Descrença (parte 2/2)

A humanidade é tomada de questões, algumas mais relevantes, outras nem tanto, são perguntas que nunca têm resposta definitiva. Sempre há a questão do ponto de vista, ainda mais hoje em dia, com essa cultura de que tudo tem que ser considerado. A falta de posicionamento ou assumpção de uma vertente moral leva a mais discussões e indefinições. A falta de conceitos concretos fragiliza a estrutura moral de uma sociedade.

Dessa forma a máxima publicada por Platão, quando afirmou que: "a verdadeira busca do homem é a felicidade", se perdeu diante de tantas contradições. Do ponto de vista do subjetivismo, nenhuma verdade é absoluta. Um paradoxo.

Onde mora a felicidade? Onde está a verdade? Qual é o fim último da humanidade? Pode haver algum padrão dentro do caos de várias verdades coexistentes? Muitos dizem muitas coisas e quase ninguém está ouvindo.

— Pois é Sergio, é o que nós acreditamos. Independente de você aceitar ou não. — Túlio acredita ter elucidado as dúvidas.

— Tá, mas vamos ser práticos: eu posso entrar nessa sem acreditar?

— Ora, por que faria uma coisa dessas?

— Por causa da minha companheira. Ela quer casar para que possamos continuar a vida juntos.

— Ah, entendi. Claro que você pode se casar, não precisa se converter, isso seria uma coisa ruim para você.

— Ué, como assim?

— O único enganado aqui seria você mesmo.

— Ah, sei, minha vontade já seria de conhecimento do tal Escritor.

— Isso mesmo.

— Pois, pra mim, é muito difícil entender como pode existir um ser com tanto poder assim e me criar sem acreditar nele próprio. Parece ironia.

— Talvez até seja.

— Bem que ele poderia me criar um pouco mais rico. Aí seria legal, não acha?

Um flash branco cega Sergio por alguns instantes.

—Sergio. Mais ricos do que já somos? Você quer comprar o mundo? – Marcos se intromete.

— Somos ricos? – Sergio fica confuso.

Só então se dá conta que estão em um luxuoso saguão, muito bem iluminado com um gigantesco candelabro de cristais pendurado no centro, repleto de pessoas em trajes de gala e a orquestra sinfônica tocando ao fundo.

— Sim, acabamos de celebrar a fusão da nossa empresa com a multinacional de informática, não tá bom pra ti?

— Mas... — Sergio fica ainda confuso — estranho...

— O quê?

— Eu podia jurar que a gente era contador de uma firma de contabilidade.

Túlio também sorri devolvendo a taça de champanhe ao garçom que passa por eles.

— Não, é sério cara, a gente tava conversando num barzinho perto do escritório, bebendo cerveja e de repente... estamos ricos.

— Acho que você ficou muito ansioso pela reunião que acabamos de sair. Só pode.

— Não, não... é sério. A sensação que tenho é que tudo mudou de um momento a outro.

— Pode ser. — Túlio tenta intervir.

— “Pode ser”? Você teria alguma explicação para isso? — Sergio ainda está confuso.

— Talvez o Escritor tenha decidido nos fazer ricos.

— Será? E como só eu lembro de que era contador e vocês não?

— Talvez porque você não acredite nele.

— Sergio, já parou pra pensar que, talvez você possa recriar toda sua vida? — Marcos sussurra para o amigo.

— Estou pensando nisso agora. Eu era um contador, com um problema com a minha companheira, uma vida cheia de dificuldades por causa da falta de grana e, de repente, tudo muda.

— Quem sabe o Escritor esteja agindo na sua vida. — Túlio insiste.

— Mas assim do nada? Um cara que nem acreditava nele?

— Pois é, vai saber. “O médico só visita quem está doente”.

— Agora fiquei até assustado. — Sergio ainda tenta assimilar a situação.

— Hum, e se eu quisesse ser um cara rico e bem dotado? — Marcos arrisca, ao mesmo tempo em que apalpa a virilha. Túlio e Sergio olham para ele entre curioso e gargalhando — Nada.

— Parece que a bola tá contigo Sergio. — Túlio parabeniza o amigo.

— Eu? Mas por que eu?

— Quem sabe assim você se convence.

— Sergio, vem cá. — Marcos o puxa a um canto e sussurra.

— Hum?

— Vamos fazer um teste, peça para estar em algum lugar que você gostaria agora.

— Tá maluco? Se houver um ser com tanto poder assim, você acha que vou brincar com isso?

— Ah, vai, cara, o que te custa?

— Você quer que eu manipule o Escritor? Não acha que ele já sabe das tuas intenções? — outro flash deixa Sergio desequilibrado momentaneamente.

— Oi Sergio.

— O quê? Quem? Co-como é? — Sergio está sozinho em lugar nenhum, sem céu e sem chão.

— Advinha.

— Escritor?

— Uhum!

— Caramba.

— Acredita em mim agora?

— E tem como não acreditar?

— Bastou só uma transformaçãozinha?

— Poxa, minha vida não tava fácil, você não facilitou nada para mim. Nunca havia tido nenhuma razão para acreditar em ti...

— Sério? A sua vida não é motivo suficiente para acreditar?

— Ah, sei lá. Eu tava tão ocupado com os problemas que não sobrava tempo para pensar nessas coisas.

— É, eu sei, eu te escrevi assim.

— A propósito, por que me escreveu desse jeito? Por que não me fez rico desde o começo da história?

— Se fosse assim, você acreditaria em mim?

— Bom, pelo menos sobrava tempo para pensar nessas coisas mais relevantes.

— É, talvez. Ou sua atenção estaria voltada para a própria riqueza — o Escritor responde num tom desanimado.

— Desculpe, mas parece que você está triste. — Sergio fica complacente.

— Vou te contar uma coisa...

— O quê?

— Eu também sou uma criação como você. Mas, o meu criador é infinitamente superior a mim.

— Caramba. Então a coisa de várias realidades é verdade?

— Podemos dizer que sim. Mas há uma diferença entre eu e Ele. Enquanto você é meu personagem e só pode fazer as coisas que eu escrevo, o meu criador me deu um dom em que posso agir de acordo com as minhas intenções, sem precisar de um controle.

— Nossa. Eu pensei que eu era assim.

— Porque eu te escrevi assim. Entretanto, por mais que eu queira, não tenho essa capacidade de te dar uma vontade própria.

— Caramba isso é meio triste. Saber que sou totalmente dependente de ti.

— Eu sei. Na minha realidade, nós também sofremos do mesmo mal. Existem pessoas que acreditam e outros que não acreditam. E cada um tem as suas verdades.

— É complicado isso!... Pensei numa coisa agora.

— É, eu sei...

— Se você é limitado, então minha vida também é.

— Sim, de fato.

— O que acontecerá quando você não quiser escrever mais a minha vida?

— Você findará a sua existência.

— Vou morrer?

— Eu não diria que isso é propriamente uma “vida”.

— Mas é a minha vida.

— Não digo que você vá morrer! Talvez fique na eternidade como um personagem literário.

— O que isso significa?

— Que você não terá seguimento de história, mas estará sempre vivendo na memória de algum leitor.

— Esse “leitor” é outro ser igual a você?

— O escritor cria, o leitor consome! É para o leitor que o escritor produz e escreve os romances, dramas, aventuras e tantas outras vidas. A eles é dada a razão da existência de tantos personagens. Mas, não se preocupe, certamente me lembrarei de você por muito tempo. Cada criação é como um filho para mim.

Depois da despedida, o homem fecha o monitor, pela primeira vez com alguma formalidade.

E a pergunta persiste: por que estamos aqui? De onde viemos e para onde vamos? Geralmente vivemos como se isso não tivesse importância, já que estamos mais preocupados com os problemas do dia—a—dia, mas essas questões precisam ser discutidas, os grandes males da sociedade surgem, exatamente, pela crença de que não há uma justiça divina para as atitudes que cometemos, diante dos eventos que o destino nos apresenta.

Quem tem a razão?

M P Cândido
Enviado por M P Cândido em 28/01/2017
Reeditado em 26/04/2023
Código do texto: T5895590
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