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I

São incontáveis os horrores perdidos em meio a sonhos dos mais variados possíveis: quedas no abismo, torturas, vultos, catalepsia. Em certos momentos, nos convencemos de que tais alucinações da mente são meras imagens simbólicas de nosso subconsciente. Tendemos a relacionar os sonhos a vivências do mundo diário transformadas em alegorias, ou até mesmo memórias antigas recontadas em forma de pesadelos. Definido o subconsciente como “o porão da individualidade”, é de se esperar que tais “documentos” guardados a sete chaves vez ou outra venham a nos perseguir e atormentar.

Não vejo tal explicação com maus olhos. Por um lado, não sou o tipo de pessoa que crê em coisas sem muita explicação cientifica - parafraseando certo filósofo, “fé é como um órgão. Uns acabam por nascer sem” - Entretanto, é fato comum que entendemos tão pouco de nossa mente quanto compreendemos do universo. Sendo assim, nem tudo deve ser levado a ferro e fogo, como dizem por ai.

Tendo isso em mente, é correto dizer que para muitos, ainda, os sonhos são nada mais que ecos de outras vidas, outras realidades na qual estivemos ou, até mesmo, resquícios de vidas de outras pessoas retidas em certos objetos carregados dessa aura que transferimos sem querer para nossos corpos ao tocá-los. Não devemos nos esquecer, também, daqueles que fazem tais viagens de bom grado, ou seja, utilizando-se de meios que vão de ervas até mesmo técnicas de meditação usadas por gerações para induzir um sonho lúcido. Em todo o caso, essas viagens oníricas cotidianas tendem a nos contar muito de nós mesmos, como um quebra-cabeça construído de variadas e inúmeras peças que vão tomando forma enquanto adentramos esse mundo perdido na escuridão de nossas pálpebras.

Você, que agora inicia sua leitura... Acredito que vá criar na sua cabeça as imagens aqui narradas, conjecturando como tal riqueza de detalhes pôde ser descritas de maneira tão viva. Acredito também, que há aqueles se questionando sobre a verossimilhança de tal conto, dizendo a si mesmo que nada faz sentido, ou que tudo fora brilhantemente pensado para que assim o sentisse o leitor; como falas frias sem o menor sentimento. Em minha defesa devo dizer que não sou tão exímio escritor para tal, apenas me divirto, algumas horas por dia, criando insignificantes relatos de vidas que nunca tive - Assim acredito eu.

O fato é que este sonho perverso me perseguiu por pelo menos seis meses de minha vida, repetindo-se como um loop intermitente até o momento que resolvi coloca-lo no papel. Meu único trabalho foi compila-lo, apenas o estruturando de maneira coerente para uma interpretação. Há partes que até para mim não fazem o menor sentido, mas por que o deveria? Em todo o caso, se chegou até este ponto, peço encarecidamente que leia até a última linha, e julgue por você mesmo o que é real e o que possa ser absurdo demais para o ser. Afinal de contas, estamos falando de um mero sonho, não é mesmo?

***

Em algum lugar de lugar nenhum, um homem de meia idade conversa consigo mesmo...

“Há quanto tempo não durmo? Não conheço mais o gosto da comida, não conheço mais o sabor da bebida, muito menos tenho vontade de o saber. Meu único amigo nesses dias, na verdade anos, tem sido meu patético e costumeiro cigarro; meu habitual câncer matinal e noturno que guardo com carinho em uma pequena caixa de metal no bolso direito do paletó.

Muitos me tratam por louco. É comum em nossa sociedade tal rótulo àqueles que o sol de uma manhã fria não traz mais alento. E escondendo-me nessa alcova fria, passei a driblar o ato de sonhar. Evito pegar no sono, pois tenho medo, sim, medo! Medo de que em algum lugar distante daquilo que chamo sanidade Ele me encontre, Ele me veja. Medo de que em um canto escuro da minha mente perturbada por agonias ancestrais e sem forma sua voz chegue aos meus ouvidos e me conte sobre sua trajetória inumana por éons de esquecimento no vazio.

Os últimos anos foram despendidos em frente a minha escrivaninha, tirando da memória e colocando nas teclas de uma velha máquina de escrever - Herança de meu avô - os acontecimentos daquele inverno. Não os quero mais em minha mente, não os posso carregar tão próximos a mim. Desse modo, deixo tudo que presenciei em meras folhas de papel jogadas em alguma gaveta trancada, para que nenhum ser desavisado do conteúdo desses papéis os leia, e tente mais uma única vez sequer ir ao encontro de montanhas espectrais e geladas perdidas em meio à neve. Não abra aquela maldita porta.

...

Acordei de um sobressalto nesta madrugada. Cochilei durante minutos sobre minha mesa, um cochilo pesado como não o tinha há muito tempo. Provavelmente esse foi meu maior erro em décadas: era como estar preso em um abismo negro com as paredes cobertas de musgos, coisas se moviam nas sombras, coisas que tremo só de lembrar. Então eu o vi, aqueles olhos lúgubres e sem brilho, todos eles. Como algo assim pode existir? Algo que nem deus ou o diabo imaginariam criar? Ele veio até mim das estrelas, de mundos distantes e decrépitos, mundos esses sem formas, sem um porque de existir...

...

Não consigo mais resistir. Esta manhã as nuvens cobriram o céu, uma sombra anormal tomou conta desta minha cova secular onde tenho vivido. Minhas mãos estão tremulas, esperando e temendo que o pior esteja à espreita. No meio do nada algo se movia por baixo do carpete, depois no armário e de lá para debaixo de minha cama. Isso está perdendo o controle, amanhã mesmo irei levar esses documentos ao banco, preciso escondê-los, preciso livrar o mundo desse horror que um dia tomou minha juventude... Preciso agir em relação ao Albehellion...”

...

- Van?

- Franz, que bom o ver meu amigo! O que lhe traz de tão longe nesse belo dia de começo de inverno?

- Recebi seu telegrama, e fiquei curioso sobre tamanha urgência. Disse que precisava da minha ajuda para um caso? O que houve? Ouvi boatos estranhos na estação...

- É bom tê-lo por perto meu amigo. Não queria alarmá-lo, apenas preciso de sua ajuda em uma situação deveras surreal... Vamos, venha comigo. Saberá de tudo ao lhe mostrar uma coisa.

Os dois andaram até o fim de um corredor mal iluminado, a caminhada foi mais longa do que parecia. Um cheiro tenebroso tomava o lugar, um cheiro vil; como se algo estivesse apodrecendo enquanto conversavam. “Um animal morto?” Pensou Franz. Os dois amigos pararam em frente a uma porta de ferro preta já bem carcomida pelo tempo. Aquilo provavelmente deveria estar ali há uns bons 80/90 anos, quem sabe. Franz não suportou o odor, e sem perceber levou seu cachecol de linho azul turquesa, já manchado e até um pouco deteriorado dado por sua ex-esposa Lisa quando da data de suas bodas de prata, ao nariz.

A porta se abre. Um rangido estridente e agonizante, como duas chapas de metal velhas roçando uma na outra, se faz presente inundando os ouvidos dos dois. A sala escura, de não mais que dez metros quadrados, guardava em seu centro uma mesa que lembrava aquelas de autópsia. Em um canto, instrumentos como bisturis, tesouras, bandagens sujas de uma cor estranha. Franz ao olhar para elas se pergunta se a cor havia sido gerada por processos químicos do contato com o sangue e algum produto específico para limpeza, ou se aquilo era mera influência da iluminação precária que entrava por uma pequena janela ao fundo. De qualquer forma, nunca tinha presenciado tal cor; uma cor sem vida de um aparente tom de roxo, com leves toques do que acreditou ser um verde. Van, se dirigindo ao centro da sala, segura com sua mão direita a toalha antes branca e agora do mesmo tom inumano das bandagens.

- Isso foi encontrado em uma casa nos arredores da antiga “cidade histórica”; são casas velhas, amontoadas, onde nem mesmo os raios de sol tocam o chão. Um lugar maldito, cheio de histórias sinistras e estranhas. Em todo o caso, fomos chamados por vizinhos após ouvirem gritos e estalidos muito suspeitos na madrugada de 02 de janeiro. Chegamos três horas após o contato devido ao difícil acesso ao local; morros, velhos campanários desmoronados pelas ruas... Enfim, entramos em um sobrado. O mau cheiro era insuportável. Dois dos nossos companheiros desmaiaram ao pisar dentro da casa. Se o acha ruim agora, tente imaginar como estava no dia. Chovia, raios estouravam ao longe, e no segundo andar, próximo a uma escrivaninha revirada e parcialmente manchada de algo viscoso encontramos isso...

Van em um único golpe ríspido retira o pano, levando Franz a um grito de horror, rígido, macabro, sem vida. Seu corpo se projeta imediatamente contra a porta por onde entraram trancando-a com um golpe seco. Os olhos perderam a vida naqueles segundos pós-revelação; como se sua alma tivesse sido arrancada de seu corpo por garras invisíveis, um calafrio aterrador corre por sua espinha.

- Franz! Que diabos! O que foi isso? Você quase me matou de susto...

- Mas que porra Van, como você faz isso comigo? Que abominação é essa?

- Pois eu já lhe disse! Isso foi o que, “sobrou”, daquele que morava no sobrado...

O que pairava sobre a mesa, se ainda poderia ser chamado de humano, era algo que Franz nem em seus piores pesadelos conseguiria imaginar. Ele calculou que aquilo quando vivo deveria ter por volta de um metro e oitenta, mas agora não passava dos 70 centímetros: estava jogado sobre a mesa como uma mera massa cinza de restos. O braço esquerdo era a única coisa ainda conservada do que parecia ser o resultado de um ataque de alguma coisa fora da realidade, como se a vitima tivesse sido sugada até a morte - sim, esta é a palavra, sugada. Seu “corpo” estava completamente retorcido. Franz ainda com o cachecol sobre o nariz percebeu que, na lateral perpendicular a porta onde deveriam estar às pernas, não sobrara muito além dos ossos do fêmur em completo mal estado. O abdômen estava dilacerado. Não havia órgãos, não havia sangue, um musgo estranho da mesma cor abominável antes vista cobria a carne rasgada. Franz deu a volta na maca e analisou o rosto, estava completamente retorcido, como se algo o tivesse agarrado por ali e esmagado todos os ossos da face formando na carne uma espécie de espiral; não se reconhecia onde antes eram os olhos ou boca. O braço direito estava separado do corpo na prateleira em baixo da maca, marcas de “mordida”, com cerca de cinco centímetros de profundidade, faziam-se presentes por todo o corpo.

- O que acha?

- Eu... Eu nunca... Vi... Algo assim. Como você encontrou... Isso mesmo?

- Em uma casa velha ao norte...

- E havia mais alguma coisa no local? - Franz sentiu o peso do ar a sua volta, se agachou sobre os joelhos, e foi com uma das mãos de encontro à boca como se sentisse vontade de vomitar. Estava tonto, mareado, nem a viagem de navio o havia feito se sentir daquela forma - Sim... Alguns móveis revirados, inúmeros livros sobre assuntos como ocultismo, alquimia, sendo a maioria em alemão; por isso me colocaram neste caso. Havia também uma escrivaninha com marcas de sangue e uma gosma que foi enviada para análise, mas sabe como são as coisas! O resultado pode demorar meses. Havia também papéis jogados sobre todo o local com escritos estranhos em um idioma que nunca tinha visto antes... E havia também...

Van faz uma pausa, tira de seu bolso direito da jaqueta um lenço verde-oliva com suas iniciais bordadas na aba superior direita, ele enxuga seu rosto suado, passa o lenço pelo nariz e o devolve ao mesmo bolso.

- O que mais?

- Havia uma pedra...

- Pedra?

- Sim, uma pedra: piramidal com abas irregulares... Ela estava próxima à cama, ao lado do corpo...

- Posso vê-la...?

Os dois deixam aquele aposento maldito e se movem de volta ao escritório. Está frio, as janelas estão fechadas, chove lá fora. Ao retornar a escrivaninha de Van eles se sentam e acendem, quase que ao mesmo tempo, um cigarro. Franz dá uma longa tragada olhando para o nada, pensativo, talvez tentando tirar da cabeça aquilo que viu no quarto lá em baixo.

- Aqui está. - A pedra é posta sobre a mesa, está enrolada em um pano escuro. Franz a olha de longe sem tocar, um medo que ele não sabe como surgiu percorre sua espinha, um mau pressentimento, um aviso. Ele a pega com a mão direita enquanto segura na esquerda o cigarro que retira da boca.

- O que foi?

- Esta... Cor... Reparou nela?

- O que tem a cor?

- Lembra-se das bandagens, do lençol, do corpo... É a mesma cor...

Franz segurava a enigmática pedra triangular de aproximadamente dez centímetros de base com suas duas mãos, o pano estava entre elas e a pedra. Por um segundo, seus dedos tocaram-na e algo acontece.

- Van! Van olhe isso! Já tinha percebido?

Ao tocar a peça, o exato local onde os dedos encostaram a superfície lisa do material mudara de cor. Como se raios esverdeados corressem por toda a região a partir do indicador até o cume, raios vivos, brilhantes, de uma luminescência encantadora.

- Como você fez isso?

- Eu não sei, eu só toquei nela. - Van, em vão, tenta fazer o mesmo, nada acontece.

- Não aconteceu nada!

- Mas como... - Franz retira a pedra das mãos de Van, dessa vez sem o pano que a protegia... Então ele viu... Seus movimentos cessaram. Franz caiu como um ídolo morto e rígido sobre o carpete velho que cobria a sala. Van corre para socorrer o amigo levantando-o nos braços. Horas se passaram.

- Mas que caralho Franz, Franz! O que está acontecendo com você hoje? Hey Franz... - Van dá tapas em seu rosto e ele acorda devagar.

- ... Eu vi... Era frio, quieto...

- Você não está bem... - Ele levanta Franz e o põe de volta na cadeira. - Vá para o hotel, durma. Está cansado! Amanhã conversaremos.

Franz seguiu o conselho do amigo. Atordoado, se levantou e pegou sua mala de couro que estava sobre outra mesa ao lado da escrivaninha de Van, tirou o chapéu do suporte, vestiu sua capa marrom de couro e saiu. Saiu sem se lembrar de onde estava e o que viera fazer ali, chamou o primeiro taxi que apontou na rua e deu ao motorista um pequeno papel com o endereço do hotel que Van havia escrito. Duas quadras a frente e mais três esquinas depois estava no local indicado; um prédio amarelo com a fachada ruída o aguardava. Pagou o taxi com algumas moedas americanas que levava nos bolsos, fez seu check-in, pensou em pagar adiantado por um mês, teve um pequeno problema nesse quesito por ter se esquecido de trocar suas notas de Coroa Norueguesa por Dólar, o pagamento seria feito posteriormente.

Seu quarto ficava no terceiro andar ao sul, 386. As escadas rangiam, a iluminação era precária, pequenos seres corriam por debaixo das portas para os corredores; seres medievais que deveriam estar por ali desde que o prédio fora fundado. Colocou a chave na porta, a tranca tremeu com o movimento. O quarto tinha em média seis metros quadrados com uma cama em baixo de uma janela empoeirada e sem cortinas, além de uma escrivaninha no canto oposto. O banheiro possuía apenas uma banheira manchada de tons ocre e um velho vaso sanitário sujo.

- Me disseram que os hotéis americanos eram terríveis, mas não a tal ponto.

Franz se jogou na cama que rangeu com o peso de seu corpo, não sentia fome, estava atordoado pela queda de antes. Apenas queria dormir, dormir e tentar entender o que havia visto. Tentar chegar a uma conclusão do que eram aquelas imagens em sua cabeça. Tentar conjecturar utilidades para a pedra triangular e, principalmente, imaginar como algum ser vivo poderia ter chegado aquele estado de deteriorização. Franz não sentia fome, apenas queria dormir. Ele queria...

II

Eu finalmente acordei. A noite durou mais tempo do que havia imaginado. Minha cabeça dói, meu estomago não consegue ingerir nem mesmo uma gota d’água sequer; estou enojado com as visões de algo que não posso simplesmente explicar.

O toque do colchão em minhas costas me faz sentir como se meu corpo tivesse sido tirado de mim. Ainda chove. “Deus! Há quanto tempo esta chovendo? Que horas são?” Já estou em meu segundo cigarro, mas esse gosto, esse... Odor em mim me enoja.

Ontem à noite me vi envolto em um sonho, um pesado e profundo sonho obscuro e aterrorizador que agora tento puxar pela memória sem saber o motivo. Foi como estar preso no limbo, no nada intangível: eu podia escutar uma melodia ao fundo, algo que somente nas profundezas do mais gelado inferno se pode encontrar, algo vil, mesquinho, um sussurro macabro que me contava coisas das quais nunca pretendia entender. E como cereja do bolo, o som de um rastejar pelas sombras, me vigiando.

Então a luz. Viajei por mundos sem nome, por dimensões perdidas e esquecidas no tempo. A coisa ainda estava às minhas costas, eu tentei me virar e ver, não ousei, estava petrificado pelo medo do desconhecido. Vaguei pelo que me pareceram anos e anos por um espaço frio e sem vida, inúmeras estrelas corriam a minha volta.

Então a queda. Cai por uma eternidade infindável, cai de encontro a meus medos e contra aquilo que acreditava existir... E encontrei os olhos.

...

Ouve-se batidas à porta.

- Senhor Franz? Senhor Franz? Está acordado senhor?

- Um minuto, preciso me vestir...

- Tem um policial o aguardando na portaria... Um tal senhor Van Perssen...

- Peça-o que venha a meu quarto!

...

- Franz, sou eu!

- Entre Van!

Van entra no quarto, olha em volta com olhares de desaprovação. Passando o dedo sobre a escrivaninha, ele cogita há quanto tempo aquele pó estaria ali, dirige-se até o banheiro, mas desiste ao reparar pelo espelho a cor do vaso sanitário. Dá meia volta em direção à cama e, sentando-se nesta, acende seu cigarro.

- Que cara é essa, meu amigo? A noite parece ter sido bem difícil.

- Tive um pesadelo, ou sei lá como posso chamar aquilo.

- Algo em especial?

- Não sei exatamente. Apenas de estrelas, viagens temporais, olhos grandes, muitos olhos, e uma melodia estranha... Acho que os acontecimentos de ontem me deixaram abalados.

- Até eu ficaria... Quando vi aquilo pela primeira vez não dormi por dias... Mas por hora apenas se vista, temos trabalho. Encontramos no banco da cidade os pertences da vitima! Foi difícil descobrir seu nome pelo estado que o corpo estava, mas conseguimos através dos vizinhos; de um menino em especial que todos os domingos levava seu jornal. Dentre eles há um livro de capa de couro, não conseguimos ler, está escrito em um idioma estranhíssimo.

- Outro idioma? Pra que?

- Bom isso é com você, nobre doutor em linguística, ideografia, paleontologia... Mais alguma especialidade?

- Teólogo e parapsicólogo...

- Deus! Para que tudo isso?

- Gosto de ler! - Os dois dão uma longa e calma risada.

Franz veste a mesma roupa do dia anterior, exceto pela camisa polo branca que decide de ultima hora colocar. Os dois dessem as escadas barulhentas do local. Mais alguns passos, e estão fora do velho hotel. Van tira as chaves do bolso, o carro de polícia está logo a sua frente. Eles entram, a chave é colocada na ignição, mas o motor não pega de primeira; duas ou três tentativas depois e eles finalmente entram em movimento. Seguem então de volta a central.

Franz tem receio no descer do carro. Ao pisar na entrada fica estático, sem reação. Teme pela visão daquilo, teme por novamente precisar tocar a pedra. Segurado pelos bíceps, ele é levado para cima; são apenas dez degraus até o escritório. Franz olha ao redor e apura seu nariz, não sente mais nada. Van percebendo a inquietude do amigo assegura que o corpo já fora levado para outro local. Os dois se sentam à mesa, e Van tira de uma gaveta uma caixa de metal típica de bancos. Franz estica seu pescoço tentando decifrar o conteúdo da caixa, revelado em seguida pelo companheiro policial.

- Aqui está! Alguns papéis datilografados e uma espécie de diário. Não consigo ler o que está escrito, parece alguma língua germânica a qual não entendo muito bem. - Franz os pega em sua mão.

- Deixe-me ver... - Ele coloca seus óculos - ... Está em norueguês.

- Esse é o livro do qual lhe falei; capa preta de couro escrito em algum tipo de código...

Franz olha o livro com atenção, lembra em seu formato uma agenda de bolso. Em sua cabeça, ele tenta encontrar padrões para a escrita a mão com o que parece ser lápis: hieróglifos, sânscrito, línguas orientais, não consegue encontrar uma correlação com outras escritas, terá que se dedicar mais a esta pesquisa.

- O que mais?

- Isso você vai adorar. - Van esboça um leve sorriso. - Havia dois cofres em nome de... - Van tira do bolso um papel - Ernest Hermann, ou podemos chama-lo de “aquilo” se preferir. - Franz não aprova a brincadeira. - Enfim, havia duas caixas, e dentro da segunda... Encontramos isso!

Ao olhar de que livro se tratava Franz fica inquieto. Pergunta inúmeras vezes quantas pessoas o viram em posse daquilo, quem mais sabia, se o dono do banco era de sua confiança, etc, etc.

- O Albehellion.

- O “o que”?

- Uma espécie de Livro Místico. Dizem que esse livro esconde verdades sobre tudo que existe, existiu ou existirá; um poder incalculável para aqueles que o possuem e ao mesmo tempo um perigo sem precedentes. Sua ultima localização, segundo se especula, foi na Alemanha em poder da SS. Van, isso não é um bom sinal! Coisas estranhas me foram contadas sobre esse livro, sobre seu possível autor. E se esse homem estava em seu poder, isso indica que provavelmente ele teve contato com as atrocidades engendradas pelo alto escalão militar, ou pior, estava à frente das pesquisas secretas de Hitler.

- Pesquisas secretas? Que caralhos você quer dizer com isso?

- Existia em meio a SS uma tropa chamada Misticismo. Era formada por cientistas, psiquiatras e médicos e, em sua grande maioria, seguidores de doutrinas ocultistas secretas; em especial O Culto a Hastur, uma entidade antiga dos pastores de ovelhas de regiões longínquas do velho continente. Escutei boatos enquanto estava em Oslo pesquisando tumbas antigas, tão antigas quanto à própria humanidade e em muitas das regiões havia sinais que indicavam a presença nazista no local. Se isto estava nas mãos daquele homem, e por subsequência, nas mãos do Misticismo, então coisas piores estão por vir, coisas que somente em seus pesadelos você poderia imaginar.

- Besteira! Isso são apenas lendas criadas por um povo supersticioso. Lendas, apenas isso meu amigo, lendas.

...

A noite mais uma vez havia caído. Franz toma seu taxi agora com um pouco de dinheiro que havia pegado emprestado com Van. Dirige-se a um café nas proximidades do hotel onde está hospedado, chove.

Enquanto toma um chá, Franz tenta ler os papéis que lhe foram entregues; nada faz sentido, exceto por uma palavra que se repete inúmeras vezes durante as cinco paginas daquele conto sem nexo de alguém com uma sanidade frágil: Carcosa. Franz sente uma pequena familiaridade com o nome, mas não o recorda de onde. Voltando a seu quarto, sua pequena bagagem é revirada em busca de seu material de estudos, consistindo em sua grande maioria, de livros exotéricos, ocultistas e história geral, mapas, alguns feitos por ele mesmo quando de suas pesquisas nas frias montanhas norueguesas e um pequeno caderno de anotações.

Mesmo contrariando seus princípios, o livro proibido fora trazido consigo para futuras pesquisas. Ele tentava decifrar aquela pequena agenda preta, talvez esse fosse o caminho para entender o conteúdo das cartas; talvez ali, naquela língua abissal e desconhecida, ele encontraria uma luz para todo esse mistério quando, repentinamente, um agudo som se fez presente. Franz tentava decifrá-lo, encontrar sua origem, em vão. O barulho como de bolhas se formando em um balde de lama se tornava mais e mais baixo, ao longe. Inquieto ele se levanta caminhando em direção a sua cama, algo brilha bem fracamente em baixo dela. Ele se aproxima e percebe novamente o ruído estranho e, ao se abaixar para ver os segredos que aquele mundo escuro e sujo poderia esconder, encontra a pedra triangular; a pedra hedionda que o havia feito ver coisas que ninguém deveria ver.

A pedra que provavelmente tinha uma grande ligação com tudo isso; lá estava ela, brilhante, perfeita, atraente. Ele se especula como aquilo fora parar ali. Franz, se esticando para baixo da cama a pega, e dessa vez, o horror se completa...

III

O homem viveu o Mito nos primeiros raiares de sol de sua existência. Ele viu a natureza crua e imaculada e se identificou, pois ele também sentia o imaculado em seu íntimo. Sentia o mistério que permeava cada campo, por detrás de cada árvore, dentro de cada gota de um rio ou da própria chuva. Ele se identificava com ela, pois assim também o era.

O que nos levou a abandonar o mito? O que nos levou a banalizar a natureza mística do universo em detrimento da ilusão? Você pode até mesmo questionar minha colocação dizendo que vivemos em uma era de religiosidade estrema, mas em minha humilde opinião não é o que temos. Escondidos por um véu de orgulho e soberba nos colocamos como centro de tudo; tudo gira a nossa volta, tudo deve ser revertido em nome de nossos desejos. Até mesmo Deus, ser criado para simbolizar o mito, se tornou banal. Um mero objeto que usamos a nosso bel-prazer para justificar nossos erros, abençoando cada decisão mesquinha quando nos é necessário.

O Mito morreu... Levando, assim, a descaracterização do sacro e daqueles que ainda o vivem, seja qual o for. Não há mais o “crer”, apenas “o que ganho em crer”. E que quero dizer com tudo isso? Ora... Que apenas creia.

***

Van é chamado ao velho hotel pela senhora que dele tomava conta; de meia idade, aparentando ter por volta de seus 47anos, cabelos semigrisalhos na altura das costas e um perfume de canfora que a todos causa náuseas. A maioria dos poucos hóspedes que ali viviam preferia não vê-la: seus dentes amarelados pela nicotina dos anos provavelmente eram o motivo. Ela veste um singelo e humilde vestido florido e um casaco, daqueles feitos de crochê, marrom. Sem dizer o motivo do telefonema, ela acompanha Van ao quarto de seu amigo e, ao abrir, revela o conteúdo daquele escuro local: não havia ninguém! Nem malas, nem roupas, nem um vestígio sequer da presença de Franz. Bem irritada com o fato, a velha senhora cobra de Van satisfações. O motivo de o inquilino ter deixado o local na calada da noite, provavelmente, sem pagar um centavo por sua estadia. Van, sem dizer nada, tira algumas notas do bolso e paga a divida. Ele entra no quarto, fecha a porta, e se pergunta o que havia acontecido com Franz? Por que ter abandonado o local sem o avisar? Irritado, e com toda a força de seus punhos já serrados, desfere um golpe contra a parede, uma leve camada de pó cai do forro em sua cabeça. Ele coloca seu chapéu e deixa o local.

Ao regressar a central de policia, Van telefona a todos que estavam envolvidos no caso; alguém provavelmente deveria ter esbarrado com Franz na ultima noite. Tudo em vão, apenas o dono da casa de chá teve algo a dizer: Franz havia estado lá na ultima noite; tomara chá e comera alguns biscoitos caseiros, nada mais. As 22h deixara o local para nunca mais ser visto.

A noite caíra mais uma vez e o paradeiro de Franz ainda era desconhecido. Van já se preparava para se recolher quando sua campainha toca. Ele mora sozinho, não tem mulher nem filhos, mas os quisera ter no passado; sua personalidade agressiva e cética o impossibilitara de tal feito. Era um mensageiro, e em sua posse uma carta telegrafada da Europa. Ao olhar o nome no remetente, um ódio toma conta de seu corpo que, sem perceber passa as mãos por seus cabelos já grisalhos e ralos, lisos, a altura do pescoço. Estava velho demais para aquilo, velho demais para entender as maldades criadas por um mundo vazio e sem sentido, seu desejo era de fazer em pedaços aquele envelope com carimbos estrangeiros.

Como um raio, Van dispara em direção a seu pequeno escritório; está uma bagunça como toda sua casa - um velho sobrado emprestado pelo prefeito devido a um caso de roubo bem solucionado há alguns anos. Livros, pastas com casos não resolvidos, a foto daquilo que habitava o sobrado jogado sobre elas. Embaixo da mesa papéis amassados, além de um rascunho do que parecia ser sua carta de demissão. Estava cansado demais, cansado de tudo e de todos. Uma enorme janela se fazia presente atrás de sua cadeira. Ao seu lado, um pôster do que parecia ser uma praia, provavelmente o Caribe. Sempre quis se mudar para lá, descansar, esquecer-se do mundo, ter apenas uma casinha à beira mar, comer o que pescasse; o que conseguisse com seu salário medíocre de aposentado. Esse sonho logo se tornaria realidade. Pensava em abandonar tudo! Esse seria seu ultimo caso.

Sentando-se, ele abre sua garrafa de uísque 12 anos que havia ganhado em seu ultimo aniversário do chefe de polícia; cargo que no passado desejava, mas que agora dava graças a deus de não o ter pegado. O uísque era de péssima qualidade, dizia que um gole era o suficiente para entorpecer o mais forte dos alcoólatras. Ele bebe um copo inteiro; está irritado, furioso. Utilizando uma espécie de navalha ele abre a carta, realmente é de Franz. Com um olhar fulminante ele começa a ler, estava decidido a dar um soco naquele filho de uma cadela assim que pusesse os olhos nele. Estava decidido a ir a onde quer que fosse, nem que vendesse tudo que tinha...

Então ele parou no segundo parágrafo, seus olhos se arregalaram com as coisas sem sentido que Franz havia escrito: coisas anormais, pesquisas diabólicas, cultos a deuses mais antigos que o próprio planeta, viagens no tempo, etc, etc. Ao terminá-la, ele repara naquilo que fora descrito como “a foto do local”. Van não conseguiu definir exatamente onde e como aquilo foi tirado. Como em tão pouco tempo Franz haveria descoberto tal coisa sem sentido?

Em vermelho, pintado em uma parede de rocha que aparentemente era uma montanha, estava escrito em alemão:

“Alles was im Carcosa ist musst hier bleiben”

“Aquilo que aqui está em Carcosa deve ficar”

IV

Estou mais uma vez trancado em um maldito quarto de hotel. Não consigo reconhecer mais a cor do dia. Nem mesmo o frio de um inverno espectral como este pode me tirar de minha poltrona de leituras; estou nela há tanto tempo que me sinto integrado ao estofamento embolorado. Não durmo, não como, não bebo... Meus olhos doem, eu vejo coisas andando nas sombras, coisas que não deveriam estar ali. Minhas mãos, ainda trêmulas, tateiam no escuro a procura de respostas. Por algum motivo sinto dentro de mim, dentro dessa carcaça cansada e envelhecida pelas verdades que até este momento não consigo compreender, uma estranha sensação de continuidade; eu já estive aqui, nessa forma, com o mesmo sentimento, em outra era, em outra vida. Vida essa que dentro de mim eu recordo como foi tirada. Tudo está se repetindo.

Provavelmente meu telegrama já deve ter alcançado as mãos de Van. O que estaria ele pensando agora? E se ele soubesse? E se eu contasse tudo que tenho guardado dentro de mim a semanas? Sim, semanas! Naquela noite maldita eu encontrei aquilo em baixo de minha cama, reluzente, de um translucido aterrorizador. Então eu dormi, dormi pelo que me pareceram incontáveis eras de terror. Dormi, e toda a sabedoria do mundo fora enterrada em meu âmago. Eu viaje por anos e ao mesmo tempo por tempo nenhum por um espaço sem vida, sem forma. Quando finalmente recobrei meus sentidos, estava de volta a casa onde nascera e fora criado... Como se nunca a tivesse deixado.

Como isso é possível? Como algo tão inumano e irreal pôde acontecer? Algo que desafia todas as leis criadas pelo homem... Homem? O que somos nós no fim das contas? Existiria outro Eu em algum lugar desse tempo e espaço perdidos? O que estaria Van pensando neste exato momento? Ele vira a foto? Será que ele havia reparado na data de postagem da carta?

...

Tenho progredido em minhas pesquisas e, até o prezado momento, consegui uma tradução que faça sentido para o conteúdo das cartas. Ainda mantenho esses papéis trancados. Coisas estranhas estão escritas ali, coisas que se forem realmente reais fariam nosso mundo tremer com o mero vislumbre; tudo não passa de uma mentira, uma farsa, um rito macabro e infame de carne e sangue de um rebanho pronto a ser abatido.

O caderno de capa negra em parte me é um mistério. Encontrei um padrão, graças a “minha viagem” para aquela escrita tão antiga quanto a terra, e realmente a é. Os mapas ainda me intrigam, muitos são das regiões montanhosas desse país longínquo.

Em minhas andanças eu consegui encontrar aquilo que me foi mencionado nos documentos como A Porta, um paredão de pedras tão alto que mal pude perceber onde era seu fim. Por toda sua extensão, que provavelmente está em torno de 300 km, existe uma gama de velhos desenhos de um povo que a muito desaparecera da face da realidade, mas o que mais me chamou a atenção é a intrigante frase desenhada em certa altura em nosso idioma, não ouso pensar nela, o mero vislumbre me fez o corpo inteiro gelar. “O que estaria esse paredão arcaico escondendo?” - Eu me pergunto.

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Já se passaram meses desde minha viagem por mundos estranhos e perdidos dos quais não esquecerei jamais. Eu fui o coroado, o escolhido, e hoje mais do que nunca tive essa sensação. Eu terminei a tradução do caderno de capa negra, denominando-o em minha mente como Os Segredos do Livro Amarelo. Estou definhando, meu futuro é incerto; a cada dia eu sinto um bafo frio e ancestral em meu pescoço. Como se algo estivesse me espreitando, suplicando minha visita a sua tumba decrépita; não tenho mais muito tempo de sanidade me sobrando. Deixei minhas anotações em uma agenda de bolso, uma cópia das traduções das cartas encontradas com a coisa do sobrado e trechos pertinentes do caderno de capa negra, já traduzidas, em uma caixa nos correios da cidade. Essa caixa, por sua vez, deverá ser enviada ao meu amigo Van, que nunca mais esteve sobre minha vista, em dois ou três meses a partir da data de hoje. Estou decidido! Consegui materiais de alpinismo, mapas, suprimentos e uma velha pistola. Pela manhã, irei ao encontro do paredão maldito mais uma vez, abrirei os portões da cidade perdida, e me encontrarei com minha provável maior descoberta em todos esses anos de estudos místicos.

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O dia amanheceu cinza, não se ouvia nem mesmo o bater das asas dos pássaros, o vento não soprava, nenhuma viva alma vagava pelas ruas; um silêncio aterrorizante aos ouvidos de pessoas comuns, mas não mais a mim. Estava tão habituado ao escuro, que não me importava com esse vislumbre do horizonte vago e sem vida. Peguei minha mochila e meus equipamentos e me dirigi, a pé, até as mais altas montanhas geladas desse país selvagem. Caminhei pelo que me pareceram seis horas ininterruptas, mais alguns passos e estaria aos pés da montanha da loucura, como gostava de chamar. Ao chegar ao local destinado, procurei uma entrada circular no paredão de horrores assim como havia me instruído o caderno. Não o encontrara, o dia estava nublado demais; as nuvens baixas e grossas impediam minha visão. Parei em uma planície vazia e descansei por algumas horas.

Recobradas as forças minha viagem deveria continuar. A noite caíra, mas estranhamente não havia escurecido muito mais do que já estava, um mau pressentimento me tomou a garganta. Às 22 horas do “mundo real”, eu encontrei aquilo que acreditava ser à entrada da casa dos horrores, não se via um palmo à frente do buraco. Precisei acender algumas tochas para clarear o caminho antes de adentrar aquela tumba. Tentei comer alguns biscoitos que trouxera do hotel, meu estomago os rejeitou. Um gole de água com intuito de vencer o enjoo e o medo e finalmente entrei na montanha...

Estava escuro, não compararia com a noite, pois seria como comparar duas coisas completamente diferentes: era algo maligno, um ar podre pairava a minha volta. Andei por pelo menos uma hora e meia até chegar ao centro da montanha da loucura. Era enorme: fora escavada na pedra milhões de anos antes do nascimento da civilização, contendo uma forma triangular na base com uma abóbada semelhante à de velhas igrejas góticas europeias, uma luz descia do teto. Apaguei as tochas e, quando segui o facho que de um tom azul celeste tocava uma superfície oval, percebi ali um gigantesco obelisco que ornava o centro daquela capela profana. Como um ovo de mais de 25 metros de altura a meu ver, estagnado sobre outra peça retangular que formava sua base. Não havia sustentáculo entre o obelisco e a base, ele simplesmente estava parado sobre ela.

Eu me aproximei, toquei sua fria faceta e um estranho costume me veio à mente: minhas mãos já haviam tocado aquilo. Aquela superfície perfeitamente lisa e polida, mesmo depois de séculos cabalísticos de abandono, ainda brilhava em um tom de roxo estranho aos meus olhos. Meu toque gerou raios esverdeados que percorreram de sua base ao topo. Eu já vira aquilo antes! Na delegacia, em baixo da minha cama... Eu já vira aquilo antes e com a confirmação dos escritos antigos sabia do que aquilo era capaz. Após um breve descanso levantei-me com o cansaço já se abatendo sobre minhas pernas, eu precisava ir embora, já havia feito descobertas demais, mais do que desejara.

Recolhi meus pertences, e me virando mais uma ultima vez para o obelisco me perguntei se tudo aquilo escrito no caderno de capa preta fora real. Admirei sua beleza macabra por mais alguns segundos, não havia mais luz descendo do teto, precisava me apressar para não me perder nas trilhas.

Tomei o que me pareceu um atalho; de acordo com o mapa mais alguns metros à frente e logo estaria na saída sul da montanha. O túnel se tornara mais alto do que imaginara, estava frio, úmido; por todo o lado, um musgo cintilante de tom cinza prata recobria o local. Um calafrio tomou meu corpo, suava como se estivesse no centro de um enorme vulcão e, ao mesmo tempo, o vento gelado cortava meu rosto. Um sopro vindo das minhas costas apagou uma das tochas deixando o local em uma semiobscuridade que me desagradou, tentei acendê-la mais uma vez usando a outra tocha que levava na mão esquerda... Então eu o vi...

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Uma voz encheu meus ouvidos de horror. Minhas pernas não se moviam, meu corpo havia perdido a alma; aquilo estava me vendo, aquilo estava bem a minha frente, eu o despertara... Por deus como eu fiz isso? Havia tomado todos os cuidados, pensava comigo mesmo. Ele rastejava como um demônio fugindo da extrema-unção. Olhava-me, me analisava. Aqueles olhos sem vida, sem brilho. Ele estava ali, parado, me olhando.

Eu gritei. Estava aterrorizado demais para correr, estava sem forças para me mover... Então eu gritei, gritei como se esse fosse meu último momento, gritei como se não houvesse saída para mim; meu gesto o fizera recuar. Eu o assustara por segundos, segundos esses que me foram suficientes para, em um impulso inumano, lançar minha tocha ao seu encontro e correr... Eu corri, corri sem olhar para trás, corri para a fresta na rocha a minha frente, corri gritando e chorando como um bebê faminto pela vida e por mais um raio de sol sequer. Estava enlouquecendo.

Quando cheguei ao lado de fora da montanha à noite já caíra. À minha frente, um penhasco do qual nem mesmo o fundo eu poderia ver. Este era meu fim, eu sabia. Eu sentia por todo meu corpo que tremia, chorava e gritava; não havia mais volta. Agarrado ao paredão até minhas unhas sangrarem, eu sabia que não conseguiria nem mesmo olhar para trás devido ao medo do vislumbre; ele estava lá, me esperando na escuridão. Sem pensar muito, saquei o revolver que trazia a minha cintura...

- AQUELES OLHOS... AQUILO ESTÁ LÁ, ELE ESTÁ LÁ, ELE ESTÁ LÁ, ELE ESTÁ LÁ...