O CABRITO E A SERPENTE

O cabrito não sabia que naquelas cercanias vivia uma jibóia. Jibóia velha, mas jibóia. Ela, desacostumada a caçar, se satisfazia com as ervas daninhas. Sob o contexto da idade, tornou-se vegana. Ele, inocente, imprudente, vagava sem rumo, longe da família. A despeito dos conselhos antigos, resolveu ir além dos limites impostos. A jibóia só piscava, a fim de economizar energia para um dia labutar. Dia e noite, noite e dia, carregava a esperança de um dia usar o resto de suas forças numa refeição mais suculenta. E numa tarde meio morna, lá ia o cabritinho caminhando devagar, apreciando sozinho a beleza do lugar. E, mesmo detrás de uma catarata ancestral, a jibóia viu o jovem carneirinho. Pela primeira vez na vida, a serpente chorou. Entendia como uma dádiva receber tão fina porção no final de sua vida, no fim de sua missão. Ele não sabia de nada além daquela curiosa vontade de desbravar horizontes. Resolveu então descansar naquela encosta tão acentuada, tão boa de se deitar. Não sabia que era nela que ele vinha se encostar. A caminhada alongada fê-lo adormecer. Acordada, ela sentia junto às narinas, o cheiro doce da pele macia. O sangue quente pulsando deliciosamente fresco na jugular. Bastava um golpe rápido e certeiro. Bastava. Mas, não bastou. A jibóia sentiu-se enternecida como nunca na vida ao ver o corpo entregue, sem resistência, aninhando- se a sua pele antiga e nodorrenta. E o calor daquele corpinho era tão agradável que ela, tomada por um sentimento de maternidade, decidiu por fim poupar- lhe a vida. Ele, sem nada entender, despertou sorrindo. E deu com os olhos dela olhando nos seus. Achando tudo engraçado, uma lambida na cara ele lhe deu. Ela, envolvendo-o pela cauda, o ergueu o mais alto que pôde. O cabritinho gozava de tamanha felicidade. A jibóia já se sentia mãe de verdade. Quando ia já indo o sol, o cabrito lembrou- se de casa e disse que precisava voltar. Deu um cheiro na serpente e prometeu voltar. Ela tão indefesa e antiga, não pôde suportar, vendo que ele se ia, tão puro e sincero pelas estradas da vida. Sem medo ou amarras, correndo todos os riscos que a vida pode impor. Ela

se contorceu em angústia e preocupação até que o muito pensar lhe fez explodir o coração.

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 19/05/2018
Reeditado em 20/05/2018
Código do texto: T6340398
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.