Terra Vermelha

Todos naquela terra viviam sob a mesma luz, o mesmo ar, o mesmo vento que ventava às avessas sempre que o céu trovoava. Todos, curiosamente, também tinham pernas, braços, cabeças, intestinos, pênis, vaginas, cérebros e muitos ossos. Era uma terra de terra vermelha, barrenta e viva. Uma cidade povoada por gentes de todas as cores, todos os credos, anseios e dores. Gentes sofridas, plenas, insólitas. Gentes iguais entre si. As casas daquele lugar, todas amarelas de tons esverdeados, perfilavam como num aquário de águas límpidas, cortadas por extensas ruas de paralelepípedos onde a chuva que brotava dos céus pudesse enamorar a terra barrenta. Eram milhares e milhares de casas, todas do mesmo tamanho e com a serventia de abrigar vidas. Nada mais. Não havia casas exuberantes para encher os olhos ou afirmar algo que nunca se sabe bem o que e pra quem. Havia também escolas, quitandas, universidades, repartições, farmácias e bares, onde se podia gargalhar e beber e contar estórias sempre que a lua surgisse nos céus. Tudo lá prosperava. Somente banqueiros e seus bancos pomposos de ares gélidos tinham sido extintos, há mais de cem mil anos, desde que a “solidariedade” passou a operar como moeda local. Tudo era medido não mais em arrobas, mas no tanto de afetação solidária que algo causava, sem acúmulo, sem riqueza, sem desiguais. Um medicamento podia custar dez, cem ou mil “solidariedades”, a depender da necessidade daquele que padece. Não havia carros ou aviões, e tudo se movia em pensamento criativo, a imaginar estar aqui ou acolá. Quando muito distante, usava-se o caminhar e o pedalar como método, sem pressa. Todos os trabalhos eram igualmente valorados, exercidos conforme o ofício e o desejo, com pagamentos realizados de acordo com a necessidade. Um estendedor de roupas podia ganhar mais “solidariedades” do que um médico, a depender da sua saúde, idade, filhos, afetos, sonhos e afins. Um guardador de carros o mesmo que um apanhador de sonhos. Na escola não se aprendia matemática ou aritmética ou fórmulas espaciais, mas história, artes, desigualdades, lutas de classe, violências, afetos, desejos, preconceitos e tudo o que de fato importasse para a vida em sociedade. Ninguém, absolutamente ninguém, estudava menos do que vinte anos na vida, a se formar em especialista em mundos. Os livros, a música, a poesia e a contação de estórias era o bem mais importante. Mais até do que a própria vida dos milhões que habitavam Terra Vermelha. Mas ninguém morria de morte antecipada, de morte matada, de morte ceifada. As mortes eram apenas mortes da idade, quando o corpo já não suportava as dores do mundo, a cruzar os cem anos, e desfalecia sonolento a passar para outras existências. Nenhuma criança a morrer! As violências, que em outras cidades se ouvira falar ser comum, não existia em Terra Vermelha, dada as semelhanças de visões de mundo, de oportunidades e da forma empática de viver a vida. Era uma terra cooperada, mútua, empática. Mas Terra Vermelha nasceu sem vida, sufocada de utopia em um mundo já morto pela ganância dos que insistem em viver. Os sonhadores sobrevivem.