O AMOR NA PALMA DAS MÃOS
 
Uma mulher sofreu profundo choque emocional: em apenas um ano – um ano! – ela se divorciou, perdeu a mãe e a filha saiu de casa. Você está chocado com isso? Também fiquei. Mais ainda quando ela acrescentou, como se desgraça pouca fosse bobagem: minha situação no trabalho ficou insustentável e minha melhor amiga adoeceu severamente.
Eu estava hospedado em um hotel em Tocantins e brincava de ler mãos esporadicamente. Dois aposentados que lá se recolheram, o porteiro da noite, a recepcionista do dia e até o proprietário. Criei fama injusta, mas esta é a fama que mais se espalha. Pois bem, ouvindo pacientemente a hóspede queixosa mandaram me chamar no quarto.
Olhei a pobre mulher enquanto descia os degraus da escada, desmoronada sobre o velho sofá como se fosse uma mala da qual se perdeu a chave do cadeado. Lembrei-me dos embustes da profissão em que só o charlatão dá esperanças; e hesitei entre dizer a verdade ou enganá-la, confiante de que há situações em que a mentira é uma virtude.
Ela me olhou sem forças e me estendeu a mão direita. Fui direto na região de Marte Positivo. Para quem não sabe: região central da mão, no lado direito de quem vê de frente. É o lugar onde se concentra a energia mental, a resistência, a perseverança e a paz de espírito. Tudo que eu havia memorizado de aspectos negativos nas linhas menores estava ali presente: pontos, ilhas, linhas bifurcadas, quebradas e cruzadas. Perda de força e concentração. Sinais de doença física, ruptura e perda de energia. E muito sofrimento.
O diagnóstico me pareceu claro e óbvio e até mesmo quem não soubesse onde fica a linha do coração saberia. Convidei-a ao salão de café para não ter testemunhas oculares. E então lhe disse: as linhas de sua mão mostram que você vive uma situação muito delicada e está sem forças para reagir. Não adiante pedir conselhos a amigos; cada um dirá coisas diferentes e aumentará a confusão. E como sair dessa, ela perguntou, e eu disse que não sabia. Mas que tinha de ser um passo de cada vez, um pé na frente do outro, com paciência e confiança. Nunca mais soube da mulher e nem me deram notícia naquele hotel.
O episódio me atormentou tanto que deixei de lado a brincadeira de ler mãos. Passou um tempo, me esqueci do fato e, num fim de semana, vários anos depois, coincidiu de lá ficar hospedado mais uma vez. Tinha um evento patrocinado pela Prefeitura e fora contratado um grupo de músicos e dançarinas de Feira de Santana. Um punhado de gente circulando pelos corredores, ensaiando nos quartos e, eventualmente, descendo à portaria para conversar com a recepcionista. Imperdoável, ela me enalteceu como exímio cartomante. E a fila se formou, diante de minha incapacidade de dizer não. Uns subiam e outros desciam desejosos de conhecer o futuro e saber de meu poder em desvendar o passado.
Ao fim de umas duas horas, cansado de repetir os mesmos padrões e sem mais a mínima paciência pra ouvir ninguém, eu disse chega. Mas baiano gosta de esticar as coisas, assim como fazem em seus shows: a última música sempre se transforma em três. Por isso insistiram em mandar chamar o motorista. O semblante enfezado e preocupado me pareceu o de um assassino de aluguel. Assim que o vi descendo os degraus da escada despistei, falando genericamente para a platéia ao lado: sou capaz de saber até quantas pessoas a pessoa matou.
O sujeito girou sobre os calcanhares e voltou escada acima.
Cornélio Zampier Teixeira
Enviado por Cornélio Zampier Teixeira em 06/01/2019
Código do texto: T6544086
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.