O CONTO APÓCRIFO

O conto que eu não contaria agora despencou no meio das minhas indagações e foi logo subvertendo a natureza do que eu teria para revelar. Ignorou o próprio ato de constituição do meu pensamento, as ideias de que eu poderia dispor e, de imediato, posou de narrativa oficial.

A partir dessa sua intromissão, eu não mais consegui alcançar qualquer memória cronológica, fotográfica, sensorial ou afetiva que pudesse sustentar a mais rude das narrativas. A forma surpreendente com que ele surgiu, acabou usurpando o meu direito de autor e permitindo que o próprio fosse o enredo condutor da minha subjetividade.

Assim que me dei conta dessa minha nova condição, tentei até imaginar uma saída, desenvolver algum argumento em tom de protesto, mas logo percebi que isso apenas soaria repetitivo. Na verdade, qualquer pronunciamento que eu fizesse, não iria além de pura vertente daquilo que já me apareceu transmutado nesse conto desnaturado, verdadeira usina do capiroto, o infinito aberto em três dimensões.

Então, era ele ou eu. E só dava ele, porque eu não tinha chances, fui a reboque dos seus desmandos retóricos e duvidosos, em meio a sua chuva contagiosa de palavras tuberculosas, tentando colar figurinhas repetidas da minha linha do tempo ou reavivar esperanças já esmaecidas em um espaço dimensional que eu mesmo já desconhecia. Eu já não tinha nenhuma noção do ontem, muito menos do que iria acontecer entre o agora e o depois; tudo, tudo, tudo estava sendo coisa nenhuma, o espectro da minha vã expectativa, a simples ilusão de existir.

Sem opção, resolvi, em um ato de desespero, me iludir com a possibilidade pueril de poder escolher por simplesmente não optar... Pois é, segundo o meu raciocínio romântico, ainda havia para mim uma opção, mas eu é que a refutava caprichosamente, não importando qual fosse essa opção, o seu teor. O que deveria importar de verdade para mim é que eu ainda a tinha, mas, principalmente, a desprezava.

Dando ouvidos a tais absurdos, logo logo senti instaurar-se em mim uma sensação débil e patética, aliada a uma vontade cada vez maior de rir por nada. Então, ri. Ri aos borbotões e acabei perdendo os sentidos por não poder respirar enquanto gargalhava.

Quando despertei, pude perceber que a musculatura em torno da minha boca estava bastante dolorida e, por isso, eu não sentia mais vontade de rir.

A partir dali, foi crescendo dentro de mim uma certeza meio tímida, a de que aquilo tudo estava acontecendo porque eu mesmo permitia, porque eu pensava, pensava, pensava e logo tudo acabava virando verdade absoluta. Nesse caso, experimentei pensar ao contrário de tudo aquilo: eu como o autor, o algoz daquele conto chinfrim, prolixo e... não, não funcionou. Eu não me sentia liberto, não seria em contrários o desfazimento dessa situação em que eu me encontrava.

Mas o meu embate continuava recorrente, não arredava pé. Se eu não era personagem, não era autor desse conto, que diabos eu era então?! Peraí... Isso parece ser genial: esse conto apenas existe e pronto — pensei! —Isso me faz sair de um recurso narrativo maniqueísta de ações do passado. Ainda segundo essa estratégia de raciocínio, eu deveria considerar tão somente que estava lendo um conto, sei lá, apócrifo! — isso não importava. Além do mais... puta merda, acabou o gelo!

Masé Quadros
Enviado por Masé Quadros em 16/11/2018
Código do texto: T6503740
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