DESLUMBRADO
 
                               Eu conheci Bernardo ao tempo em que ele gerenciava importante e conceituado estabelecimento de crédito. Na época, em meio às tribulações e desajustes próprios da minha idade e das responsabilidades que assumira perante a vida, sem estar preparado para tanto, eu tentava, mesmo assim, vez por outra elevar o pensamento para as coisas que acreditava, quase desde o berço, que existiam além deste mundo.

                             Ouvia referencias ao espiritismo e estudava algumas coisas sem, entretanto, me dar conta real e totalmente de toda a importância daquela ciência filosófica que se misturava à religião, também.
 
                              Para tanto não me faltaram abnegados professores que, com paciência e paulatinamente com exemplos   procuravam incutir em minha mente tais conceitos de vida.

                               Então, como todos que estudam ou simpatizam com esta doutrina eu pensava vez por outra na morte; como se daria tal desenlace e o que eu levaria comigo de bagagem espiritual. Era, e isto é verdade absoluta, aficionado pelos romances espíritas psicografados, preferencialmente por Francisco Cândido Xavier, espírito que muito mais tarde vim a conhecer pessoalmente na cidade de Uberaba-MG, ainda que apenas num brevíssimo encontro, mas que me causara naquela oportunidade imensa e estonteante impressão que eu jamais sentira em toda a minha vida. Eu vi sem poder explicar como, caráter, hombridade, decência, amor, caridade, humildade, superioridade, luz num só relance em uma só pessoa.
                               Mesmo sendo jovem eu já acreditava na reencarnação como sendo uma coisa lógica e justa. Participava de sociedades espíritas beneficentes, mas a verdade é que não abdicava de nenhum dos prazeres da vida em função de uma melhoria íntima. Evidente que não progredi em nada neste aspecto, pois que somente anos e anos mais tarde pude compreender que a doutrina espírita, a sua filosofia moral tem tudo, mas tudo a ver com esta reforma íntima, sob todos os aspectos, do ser humano comum. Entendi que de pouca valia é o conhecimento, a intelectualidade sem estar acoplada a um senso moral de justiça, de perdão, de renúncia e igualdade, pelo menos no estágio em que nos encontramos na escala evolutiva da Criação Divina.
 
                              Mas, deixemos as digressões filosóficas de lado, e, voltemos a Bernardo, principal personagem deste drama que pude presenciar e compartilhar, de certa forma.

                               Uma vez, necessitei urgentemente tratar uma situação não muito complicada que envolvia pessoas que me eram caras e fui obrigado a buscar a instituição comercial que Bernardo comandava. Não era uma coisa simplíssima, mas também não era coisa que não se pudesse resolver com um mínimo de boa vontade. Encaminhara-me, pois a ele já que, segundo disseram, era o único que poderia me ajudar a sanar o pequeno problema.
 
                               Encontrei-o aparentando bastante preocupação com o trabalho, e, confesso que sua figura gerou-me um desconforto sem qualquer explicação.
 
                              Certa  vez, é bom que se diga, apenas para ilustrar a história, lendo a obra de Léon Denis, “O Problema do Ser, do Destino e da Dor” gravei seu pensamento que transcrevo daquele excelente compendio filosófico: O esquecimento das existências anteriores é, em princípio, dissemos, uma das conseqüências da reencarnação; entretanto, não é absoluto esse esquecimento. Em muitas pessoas o passado renova-se em forma de impressões, senão de lembranças definidas. Estas impressões às vezes, influenciam os nossos atos; são as que não vêm da educação, nem do meio, nem da hereditariedade. Nesse número podem classificar-se as simpatias e as antipatias repentinas, as intuições rápidas, as idéias inatas.[1]
                               Não poderia ser mais precisa esta ilustração para definir o que senti ao ver Bernardo e cuja reciprocidade percebi de imediato.

                               Todavia, passei por cima disto ou pelo menos tentei passar e expliquei-lhe o problema, mas a dureza da resposta acabou com qualquer tentativa de simpatia recíproca:
 
                              -“ Não. Não há como fazer isto
.” Disse-me, secamente e, sem qualquer chance de argumentação, o que fiz, mesmo assim, tentando mostrar-lhe a situação que requeria, de certo modo uma caridade já que não se tratava de burlar qualquer lei ou instrução interna da corporação que ele dirigia, mas tão somente resolver um impasse em favor de uma idosa com a saúde seriamente comprometida. Ficamos nisso.

                               O tempo é o senhor de todas as coisas. Ele é maleável; vai e volta sem alterar ou derrocar qualquer Lei da Natureza. Não é preciso máquina do tempo parta isto, muito menos se aprofundar na Teoria da Relatividade Tempo e Espaço de Einstein. A lei está acima, sempre, de qualquer teoria. É por isso que a Lei da Vida, que tudo rege no Universo,    se encarrega de fazer com que o tempo volte ao passado de uma maneira especial para que  novas oportunidades nos sejam dadas a fim de repararmos erros cometidos, aprendermos e seguirmos em frente sempre para o alto e rumo norte.
                               Diremos que mais ou menos 15 anos depois desta cena que narramos, encontrava-me em determinado local especificamente destinado a benemerência, à caridade e precipuamente ao estudo da doutrina espírita, quando este passado voltou do esquecimento aparente, não por acaso que penso, não existe.  Embora eu não fosse nenhuma figura de destaque ou proeminência naquele grupo, pois que como já dissemos, ab initio, ainda não conseguíramos dominar todas as paixões mundanas que nos atrasam o progresso, e, dedicar-me inteiramente àqueles preceitos e fundamentos científico-religiosos, fazia parte, de boa vontade, daquela sociedade voltada para o bem. Era quase um curioso sem intenção menos gratificante que acompanhava um amigo de ilibado caráter.

                               Na verdade eu somente colaborava profissionalmente para resolver pendências que toda e qualquer sociedade ou empresa, seja benemérita ou não, sempre tem.

                               Em que pese gazar da amizade e do respeito de todos aqueles espíritos voltados para o bem que de bom grado e sem nenhuma recompensa financeira davam o melhor de si para, simplesmente, ajudar e servir a todos os necessitados que ali aportavam, não considerava, de forma nenhuma, aparelhar-me com qualquer deles em termos de convicção religiosa ou filosófica - moral, muito embora participasse, mais por simpatia de alguns, daquela sociedade onde exercia cargo na diretoria. E, assim, por largo tempo a vida transcorreu sem muitas modificações neste campo. Mas, hoje sei que o tempo não para e nada para no tempo.
 
                              Era uma noite tranqüila de agosto. O frio era gostoso e o vento brando que soprava dava uma sensação térmica talvez abaixo do que realmente o termômetro marcava. O local era aprazível, prenhe de arvoredo em toda a sua volta e ao fundo um resquício de enorme área em matas e pequenas propriedades rurais. Encravada no meio de uma clareira erguia-se a vetusta edificação. Um casarão construído por homens de escol de várias gerações e cujo grau de espiritualização infundia respeito e admiração a todos que ali buscavam se aprimorar nos caminhos do amor ao próximo, finalidade precípua da vida. Toda em branco com janelas e portas em azul parecia, à noite, um Oasis de luz no meio de um negro deserto.

                               Aguardávamos a chegada do presidente da Instituição, pessoa de raras qualidades espirituais, abnegado trabalhador em prol dos necessitados e cujo conhecimento e humildade contagiava a todos os demais. Hoje, eu vejo como Deus foi condescendente comigo ao deixar que cruzasse meu caminho espírito daquela qualidade e de cuja amizade privei em convivência das mais sinceras. Com ele aprendi muito sobre a finalidade de nossa estadia no orbe terrestre.
  
                             Passava um pouco das 20 horas quando vislumbramos sua figura, sempre simples e calma. Chegara acompanhado de um cidadão relativamente novo embora sua fisionomia demonstrasse certo cansaço que parecia vir de dentro de sua alma, uma espécie de descrédito por tudo. Esta foi a minha primeira impressão.
 
                              Cumprimentando a todos disse com a serenidade que lhe era peculiar:
                               - “Trouxe comigo o nosso companheiro Bernardo, diretor da corporação tal e que se mostrou interessado em conhecer o que se faz aqui, eis que seu estabelecimento nos foi indicado para tentarmos resolver alguns problemas que, como sabemos, aguardam solução.”
  
                             Não pude deixar de me impressionar. O tempo, em minha mente, deu uma guinada de 360º e me recordei daquela tarde quando o encontrara em seu estabelecimento e fora dura e secamente atendido, pois que outro não era senão o mesmo Bernardo de 15 anos atrás, embora mais maduro.
                               Reconheci-o de imediato. Mas, vi que sequer passou por sua mente que já o conhecia. A toda evidência ele não se lembrava disto.
                               Seria mentir se eu dissesse que uma antipatia sem precedentes me tomou de assalto, e, talvez por sua figura desconfiada e na defensiva cheguei a pensar que isto fora recíproco. Mais tarde, muito mais tarde verifiquei que fora realmente assim, muito embora ele não tenha mesmo se lembrado naquele momento do fato ocorrido há quinze anos, e, jamais ficou sabendo disto, posto que nunca lhe dissesse a respeito.
 
                                Mas, a verdade é que Bernardo interessou-se deveras pelo que ouviu naquela noite, pois, que dali para frente foi se aprofundando com uma rapidez incrível em todos os problemas que aquela instituição benemérita enfrentava. Sua disposição em ajudar e colocar-se à frente de qualquer empecilho que viesse ameaçar a finalidade daquela casa abençoada pelo bem que proporcionava aos necessitados era impressionante.
                               Logo se ambientou, mesmo porque tinha tempo eis que já estava aposentado e não só por isto tornou-se abnegado colaborador e até mesmo figura indispensável em todos os segmentos daquela sociedade de amparo aos pobres. Passou a estudar com muita intensidade as obras espíritas; dialogava constantemente com todos; participava de cursos. Tornara-se o que se pode dizer realmente um espírita, pois assim o é aquele que participa efetivamente de sua igreja.

                               Conversava-mos muito embora aquela sensação primeira teimasse, ainda que levemente, a me incomodar.

                               Não por isto evidentemente, mas muito mais pela minha não persistência como a dele e de muitos outros me afastei por uns tempos daquele contato direto com os amigos ainda que vez por outra ali desse as caras.
                               Passado este período aportei novamente naquela Casa, pois que fora realmente o melhor ambiente que já encontrara em toda a minha existência.
                               Bernardo, então, já era presidente e dirigia um grande movimento em prol dos necessitados que ali aportavam diuturnamente. Tornara-se figura proeminente naquela associação voltada para o soerguimento moral da alma.
 
                             Confesso que fiquei gratificado e até me arrependi de ter pensado em coisas passadas e a verdade é que sob o seu comando tornei-me seu amigo e passei a freqüentar muitas reuniões sob sua direção.

                               Entretanto, com o passar dos anos passei a sentir que alguma coisa não estava correndo bem, embora não ousasse falar sobre isto. Lembro-me de ter conversado com o amigo que o levara pela primeira vez, e, como nossa amizade realmente era pura e sem qualquer mácula falei da minha preocupação sobre o estado em que eu achava que o nosso companheiro parecia estar entrando.

                               Como aquele companheiro dileto era pessoa nascida fora de seu tempo, dono de uma brandura e de uma compreensão da alma humana que eu jamais consegui apreender apenas me olhou compassivamente e pediu que orássemos por ele. Confessou-me discretamente que já falara com ele por duas vezes, mas que era nossa obrigação respeitar seu livre arbítrio, seu modo de pensar em como fazer as coisas.
                               Então entendi de uma vez por todas o porquê da minha estranheza em seus modos de agir.

                               As pessoas mais simples buscavam-no e lhes rendiam quase que homenagens à sua bondade, à sua tolerância e a sua palavra. Beijavam-lhe as mãos e ele as abraçava carinhosamente; parecia deslumbrar-se com isto, e, cada vez mais tomava atitudes de um quase santo, um guru, quer por sua aparência física, quer por sua postura ao lado de pessoas crédulas e sedentas de curas para seus males, muitas e muitas vezes impossíveis.

                Não havia nada que não tivesse que passar por ele. Nenhuma experiência sugerida por qualquer outro era viável. Não dava, infelizmente, a ninguém, a oportunidade de fazer o bem, embora não fizesse isto por mal. É que ele realmente transformara-se, encantara-se com o que descobrira e não se precavera contra si mesmo, com seus pensamentos, com suas idéias.

                Afastei-me do grupo, definitivamente, por motivos outros, e, não soube mais dele.  O tempo passou em bom bocado, e, praticamente me desconectei daquilo tudo, muito embora em nenhum momento tenha perdido ou mudado meu entendimento sobre esta filosofia de vida.
 
               Certo dia, num final de tarde, recebi a visita de um antigo companheiro que me buscara por motivos profissionais e não pude deixar de perguntar por todos com quem convivera por muito tempo, e, mais precisamente sobre Bernardo, figura que realmente não tivera outras noticias mesmo, mas, que de certa maneira estava sempre em minha lembrança.
 
               Disse-me que ele tornar-se de tal forma inconsistente dentro do grupo que não fora mais possível sua permanência. Constrangido disse-me que Bernardo, pensando agir corretamente, prejudicava e ameaçava a existência da própria sociedade. Passara a pensar e agir de forma muito estranha e aos olhos daqueles menos avisados que buscavam socorro ali, passara a ser tido como verdadeiro “santo” por suas “qualidades e virtudes “inigualáveis. Na verdade concluiu, Bernardo tornara-se presa fácil de espíritos mal intencionados que se aproveitaram daquele deslumbramento que tomara sua alma e estava visivelmente obsedado. Atrapalhava a tudo e a todos. Depois de muitos pedidos havia se afastado.
 
               Confesso que entendi muito bem, mas como vi que o assunto parecia não fazer bem ao amigo passei a atendê-lo profissionalmente.
 
               Tudo na vida tem seu momento certo, sua hora certa. Assim um dia em que caminhava pela avenida encontrei Bernardo que longe de parecer louco ou qualquer coisa do gênero vagava simplesmente pela rua sem qualquer objetivo visível. Parei para cumprimentá-lo no que fui efusivamente recebido. A conversa, a toda evidência, não poderia ter outro caminho.
 
               Disse-me ele, então, entre outras coisas, que na verdade não estava bem e nunca mais voltara à casa que ele um dia considerou quase seu lar. Afirmou-me que não fora compreendido e que hoje duvidava de que tudo aquilo tivesse sentido, muito embora às vezes sentisse o contrário.
  
              Em suma, a conversa que em dados momentos se elevava em outros baixava de nível o que não dava bem para compreender em que posição se encontrava aquele que um dia fora companheiro de ideais. Tratei de encurtá-la, e, dentro da melhor educação que conheço despedi-me e segui o meu exercício vesperal.
 
           Ia pensativo quando ao meu lado notei uma nevoa que se formara numa silhueta humana embora não pudesse, verdadeiramente, distinguir de quem se tratava muito embora a simpatia e a vibração que senti me diziam, no fundo, que era alguém que eu conhecia.

“- Meu amigo e companheiro” ouvi dele quase em sussurro:” Não se pode galgar a universidade sem antes passar pelas etapas do ensino inferior. Quem tenta fazer isto não consegue enxergar a finalidade daquela por que não se preparou devidamente nessa. Nosso Bernardo, médium que sempre foi, deixou-se levar pela fascinação que é dentre todas as formas de obsessões, a mais perigosa. O médium fascinado pela idéia de que é indispensável à obra de Deus passa a ter a ilusão produzida pela ação direta do Espírito sobre seu pensamento que, de certa maneira, lhe paralisa o raciocínio, relativamente às comunicações”
 
O médium, em tal estado, não acredita que o estejam enganando: Os maus espíritos, os gozadores, os inimigos de outras eras têm, não raras vezes, a arte de lhe inspirar confiança cega, que o impede de ver o embuste e de compreender o absurdo do que escreve, a palavra vazia que pronuncia, ainda quando esse absurdo salte aos olhos de toda gente. Não vê o ridículo que às vezes se impõe, pois que iludido pode mesmo ir até ao ponto de achar sublime a linguagem mais ridícula iludindo, por sua vez, as pessoas mais simples que os endeusam.
 
           Finalizou: “Nunca podemos olvidar que a humildade em reconhecer que os talentos que a Providência nos dotou não foram dados para que brilhemos, mas sim que os aproveitemos para clarear tão somente nossa alma a beneficio do próximo”.
 
                A névoa se fez e fiquei a relembrar todos os acontecimentos desde a primeira vez que vi aquela figura um dia, orgulhosa e grosseira, até aquele momento em que o vi afastar-se alquebrado e derrotado por si mesmo.
               
 
               
               
 
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[1] Denis, Leon- O Problema do Ser, do Destino e da Dor “- Ed. FEB- 2009- pág. 300.
Nelson de Medeiros
Enviado por Nelson de Medeiros em 21/11/2016
Reeditado em 22/11/2016
Código do texto: T5830619
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