucleares e foi fácil uma vez que entendi que o símbolo Na2M14 se referia a um tipo de objeto radioativo que eu guardava na minha carteira. Nem mesmo escrevi e já estava em cima da bomba atômica, ou uma parecida, que jogaram em Nagasaki. Havia uma pequena abertura, como um local para se colocar pilhas, onde coloquei o objeto radioativo, que era a barra verde e brilhante da entrada dos Simpsons.

Não sei por que, mas assim que tive a bomba pensei que poderia completar meu objetivo e jogar ela na menina sem rosto e tomar a esquina da placa pare de volta. Carreguei a bomba sobre a minha cabeça como se ela não tivesse peso e nadei somente com a força de meus pés pelo sangue até a menina. Ela me olhou e tinha o rosto como um personagem de animação japonesa, com olhos grandes como o gato de botas do filme Shrek pedindo para não jogar a bomba. Ainda assim joguei e ela explodiu em um cogumelo trazendo um vento quente para o meu rosto. Subi na esquina novamente e a placa de pare havia sumido. As exatas palavras: “Não quero mais sem a placa” ressoaram em minha cabeça como se eu tivesse pensado aquilo e voltei à esquina com o poste.

Ainda cheirava a mijo e a luz dele começou a piscar. E piscou cada vez mais rápido até apagar. Pouco tempo depois de apagar ouvi marchinhas de carnaval. Não demorou e a luz acendeu novamente e nada havia mudado. Sentei apoiando as costas no poste e percebi que não era um sonho e que não poderia acordar. Sem saber, pedi para o índio maia para limpar o muro, pois estava fedendo demais.