A menina que olhava as nuvens

A MENINA QUE OLHAVA AS NUVENS

Miguel Carqueija


— Veja, mamãe, veja aquela nuvem!
Yolanda, que levava a menina pela mão, ergueu o olhar para a nuvem branca isolada que flutuava nos céus. Tinha uma forma que fazia lembrar um peixe ou um tubarão, só que no que seria a frente do bicho havia uma falha, um buraco de onde se avistava o céu azul.
— Hum... sim, Joyce, estou vendo... é diferente, não é?
— Diferente demais — a menina, de sete anos, olhou preocupada para a mãe. — Buracos são perigosos, as coisas caem dentro deles, e esse é muito grande.
— É mesmo? — Yolanda estacou subitamente, como se aquelas palavras da criança a paralisassem. — O que poderia cair nele?
— Um quarteirão inteiro, eu aposto.
Yolanda engoliu em seco. Nunca, desde que começara a notar os poderes da menina quando ela tinha três anos, revelara a qualquer pessoa as habilidades de Joyce. Sabia que isso traria problemas.
— Não fale isso com ninguém — recomendou.
— Mas, mamãe, se a gente não falar as pessoas vão se machucar!
— Deus é grande, vamos rezar para que isso não aconteça!
Conduzindo a menina, Yolanda fez as compras que precisava e apressou-se em voltar para casa, onde havia privacidade. Sentia dentro de si uma crescente angústia. Não tinha dúvidas quanto aos poderes extra-sensoriais de sua filha, revelados na observação das nuvens. A memória da moça era nítida em muitos casos;
— Mamãe, veja aquela nuvem... não parece um carro em cima de um homem?
As formas eram efêmeras e muitas vezes, quando a mãe olhava, já não distinguia nada do que a menina dizia. Mas nunca havia falha, pois naquele caso, por exemplo, no mesmo dia ocorrera um atropelamento na rua em que residiam.
E quando Joyce enxergara um bolo apetitoso... sua tia trouxera um, sem saber de nada.
Joyce via coisas boas e ruins nos nimbos, cúmulos, cirros e estratos... porém Yolanda guardava segredo daquelas observações, temerosa de que a filha fosse exposta à curiosidade da mídia, ou coisas piores.
Joyce já vira um revólver expelindo uma bala; e um homem fôra assassinado por um desafeto, no prédio onde elas moravam. Vira um corpo estendido como morto na véspera do falecimento do porteiro. Vira várias outras coisas nas nuvens, e quando eram ruins Yolanda tremia de medo. Preferia que a filha nem olhasse para cima.
Depois que chegaram, arrumaram as compras e trocaram de roupa, Yolanda, agora mortalmente preocupada, sentou ao lado da garota e falou:
— Querida, me diga uma coisa: se aquele buraco desabasse, seria aonde? E por que?
— Eu acho que havia grandes prédios em volta, mamãe... arranha-céus...
— Então é no centro da cidade?
— É como se tivesse uma caverna grande em baixo... tipo a caverna do Batman, você sabe...
— É, eu sei...
— O buraco na nuvem tinha a forma do parque...
O parque, pensou Yolanda. O parque prestes a ser sacrificado para a construção de um gigantesco centro comercial. Uma obra faraônica e, a se acreditar na Joyce, fadada à destruição, tragada pelo abismo que se abriria sob os seus alicerces.
Levaria anos, mas a tragédia viria.
Yolanda sentiu-se impotente. Ninguém jamais acreditaria nelas, e a menina correria perigo se os seus poderes fossem revelados ao mundo.
Só havia uma diferença: até ali nenhuma das antevisões da pequena fôra tão antecipada. Yolanda calculou em uns cinco anos para que tudo acontecesse — ou não.
Nenhum aviso baseado em razões místicas impediria a obra. Pensando bem, nenhum tipo de aviso. Joyce estaria então com doze ou mais anos. Correriam elas próprias perigo? Como não frequentariam o local, se ainda morassem perto?
“Mudaremos daqui”, pensou Yolanda. “É o melhor a fazer, pois não poderemos impedir a tragédia.”

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Realmente, nos dias que se seguiram Yolanda viu-se com a mania de examinar os classificados de imóveis dos jornais. Ela detestava mudanças e nem sabia como justificar aquela, mas não queria simplesmente deixar o barco correr.
Não era assunto tão simples, pois havia o emprego, a escola, as ligações de sempre. Por outro lado, Joyce estava crescendo e a cada dia compreendia mais os próprios poderes, o dom de ler vaticínios nas nuvens. A menina silenciaria sobre o dom? Um dia seria preciso conversar com ela.
— Vi um cachorro muito bonito na nuvem, hoje — disse a garota. — E eu estava com ela.
— É mesmo? — Yolanda, desviando o olhar dos classificados, sentiu-se percorrer por um calafrio. Estava apenas cogitando, mas agora...
— Você vai me dar um de presente, não é?
— Como era o cachorro, Joyce?
— Era grande, um setter muito amável.
— Já grande? Bem, eles crescem. Eu vou te dar um filhote.
— Mas eu não quero um filhote, mãe! Quero esse! Se ele apareceu na nuvem...
— Mas o que eu te der vai crescer.
— Não, ele já é crescido. Senão eu estaria crescida também.
Yolanda sentiu que precisava falar.
— Filha, me diz uma coisa: você sabe que as coisas que te aparecem nas nuvens... acontecem mesmo?
— Eu sei, mãe. Então não tem sido assim?
— Me promete uma coisa: não fala com ninguém.
— Nem com o papai?
— Nem com ele. Procura entender: adivinhar coisas é perigoso. As pessoas vão querer te testar, a mídia vai te expor, nós duas vamos ser muito incomodadas. Vamos manter isso só entre nós. Me promete?
— É para sempre?
— É por enquanto, pelo menos. Não conta a ninguém sem falar comigo primeiro. Me promete, querida?
— Eu prometo, mamãe.
Mas parece que a guria pensou muito sobre o assunto. Yolanda, durante vários dias, quebrou a cabeça excogitando como poderia uma mulher separada, sem muitos recursos, transferir-se do emprego e bancar mudança para outro bairro com todas as despesas adjacentes, se teria como pagar uma empregada e, pior, se teria como confiar em uma (qualquer pessoa lúcida preocupa-se com tantas notícias que falam em sequestros de crianças, babás que abusam dos petizes na ausência dos adultos etc.) e se a ideia de colocar um cão em casa não seria rematada loucura, ainda que bichos de estimação ajudem muito as psiques infantis. Que estrutura teria ela para cuidar de um animal?
Aí, uma noite, depois de ajudar Joyce nas orações e após beijar sua testa com um “boa noite”, a menina, já embaixo da coberta, falou inesperadamente:
— Mamãe, sabe que buracos nas nuvens podem ser fechados?
— Como assim? — o espanto de Yolanda era sincero.
— Podem, sim. Se alguma coisa desliza...
— Não estou te entendendo, meu amor...
— Veja só — disse ela ingenuamente, apontando o fura-bolo para alguma imagem mental, inacessível à mãe — não existem camadas lá por baixo? Talvez elas possam se acomodar e eliminar o buraco, não é?
— Você viu isso nas nuvens?
— Vi, e vi uma coisa assim no Discovery...
Yolanda sorriu aliviada. As crianças hoje em dia aprendem a ser muito espertas, pensou, e às vezes, em certas coisas, sabem mais do que a gente.
Ao se deitar não pôde deixar de refletir:
“Talvez eu não precise fazer nada disso. Se a catástrofe não vai acontecer... Mas será que a Joyce pode usar algum poder mental para impedir? Se for uma coisa assim...”
A preocupação da moça aumentou quando o telefone soou estridentemente durante a madrugada. Ela atendeu temerosa de um trote, mas era apenas sua irmã.
— Vocês estão bem?
— É claro, Letícia! O que houve?
— O que houve? Você não sentiu? Não acordou?
— Do que é que você está falando?
— Ué, o abalo sísmico! A cidade está em polvorosa!
Yolanda não sentira nada. Olhou pela janela: nenhum sinal de terremoto. Correu para o quarto contíguo: Joyce parecia um anjinho dormindo. Tranquilizada, retornou ao telefone:
— Joyce também não acordou. Você tem certeza do que diz?
— Liga a televisão! Foi há uns dez minutos no máximo!
O noticiário extra confirmou a ocorrência do abalo sísmico, classificado porém como um simples rompimento de acomodação de camadas próximas da superfície, e que não tinha causado danos materiais afora a queda de pratos e outros objetos quebráveis. O tremor, porém, fôra sentido pelas pessoas acordadas.
Naquele manhã de sábado as duas saíram para passear, de mãos dadas, a garota feliz ao saber do sismo. “Acho que Papai do Céu ajudou, não quis que aquela gente toda morresse”, observou.
Yolanda acreditava que os empresários que pretendiam acabar com o parque agora hesitariam, pois apenas lá haviam surgido fendas.
Então Joyce apontou para algo que se movia lá adiante;
— Olha lá, mamãe! Não falei que era um “setter”?
Lá estava o bicho, bonito com seu pelo castanho, embora sujo e maltratado, farejando o lixo.
Yolanda aproximou-se cautelosamente. Jamais pensaria em acolher um cachorro abandonado na rua, se ele não fizesse parte das visões da menina. Mas ela agora respeitaria demais aquelas visões.
— Será que ele nos acompanha? Esse é um macho...
— Acompanha sim, mãe! Ele deve estar doido para ser adotado!
Ela se aproximou sem medo, chamando por ele. O bicho abanou a cauda, sorrindo como fazem os cachorros, e se acercou, aceitando a festa. Yolanda pensou rapidamente: dar banho, vacinar, vermifugar... mas valeria a pena a despesa, para dar alegria à filha.
— Já pensou num nome para ele, meu amor?
— É claro, mamãe — disse a menina, sorrindo feliz. — Ele vai se chamar Nuvem.

Rio de Janeiro, 11 de março de 2006 a 2 de novembro de 2009.




ILUSTRAÇÃO DE ROSÂNGELA TRAJANO

imagem da mãe e filha em azul claro: pinterest




 
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 29/12/2018
Reeditado em 25/11/2019
Código do texto: T6538495
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