VI

          O ESPÍRITA
 
           Ao som de “Moon Nigth Serenada” de Bethovem, confesso que, pela primeira vez, pensei em ouvir uma historia de algum amigo do outro mundo. Não gosto deste tipo de invocação ou pensamento como queiram, mas há momentos em que isto aflora dentro de nossa alma e quase que por impulsão atípica nos vemos concentrados, com a mente voltada para tal desejo.

           Não é curiosidade em saber o que ocorreu com fulano ou beltrano em passados avatares pela simples curiosidade. É mais, muito mais do que isso; é, também, interesse em aprender alguma coisa, ter a oportunidade - e não deixá-la passar- de compartilhar o aprendizado com alguém que porventura venha a ler estes estranhos contos que me soam aos ouvidos, vez por outra, e, por que não dizer por meu próprio interesse. Afinal, se muitos não crêem em vidas sucessivas eu, por motivos mais que pessoais tenho certeza delas.

       Segundo sei, desde sempre, se uma apenas, dentre tantas historias surtir algum efeito e modificar a caminhada de alguém que se afasta do rumo norte traçado, sentir-me-ei recompensado pelo tempo despendido na oitiva de quem já passou por momentos difíceis na vida e busca recompor-se.

      Pois assim pensando forcei a lembrança de um amigo que, muito embora bem mais velho do que eu, compartilhara comigo, ainda nesta vida, seus pensamentos científicos e filosóficos sobre a existência humana na Terra. Era ele, ainda em vida, dono de uma personalidade muito marcante e de uma facilidade extrema para explicar tudo que se relacionasse sobre “Espiritismo Kardequiano”, como dizia. Mostrava de maneira simples a lógica da Lei de Causa e Efeito para demonstrar como a reencarnação era a prova insofismável da Justiça Divina. Não me lembro de pessoa mais correta, mais honesta, mais escrupulosa nos negócios, e, na vida particular. Possuía uma fé, uma certeza inabalável do que nos esperava depois da morte do corpo material.

      Por isso, confesso que durante um bom período desde a sua desencarnação desejava saber dele alguma coisa do que encontrara, mesmo porque eu mesmo nunca senti aquela firmeza, aquela fé que tanto admirava nele. Nunca renunciei a certas coisas da vida, como ele, em nome da busca da perfeição. Quem sabe, aprenderia algo; alguma instrução, alguma palavra que me levasse a seguir a mesma trilha que ele. Mas, quantas vezes desisti do intento; pensava que eu jamais, com todos os meus vícios pudesse ser merecedor sequer de um sopro de pensamento daquele espírito que habitava, por certo, plagas mais justas, bem além da crosta terrestre.

       O som da melodia evidentemente convidava a isto e não tive que esperar muito tempo para divisar do lado direito da mesa onde me encontrava uma figura bastante agradável. Reconheci de pronto, o meu amigo que já vivera no plano de vida onde me encontro, ainda, e, com o qual tantas vezes conversara sobre aquele fenômeno que ocorria. Sorriu-me, coisa que não me lembro de tê-lo visto fazer muitas vezes, e, confesso que ele me pareceu bem mais jovem, talvez por isto mesmo.

      Olhamo-nos por cerca de um minuto, e, quebrando o agradável silencio que se fizera, disse-me: “- Aqui estamos novamente meu dileto amigo. Devo, com a devida permissão que me foi concedida, atender teu pedido para completar algumas lacunas de nossas conversas sobre nossos mundos de agora, os quais, posso dizer que são quase os mesmos, na verdade”.

      
Não posso negar. Enchi-me, não só de curiosidade pura, mas também da vontade de saber de que lacunas ele falava, pois de imediato me vieram à mente lembranças de que, não raras vezes, discordava- mos embora cavalheirescamente, de algumas teorias sobre a espiritualidade. Evidente que eu poderia aprender muito em poucos minutos e cumprir minha obrigação de repassá-las adiante.

       Perguntei-lhe, então, sem qualquer pudor e em total confiança e alegria por constatar que o meu amigo vivia realmente como, aliás, sempre soubemos, eis que tal conhecimento e certeza sempre fora inato em ambos.

      - Diga-me, companheiro, o que puderes e o que eu mereça conhecer. “

      "Não posso me queixar, em absoluto, da acolhida que tive aqui e sobre a qual custo a crer que a tenha merecido, respondeu-me com um olhar significativo, e muita serenidade. “Ah! Quantas coisas descobri aqui e que jamais pensei, quando ai vivia, que pudessem ser tão preciosas e tão indispensáveis em face da pouca importância que dei a elas. “Aqui entendi o que realmente significa a fé sem obras tão falada no meio espiritista, e, por sua simplicidade tão pouco compreendida da grande maioria de intelectuais, como grosseiramente me julgava”.

      Escutava-o prenhe de atenção, pois que muito aprendera com ele sobre o assunto, e, cada vez mais seus pensamentos iam se tornando de uma clareza singular os quais entendia com uma facilidade que eu mesmo desconhecia.

       “Não vou entrar, aqui, em pormenores sem nenhuma validade sobre vidas passadas e simpatias recíprocas. Muito pouco isto acrescentaria à finalidade a que te propusestes e que eu faço questão de contribuir apresentando o meu testemunho”.

     Disse-me isto sem qualquer afetação, quase como a me pedir desculpas, qual houvesse adivinhado o curioso pensamento que, por um instante, rondou minha mente - o de indagar quem eu fora, em que épocas remotas estivemos no planeta, e, que grau de parentesco nos unira. Foi o bastante para que eu voltasse à realidade e me lembrasse do que havia prometido desde o primeiro contato que tivera com outra dimensão da vida. Passado o segundo que poderia ter ameaçado tão memorável contato, retomou a palavra e, continuou:

      “Tão logo fui recebido nas paragens onde me encontro, e, tão logo pude me dar conta da minha real situação, e,  sem qualquer embaraço verifiquei que realmente tudo aqui é parecido com o que vivemos na Terra. Não sei se parecido é a palavra certa, mas não encontro em meu vocabulário outra melhor para definir. Talvez possa usar um termo que mais se aproxima do que vi.

       Diria que as cidades no planeta são um arremedo do que existe neste lado. “É como se viéssemos até aqui em sonho ou em transe e vendo o que existe deste lado ao retornarmos copiássemos, grosso modo, o que vimos”. “Dos sentimentos diria a mesma coisa. A dor existe aqui como ai. Mas é uma dor diferente, é moral, consciencial; pior é que sabemos os motivos dela e temos a certeza e o meio de acabar com ela. Isto nos dá força, coragem, resistência e acima de tudo, vontade de melhorar, progredir não só intelectualmente, mas também moralmente já que este é o remédio para a cura”.

     
Mas, como? pensei apenas. De que dor moral ele fala se nunca percebi em seu pensamento e suas idéias algo de mal ao semelhante? Nunca o vira sequer levantar a voz para qualquer. Descobri, de imediato, que não precisava da voz para indagar-lhe as coisas posto que antes disso, respondeu-me:

     “Meu amigo, não me tenha, por piedade, como dono da virtude intocável, pois que me leva a pensar na santidade ilusória”. A verdade é que fiz de minha vida particular uma torre de marfim sem perceber e nela encastelei meus conhecimentos da vida superior”. “Fé espírita é libertação espiritual. Não ensina a reserva calculada que anula a comunicabilidade, constrangendo os outros, nem recomenda a rigidez de hábitos que estereliza a vida simples. Nem tristeza sistemática, nem entusiasmo pueril”. “A verdade é que desertei do mundo, e, praticamente fiz da minha vida uma condenação a atividade inexpressiva ou vegetante”.

      “Conhecia o caminho do bem, evitei o caminho do mal. Jamais me aproximei de qualquer sofredor sem me colocar como conhecedor de todas as mazelas do mundo; no fundo a verdade é que pensava que o conhecimento das coisas, a retidão no trato com os negócios, a obediência às leis terrenas dava-me um certificado para ingressar auspicioso no Reino da Vida verdadeira. Quanto engano! Triste realidade: Nunca fizera o mal, mas nenhum bem brilhava na minha alma escura. Toda beneficência, para mim, era obrigação do Estado. Afinal pagava meus impostos sem reclamar. Minha missão era ensinar, mostrar aos que me buscavam que a vida verdadeira, a felicidade era no pós- vida
. Para isso necessário a apuração do caráter, a vivência reta. Não posso dizer que freqüentei, depois de minha passagem, umbrais ou infernos. Não. Em pouco tempo tive conhecimento de minha situação e me senti eufórico em companhia de vários amigos que conhecera na terra. Vivi muito tempo numa colônia acolhedora, agradável e muito parecida com as estâncias hidrominerais do planeta. Entretanto, com o passar do tempo comecei a verificar que todos eles tinham trabalho incessante em várias comunidades de ambos os lados. Eu não... “Apenas sabia observar a grandeza de Deus e isto se tornou logo entediante, pois que nada me adiantava o conhecimento sem poder colocá-los em prática”. Vivia pensativo. Sentia-me deslocado embora jamais tenha divisado qualquer olhar de censura ou reprovação de qualquer um deles. Na terra, infelizmente, julgava-me superior embora quase não percebesse. Para mim todos os companheiros de trabalho sempre estavam errados, sempre desconheciam as verdades sublimes. Muito embora achando que lhes falava com simpatia e humildade, criticava-os impiedosamente. Não conseguia conviver com a pouca instrução deles. Encontrava, via de regra, em suas opiniões para ajudar o próximo, falhas grotescas e as rechaçava. Nenhuma oportunidade lhes dava de serem úteis. Perdi meu amigo, muito tempo de servir ai e aqui busquei este tempo desesperadamente e não o encontrava. Não sabia servir, ajudar, cooperar, pois que não desenvolvera isto na universidade da alma que é a vivencia na Terra.

     Ah! como nos enganamos na vida e sobre seus reais valores, pensei. Como agradecer a Deus tamanha oportunidade que me fora dada de não só ter conhecimento de tantas coisas, mas poder passá-las adiante.

     ' Um dia- tirou-me da absorção momentânea, e, continuou: encontrei com o Dr. Menezes, figura que muito admirei por seu conhecimento médico, sempre pronto a atender qualquer um.

       Muitas vezes havia visto ele na Associação Espírita onde eu era diretor sentado quieto e atento a ouvir as preleções dos companheiros da tribuna. Tratou-me como se eu fosse um grande espírito. Agraciou-me com seus elogios pela forma como eu levara a minha vida à frente daquele grupo espírita.

      Uma luz brilhava a seu redor e foi quando eu percebi que de mim nenhum claridade brotava. Quis dizer-lhe que não era bem assim, que não havia sido nada disso, mas ele interrompeu meu pensamento. Num repente, com uma doçura impressionante disse-me que estava muito atarefado e precisava de um ajudante. Perguntou-me se eu não gostaria de trabalhar a beneficio dos companheiros menos favorecidos que habitavam regiões fronteiriças e no orbe terrestre dado os meus conhecimentos profundos sobre a verddeira vida.

       Fui tomado de incomoda e enorme vergonha. Que conhecimentos? Ajudar em que? Nada sabia disso, não fora médico na minha existência, sequer enfermeiro. Fora um abastado comerciante. Mas, aceitei ...

      Hoje conduzo o carro que nos transporta de um lado para o outro. Digo carro porque é a única palavra que conheço que mais se parece com o veículo que conduzo com muita alegria, aprendendo de verdade a fazer o bem".
Concluiu, sorrindo: "Conhecimento sem obras a beneficio do próximo, meu amigo, é como teoria sem prá
tica.
Nelson de Medeiros
Enviado por Nelson de Medeiros em 30/10/2016
Reeditado em 04/10/2021
Código do texto: T5807503
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