ESTÃO TRAMANDO A SUA MORTE

Imagine que alguém esteja tramando a sua morte. Não faço ideia de por que fariam isso, e nem você. Mas não é um bom dia que se desenha quando logo cedo você tem uma notícia como essa, por mais estranha e improvável que seja.

O despertador toca às seis e meia da manhã e você acorda. Sua esposa ainda dorme, não tem pressa de se levantar. O trintrinar a incomoda, e mais ainda a luz indireta que você precisa acender para se arrumar. De café da manhã tomado, ou como você chama de forma hiperbólica um único copo de café com leite, logo está pronto para pegar o ônibus das sete horas. Ainda não está tão cheio, e você consegue um lugar à janela na terceira fila. Não é pela paisagem que escolhe a janela, porque muito em breve estará dormindo. Depois de uma noite mal dormida, e todas as noites têm sido mal dormidas ultimamente, as pálpebras não lutam para ficar abertas.

Nem quando o ônibus chega à Estação Central você acorda. Um mundo de gente entra e ocupa os poucos lugares vagos, e se espreme nos corredores e em todos os espaços. Um homem de meia idade, barba grisalha e olhos fundos senta-se ao seu lado e você nem repara. Seu cérebro estava longe, sabe-se lá onde, em um sonho sabe-se lá com quem, quando de repente é chamado de volta à realidade.

Estão tramando a sua morte, diz o homem, cutucando-lhe o ombro. Que susto!, o cutucão e a frase insólita. Como?, desculpe-me, mas eu o conheço? O rosto não lhe é inteiramente estranho, mas não consegue identificar de onde ou de quando, talvez o pai de um amigo de infância, o amigo distante da esposa ou apenas um companheiro diário do transporte público, aos coadjuvantes a memória não dispensa mais que meia dúzia de neurônios. Não, ele responde, mas eu, sim, o conheço bem. O senhor disse que... estão tramando a minha morte? quem são... eles? Perdão, conclui, mas isso é tudo por hoje.

O homem se levanta, abre caminho pelo espaço virtual entre os passageiros e se dirige à saída. De onde o senhor me conhece, ensaia um grito, mas não adianta, ele já está longe e não vai ouvir. Sua cabeça está cheia de interrogações, e mesmo assim você se recosta, tenta tornar a dormir. É impossível. A frase que reverbera em sua cabeça está escrita a dedo na sujeira do vidro da janela: Estão tramando a sua morte.

O ponto final fica em frente ao seu escritório. Como qualquer outro dia, você salta. Mas, diferente de ontem, anteontem e dos últimos dez anos, você está desconfiado. Olha para um lado, para o outro, e se pergunta se um daqueles olhares está de alguma forma diferente, um erguer de sobrancelha, uma piscadela suspeita. Será de você que aquele casal ri? Você tenta ouvir o que dizem um ao outro, se acaso mencionam seu nome. Estará nessa multidão o seu algoz, ou estará à sua espera no trabalho, em casa, aonde quer que você vá? Tenta identificar os rostos ao redor, são muitos, e cada um fala uma coisa diferente, as frases se misturam, e você dá uma volta, e outra, e as pessoas andam e falam e tossem e atendem o celular, e você roda, e roda, até que cai tonto no chão. Um sujeito lhe dá a mão e o ajuda a se levantar. Quando você se vira para agradecer, a cabeça ainda a girar, ele já se vai, é um menino, o cabelo comprido a balançar às costas e uma inscrição na camisa que você de pronto reconhece: Estão tramando a sua morte. Você tenta correr, a multidão se fecha, não adianta, ele não está mais ali.

De pé diante da portaria do edifício, liga para o escritório. Não posso ir ao trabalho hoje, não estou me sentindo bem. A ideia foi de supetão. Você não tinha pensado em que sintomas diria estar sentindo, se tem vertigem, febre ou diarreia, se está branco, vermelho ou amarelo; simplesmente não está se sentindo bem. O que você está sentindo?, pergunta-lhe o chefe. Antes que o silêncio se torne constrangedor, você corta a ligação e desliga o aparelho. Algo lhe diz que você jamais vai precisar responder a essa pergunta, que em breve ela se responderá por si própria.

Volta para o ponto e pega outro ônibus, dessa vez com destino à rodoviária. Não tem nada planejado, mas lhe parece o correto a fazer. Se alguém está tramando a sua morte, é melhor que saia da rotina e fuja. E em quinze minutos você está diante de um quadro eletrônico com os destinos de mais de duas dezenas de ônibus intermunicipais.

Santa Rita do Silêncio.

O nome lhe parece correto. Nunca ouviu falar dessa localidade, nem sequer imagina para que lado isso fique, e espera sinceramente que os conspiradores também não. Compra o bilhete e se instala à janela da terceira fila. E quando já estão para partir, você e mais cinco passageiros, entra um sétimo, um homem de meia idade, barba grisalha e olhos fundos. Quase todas as cadeiras estão vagas, mas ele resolve se sentar ao seu lado.

Quem é o senhor?, você pergunta. Estão tramando a sua morte, ele diz, não respondendo ao que lhe foi perguntado. O rosto é definitivamente familiar, o que aumenta sua angústia. Quem? por quê? quando? onde? quem é o senhor? por que me diz isso? As perguntas serão respondidas a seu tempo. Ou não.

No resto da viagem você tenta extrair respostas do velho, sem sucesso. Não importa que você se estresse, se descabele, que o ameace, aquelas palavras enigmáticas foram as últimas, depois delas mais nenhuma, até o destino final. E então, eis você descendo para a plataforma de desembarque da desconhecida cidade de Santa Rita do Silêncio.

Do lado de fora do ônibus, uma multidão aguarda. Sua primeira reação é de espanto, em nenhum momento pensou que a cidadela fosse tão populosa, ou que tanta gente esperaria a chegada de meia dúzia de passageiros. Mas aos poucos você identifica, no meio do povaréu, sua esposa, O que ela está fazendo aqui, e depois sua mãe, seu chefe, seu colega de ginásio, sua irmã, seu estagiário, sua primeira namorada, e o homem de barba grisalha e olhos fundos, que, você não tinha reparado na semelhança, é a cara do seu pai que há muito já se foi.

Quando você põe os pés no chão, todos correm ao mesmo tempo na sua direção.

Estiveram tramando a sua morte.