‘O sonho coincidiu com a realidade,
e as mesmas bocas uniram-se
 na imaginação e fora dela. ’

 ---Machado de Assis---


 
Morgana que estava muito interessada em desvendar os mistérios do sonho e do pesadelo, levou um susto. E assim que pôde falar, disse carinhosamente: “ Safadinho! Quase me sufocou com teus beijos.”
 — Gostei do ‘safadinho’! Na variante linguística carioca, safadinho pode  significar menino travesso. E fazer travessuras é muito bom!
— Não me fale em Rio de Janeiro, me dá medo de bala perdida!
— Durmamos de mãos dadas, a aurora não tarda chegar.

 O dia  era todo amanhecido.
  Robert   precisava dar entrada em seu requerimento de férias, e providenciar,  no prazo mais curto possível, os passaportes. Adiantou o serviço, deu pareceres, despachou  e organizou as gavetas da escrivaninha.

Mais  tarde,  no escritório da multinacional de São Luís,   ele  ligou para o Rio.

— Quero falar com Ravenala!
— Pode falar, maninho! Não reconheces mais minha voz?
— Sim, sim, é que a ligação não está boa.
— Não é a ligação.  O prédio está em reforma e a barulheira é infernal.
— Ih, não me fale em inferno. Estou com a passagem comprada para o céu.
— Que brincadeira é essa de morrer?
— Morrer nada! Viajo em lua-de-mel nos próximos dias.
— Mas que surpresa! Nem me convidaste para o casamento!...
— Não te convidei por temer que não viesses.
— Se tu casasses, ainda que fosse com uma ogra, eu iria à festa.
— É casamento de mentirinha. Não houve papel passado nem no civil nem no religioso.
 — Quem é a felizarda?
— Adivinha!
—Não faço a menor ideia. Não conheço ninguém que mora em São  Luís do Maranhão.
— Esta, tu conheces.
—Tenho certeza que não.
— Conheces.
— Para com isso, diz logo, engravidou uma leoa no cio?
— Não! Não sei... Ela foi nossa colega no Marista.
— Ah!...a Morgana... Sempre quis ser minha cunhadinha. O Victor Augusto deu de ser padre e ela pegou o outro irmão, meio postiço, é claro, mas um bom irmão!
— Posso falar com a Morgan?
— Estou no escritório. Ela, em casa. Ligue em meu fixo. Morgana está lá.

Mal acabara de lavar as vasilhas do desjejum, o telefone anuncia a presença de uma pessoa na linha.

— Olá, cunhadinha. Parabéns pela decisão que tomaram. Não é porque ele é meu “irmão”, mas fizeste, verdadeiramente, uma boa escolha.

Ravenala  não quis dilatar a prosa. O assunto era sério para ser tratado em uma conversa informal. Ela  estava de mente e coração abertos para acolher Robert   e Morgana em sua casa, quando da passagem pelo  Rio de Janeiro, em viagem a  Cancun. E com muito cuidado, fez o convite para seu casamento com Daniel. Antecipou que o  matrimônio se daria durante os dias em que Robert e Morgana estivessem no Rio. Eles seriam testemunhas.

— Já sabes da nossa viagem.
— Sim. O Bob me falou.
— Ele está no escritório. Vai tirar apenas vinte dias de férias.
— Vinte. Fica uns dois ou três no Rio...
— Vai dar certo.
— Até mais vê-la, cunhadinha.
— Até.

 E se casou de vermelho com um arranjo da mesma cor no cabelo, não exatamente um arranjo, uma rosa, apenas.

Terminada a celebração, Robert    não estava na fila para cumprimentar os nubentes.  Caminhava na Mariz e Barros sentindo-se um cacto. Adiante, tomou um táxi para Copacabana e se sentou ao lado do mineirinho de Itabira, que folheava as páginas de seu livro de ferro. O poeta gauche não dava conta das deusas que desfilavam de biquíni, a dois palmos de seu nariz.

— Com que pelejas? — Indagou Robert  
— Luto com as palavras, mas minha luta é vã, disse o mineiro.

Robert   provocou o poeta, com um jargão dos tempos de Sêneca e Petrônio:

Virtutem verba puta.

Enquanto dizia essas coisas, uma loira escultural, parou, pôs as mãos na cintura, balançou as ancas na frente deles e perguntou:

— Qual dos dois me chamou de puta? Se nenhum responder, vou ter que arrebentar os dois.
— Não minha filha, ninguém te chamou de puta. Apenas Robert   me perguntou se palavras são virtude...

Mineirinho fechou o livro, despediu-se de Robert   e fez menção de partir.  Robert   deu um passo adiante, como se quisesse impedir um velho atobá de alçar voo. Acariciou a cabeça bronzeada do homem de ferro e gritou: “Você é poeta, eu faço rimas!”

Não era escasso o talento do grande poeta. Mas Bob não pôde beber, fartamente, na fonte da sabedoria de Drummond, pois foi interrompido pelo som ensurdecedor de um carro que passava com o porta-malas aberto, tocando em níveis de decibéis intoleráveis:
 
Parapapapapapapapapa/Parapapapapapapapapa
 
O carona, ostentava  um equipamento de som ultramoderno, e ja não se sabia se o batido de ladas era demetralhadora  ou do equipamento do som mecânico.

A festa na casa de Ravenala toma ares de terror e medo:"Robert sumiu..."


— Alguém viu Robert — Indaga Ravenala.
— Muitas vozes,  responderam: “Não vi...” “Não vi...” “Não vi...”
— Eu o vi pegando um táxi. Julguei que tivesse brigado com a mulher, e resolveu ir sozinho para a festa.
— Faz horas, então?
— Faz.
Ravenala enrtristeceu.

— Podemos cancelar nosso cruzeiro — disse Daniel.
— Dan, onde quer que eu esteja, serei  perturbada com o desaparecimento do Bobinho.  Sabes que ele era como um irmão para mim.
— Pode ser que  tenha ido rever alguns amigos no bar do Português.

O semblante de Morgana, antes austero e sombrio, se refez sereno e encantador. Sabia desfazer o nó da garganta com um sorriso que   ia-se tornando angelical e franco, na medida em
 que  ela enclausurava sua dor numa cela e  jogava a chave fora.


O clima era tenso.
Daniel repetiu o que dissera antes:

— Podemos cancelar nosso cruzeiro.
— Não vamos cancelar. Quero ouvir o canto da sereia.

Ele entendeu a que canto da sereia Ravenala se referia. Mas não gostou da intimidade dela tratando Robert por  Bobinho, afinal, Bob e Ravenala foram quase casados. E procurou expulsar, da sua mente, a cena quando na Basílica Santa Terezinha, entregara Ravenala a Robert como Abraão entregou Sara ao faraó.

A  história se repetia. Assim como o faraó devolveu Sara a Abraão, também Robert   devolveu Ravenala a Daniel. Ele porém, não permitiu que o ciúme atrapalhasse o projeto de vida que tinha a dois. E voltou a refletir sobre o canto da sereia, a que se referiu Ravenala:" A lenda pode vir de uma realidade  relacionada com as baleias. A baleia canta,  normalmente, na época de acasalamento, daí, os antigos atribuírem o misterioso canto a um ser desconhecido e fantasioso chamado Sereia. Assim, a ficção  acabava influenciando na vida real e os marinheiros, atormentados que eram pela solidão de meses a fio,  sem contato com o mundo exterior, recobravam as forças e resistem ao desânimo, na esperança de que a qualquer momento, pudesse  surgir das águas uma encantadora mulher com cauda de peixe."

Percebendo que  Daniel orbitava um mundo diferente daquele que no momento viviam, Ravenala disse-lhe docemente: ‘Volte, meu filho!  É  hora do embarque. ’

—Desculpe-me. Estava pensando como seria a vida de um marinheiro.
— Ora, Dan! Com certeza dando nó de marinheiro e contanto gaivotas. Afora isso, só céu e mar. Tormentas, ribombar das águas quebrando na costa noticiando que estão prestes a desembarcar.
— Gostei do ribombar. Parece que o movimento do mar agitado, guarda sintonia  com o baticum do coração, quando se aproxima  a hora da chegada...
— Poético e verdadeiro. Agora venha depressa, o  Paraíso nos convida a passear.

A mão estendida do comandante apontava a direção do embarque.

— Bem-vindos ao navio mais seguro que o homem  já construiu. Nem Deus afunda o Paraíso  Sutton Hoo.
— De Deus não se zomba, disse baixinho, Ravenala. E fez o sinal da cruz na testa.

 Naquela hora, sem entender muito porque ela se benzeu,Daniel  repetiu os movimentos dela e traçou também sobre a sua testa o sinal cruz.

 — Não gostei dos modos do comandante.
— Que modos?
— Esquece. Dan.

O comandante  conversa e gesticula recepcionando os passageiros: "Venham realizar sua melhor fantasia,  embarquem no Val Paraíso Sutton Hoo e conheçam o mundo que poucos tiveram a oportunidade de ver. Embarquem no navio mais seguro do mundo.”

— Bem-vindos a bordo — disse a marinheira em  cujo casaco, podia ver-se duas divisas e uma medalha  dourada na lapela.

Ravenala fechou o cenho.


— Não gostei. Aquela marinheira te olhou de modo diferente.  
— Para Ravinha...

  Ravenala  e Daniel ocupam o camarote que outrora  pertencera  ao rei Sigebert. Viajaram sete dias e sete noites, encantados com o entardecer em alto mar: Montanhas de águas se elevam e se quebram barulhentas chocando-se com o costado do navio. E vez  por outra, a monotonia é quebrada pela presença de golfinhos que seguem a embarcação.

Durante os primeiros  dias, navegaram sem maiores problemas, nada mais do que um susto, para ‘marinheiro de primeira viagem’. Mas... No sétimo dia, naufragam. Nadaram durante muitas horas, agarrados nos destroços do navio, até  alcançarem  praia.

— Meu bem, não te desgarraste nem por um momento, de tua maleta. Não te preocupas em salvar minha vida?
—Sem a maleta não poderei salvar a ti nem a mim mesmo. Na maleta estão estão meus inventos, e algumas peças que podem tirar-nos de uma ilha deserta.
— E quem disse que quero sair da ilha? Vamos procurar alimentos, construir um abrigo. Vivermos um mundo novo; sem violência e sem guerra. Não aguento mais o inferno em que se transformou a vida na  cidade. Dou glória a Deus pelo naufrágio, que salvou nossas almas do inferno.  “Oh, quão desumano é o convívio com os humanos...”

***
Adalberto Lima, fragmento de "Estrela  que o vento soprou."
Imagem: megacurioso.com.br